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Tão grave quanto os números sobre estupro no Brasil – 5.312 casos apenas no primeiro semestre de 2012, aumento de 157% em relação ao mesmo período de 2009 – e em Curitiba – 76 estupros e 21 tentativas de estupro em 2012 – é o tratamento dado às mulheres que sofrem este tipo de crime.

Falta de estatísticas, rede de atendimento falha ou inexistente, preconceito e falta de preparo por parte dos profissionais que atendem os casos e um sistema de educação que alimenta uma moral dupla em relação a homens e mulheres são alguns dos problemas encontrados em todo o país pela CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher, que encerrou diligências em dezembro e deve apresentar relatório em março.

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O caso de estupro coletivo vivido por uma mulher de Curitiba e divulgado ontem, dia 24, é o cúmulo do absurdo, uma história que choca não apenas pela barbaridade – seis homens a estupraram a mando do marido,
“inconformado” com o fim do casamento -, mas pelo atendimento precário e desrespeitoso à vítima, assim como o andamento das investigações – uma situação que parece de mentira, de tão absurda.

Durante a apresentação do caso, a vítima disse aos jornalistas que cobriam o crime que – pasme-se – ela não foi atendida pela Delegacia da Mulher de Curitiba. No local onde deveria ser atendida com respeito, privacidade, onde deveria haver mulheres que, supunha-se, teriam solidariedade pelo caso e estariam mais aptas a ajudá-la, ela ouviu que deveria ir a outra delegacia.

Finalmente, a vítima encontrou guarida na Delegacia de Furtos e Roubos, e fez o boletim de ocorrência. Como pode, em um país que tem uma das três melhores leis de gênero do mundo, uma mulher que foi estuprada por seis homens ser mandada embora de uma delegacia especializada, e disputar a atenção de um delegado que investiga furtos e roubos?

Quando questionada pelo repórter Diego Ribeiro, a mulher à frente da delegacia, Maritza Haisi, disse que não sabia do caso. Por acaso as delegacias não se conversam e vivem cada uma no seu mundo, em prejuízo do cidadão? A informatização do sistema existe apenas no papel e no discurso de policiais e da Secretaria de Estado de Segurança Pública?

Por fim, após ser informada pela reportagem a delegada afirmou que, por se tratar de estupro com roubo, o caso deveria ficar a cargo da Furto e Roubos. Neste caso, ao colocar numa balança um crime contra o patrimônio e outra contra a vida (houve tentativa de homicídio) e contra a dignidade sexual, o patrimônio falou mais alto? Qual é o bem jurídico mais importante que foi subtraído e ofendido? Se, de fato, a delegada estiver certa, a lei não serviu para nada. Se não estiver, deveria rever os posicionamentos que vem tomando à frente da unidade policial mais importante da capital quando o assunto é a defesa da mulher.

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Quem pode atender?

Este caso pontual mostrou a insensibilidade do poder público, mas todos os dias, mulheres que são agredidas se deparam com uma infraestrutura que desanimaria até o mais renhido dos seres humanos. A falta de uma rede articulada e atuante de assistência, que una prevenção, educação, atendimento e repressão, hoje desestimula milhares de mulheres a procurar uma delegacia e registar o fato, alimentando um ciclo vicioso em que o criminoso continua a atuar por entender que este é um crime pouco passível de punição. “Se houvesse aplicação da lei e punição de fato, os homens não fariam isso”, disse à Gazeta do Povo a senadora Ana Rita (PT-ES), relatora da CPMI.

Em Curitiba, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), deveria haver cinco delegacias e dois Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM) na capital, mas há apenas um órgão de cada tipo. O resultado são delegacias cheias, com profissionais estressados e despreparados para atender casos como esse, muito mais complexos e assustadores do que um assalto ou um roubo de carro. E juizados que não conseguem processar a imensa quantidade de casos que chegam às mãos dos juízes.

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Em agosto passado, a CPMI descobriu que, das 2.222 denúncias por estupro que aguardavam decisão do Judiciário até aquele momento, apenas 10 haviam tido julgamento e, destes, apenas dois resultaram em condenação. A CPMI pediu explicações ao Tribunal de Justiça do Paraná, mas durante uma reunião com os parlamentares, uma desembargadora disse não ter conhecimento dos números. Como imaginar que, diante desta situação de impunidade, a vítima terá forças para denunciar e ir adiante?

Há outros problemas gritantes de infraestrutura: a inexistência de um Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (CAOP) dentro do Ministério Público Estadual que atenda especificamente a mulher – hoje há um Núcleo de Gênero dentro do CAOP de Direitos Humanos, o que é um avanço, mas numa cidade onde se lavram mais de mil Boletins de Ocorrência por mês, e onde há uma defasagem de três delegacias da mulher, certamente há demanda para que o MP crie um CAOP próprio para atender a mulher e fiscalizar esses órgãos – tanto os da capital quanto os do interior, onde a situação é mais lastimável.

Além disso, onde estão as casas-abrigo (previstas na Lei Maria da Penha)? Onde uma mulher ameaçada pelo marido irá para resguardar a própria vida e a de seus filhos? Neste crime em questão, a mulher ficou escondida por meses, e hoje mora de favor com uma irmã. Teve de sair do emprego em dois hospitais para se esconder.

A lei preconiza que a mulher que está sendo ameaçada deve ir para uma casa-abrigo, e durante este tempo, será afastada do trabalho, sem prejuízo de seu posto e salário, e será, durante este tempo, auxiliada financeiramente pelo Estado. Onde é que estavam os profissionais que deveriam atender esta mulher e dizer a ela no que a lei poderia ajudá-la? Agora, além de transtornada psicologicamente e ferida fisicamente, é uma pessoa sem teto e sem emprego. É o famoso caso da pessoa que paga pelo crime do qual foi… a vítima.

Por fim, mas mais importante do que tudo nesta história, há ainda o preconceito de gênero e o machismo que alimentam o ciclo de violência que ainda deverá vitimar mais mulheres. Que impede a denúncia, por medo e culpa. Que faz a sociedade, o policial, o advogado duvidarem da palavra da mulher. Que exigem dela detalhes pavorosos do crime, e que relativiza o ocorrido.

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“Ainda há uma ideia de que o homem é o proprietário do corpo da mulher. Quando ela se recusa a aceitar isso, ele comete crimes tão bárbaros como esse, uma tentativa de reafirmar seu poder”, diz a advogada Leila Linhares Barsted, coordenadora-executiva da ONG carioca Cepia, que trabalha com vítimas de estupro.

Não custa lembrar

O caso em questão choca – pela crueldade do marido que encomendou o crime, pela quantidade de homens envolvidos, pela violência dos bandidos, que deram marteladas na cabeça da vítima. Mas não devemos nos esquecer que há casos que passam despercebidos, que acontecem nas ruas ou dentro de casa, e que não chamam a atenção da mídia e, muitas vezes, são desacreditados.

Como lembra Leila, é comum que se culpe a vítima pelo estupro – uma roupa mais justa, uma atitude liberal em relação à sexualidade e o transitar por certos locais e em determinados horários explicariam o ataque, impondo à vítima um novo sofrimento – o de ser responsabilizada indiretamente pelo crime.

Quem não se lembra da educação recebida na infância, em que o pai deve prender suas filhas porque há homens à solta? Que culpa a mulher que, bêbada e impossibilitada de se defender, foi estuprada? Que diz que ela “colaborou”? Que lança mão de uma moral dupla – homens, por natureza, não conseguem controlar seus instintos, e as mulheres precisam aprender a se defender e não provocar – que minimiza a responsabilidade do agressor?

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O fato de estupros ocorrerem em qualquer local, em qualquer cultura, com mulheres jovens e idosas, com roupa curta ou comprida, mostra que estupro não tem nada a ver com a roupa ou a aparência da vítima, mas com uma relação desigual de poder que é estrutural, uma tentativa de dominar a mulher tirando-lhe seu bem mais precioso: o seu corpo e seu domínio sobre ele, impondo-lhe sofrimento, dor, vergonha, doenças e até um gravidez.

Por isso, mais do que punir, é preciso educar. Mostrar que “não” é “não”. Que todo mundo tem direito de andar na rua e não ser assediado ou atacado. Que devemos ensinar os meninos a respeitar, e não as mulheres a se defender. Que o desejo de terminar um casamento deve ser respeitado.

Do contrário, enquanto acharmos que isso é exagero de feministas ou que “é assim e não vai mudar”, de nada adianta se indignar. Para a vítima vai ser muito tarde. E, no nosso caso, um dia poderemos ser os próximos a procurar uma delegacia e, pior, dar com a porta na cara.