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Mulher também pode ser caminhoneira, por que não?

Ailime Kamaia e Luzimary Cavalheiro
A caminhoneira Rosângela, uma das personagens do webdoc

Para muita gente, caminhão e mulher não combinam. No máximo, elas são caroneiras, companheiras do homem que dirige ou profissionais do sexo que buscam oferecer seus serviços na estrada.

Até mesmo o editor de textos Word tem preconceito – ao escrever este texto, quando digitei ‘caminhoneiras’, o corretor logo sublinhou em vermelho a palavra e sugeriu “caminhoneiro”. Não é fácil.

‘Caminhoneira’, em geral, é sempre associada à mulher que, na visão dos preconceituosos, seria ‘masculinizada’ e homossexual – o que não é nenhum problema caso fosse verdade, mas que demonstra que uma mulher que tenta exercer profissão historicamente ligada aos homens vai sofrer comparações e ouvir desaforos.

Uma tentativa muito bacana de mostrar mais sobre este universo e desmistificá-lo é um Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo pela Universidade Positivo realizado no ano passado, o webdocumentário “Caminhoneiras”, do qual tomei conhecimento recentemente.

As autoras, as jornalistas Ailime Kamaia e Luzimary Cavalheiro, contam sobre a rotina, a saudade da família, os medos (principalmente de estupro) e a revolução pessoal na vida das mulheres que resolveram se aventurar na profissão. Não vou falar muito para deixar que vocês explorem o trabalho, que pode ser conferido neste endereço.

Ailime Kamaia e Luzimary Cavalheiro
Ailime, a caminhoneira Rosângela (Cigana) e Luzimary em um posto de combustível em São Paulo, em direção a São Bernardo dos Campos.

Confira abaixo uma entrevista com as autoras sobre como foi fazer o TCC e como ele mudou a visão delas sobre as questões de gênero:


Como surgiu a ideia de fazer o trabalho? Qual o contato que já haviam tido com esse universo antes? E qual foi a maior dificuldade para fazer o webdoc?

Ailime A ideia de abordar o tema caminhoneiras surgiu do nada, mas ganhou força quando, em janeiro de 2011, viajando de ônibus, um caminhoneiro sentou do meu lado. Pude tirar várias dúvidas sobre a profissão e confirmar algumas ideias que poderiam render pauta para alguma matéria jornalística para a faculdade. Como a ideia acabou não sendo “usada” durante o ano, o TCC pareceu ser um boa oportunidade para colocar as ideias em prática.

Antes das primeiras buscas por personagens, eu não tinha tido nenhum contato com essas profissionais. Antes de encontrarmos caminhoneiras, conversamos com algumas mulheres de caminhoneiros. Isso foi bacana porque serviu para nos aproximarmos desse universo, a partir de um ponto de vista feminino.

Acho que a maior dificuldade de se fazer um webdocumentário é saber como aproveitar cada material da melhor forma. Depois do período de produção, tínhamos muitas fotos, vídeos e depoimentos. Selecionar e organizar tudo foi o mais trabalhoso, mas também uma das partes mais divertidas, já que acabamos “redescobrindo” alguns depoimentos e cenas.

Eu fiquei particularmente tocada pelos limites que elas impõem à rotina devido ao medo do assédio e do estupro. Quais as maiores dificuldades relatadas por elas a vocês? O que mais surpreendeu, negativa e positivamente?

Ailime Uma das coisas que me surpreendeu ao conversar com as caminhoneiras foi o fato de que algumas delas não se deram conta do preconceito sofrido por elas mesmas. Todas contaram que quando utilizavam o rádio em uma frequência “aberta”, sempre tinha algum caminhoneiro que fazia piadinhas de mau gosto, insinuando que seriam prostitutas procurando por clientes. E isso acontece mesmo quando elas pedem informação sobre a condição da estrada ou avisam sobre algum acidente. A figura feminina nas estradas acaba sempre sendo associada às profissionais do sexo, por isso as caminhoneiras acabam sendo assediadas em ambientes como lanchonetes, restaurantes e postos de combustível de beira de estrada.

Em um momento, uma delas diz que a mãe passou a brigar com quem diz que mulher dirige mal. Isso mostra que, quando a mulher passa a ocupar espaços antes destinados apenas aos homens, ela muda a mentalidade de quem está ao seu redor e a presença dela se torna algo natural. De que maneira, na visão de vocês, essa questão de gênero impacta na vida delas? É algo sobre o qual elas comentaram?

Ailime Kamaia e Luzimary Cavalheiro
Luzimary e Ailime aguardam uma caminhoneira em uma sala na frente dos banheiros do pátio da General Motors

Luzimary O termo “caminhoneira’, muitas vezes, é usado pejorativamente para designar uma mulher homossexual. Notamos que este preconceito está ligado, principalmente, ao trabalho bruto, pesado, que somente, uma mulher forte, ou um homem poderia executá-lo. De fato, uma de nossas personagens, a única homossexual, realizava o trabalho mais braçal, como lonar o caminhão. As demais trabalham maquiadas, com as unhas feitas, e executando um trabalho mais leve. (Apenas engatam o caminhão). No entanto, todas são muito parecidas em suas relações afetivas e familiares. Parece que este ponto não difere muito do gênero masculino, pois notamos que a ruptura dos laços familiares e amorosos acaba acontecendo em algum momento da vida delas. Seja porque tiveram que deixar os filhos com outra pessoa, ou porque o casamento acabou. (Não encontramos homens que acompanham suas mulheres caminhoneiras, ao contrário, é muito comum, ver uma mulher ao lado do marido nestas jornadas). Ao mesmo tempo que sofrem por abdicar de algo importante, sentem-se felizes pela profissão, que parece significar mais do que uma vida comum como ser dona de casa, trabalhar fora ou cuidar dos filhos. A profissão faz delas pessoas diferentes, e elas amam isso. Mas o preço é bastante alto, assim como é para o caminhoneiro.
Durante nossa viagem, com uma delas, sentimos na pele o desgaste físico e psicológico da profissão. Constatamos que as longas horas com pouco descanso alteram a qualidade de vida delas.

Ailime Na minha percepção, apenas uma das personagens parecia refletir mais sobre essas questões de gênero, percebendo diferenças no tratamento de caminhoneiras e caminhoneiros. Mas concordo contigo nessa questão de que a prática pode mudar a mentalidade das pessoas. A Clari teve que mudar a percepção dela em relação à profissão, e com o trabalho dela, acabou mudando a mentalidade de outras pessoas. Foi por isso também que fizemos esse trabalho, para que aos poucos as pessoas possam construir uma noção diferente das caminhoneiras e da questão do que é ser mulher, se existe uma profissão de homem, profissão de mulher etc.

De que forma trabalhar com essa questão da mulher impactou a visão de vocês em relação às questões de gênero? E de que forma vocês acreditam que nós, jornalistas, podemos contribuir para diminuir o preconceito?

Ailime Como o TCC exigiu muita pesquisa de nossa parte, fez com que eu passasse a enxergar toda a complexidade dessas discussões sobre gênero e direitos femininos. Foi bacana porque pudemos ver a relação entre as questões teóricas e a vivência daquilo tudo. Acredito que o jornalista tem um papel nisso, nessa desconstrução de ideias sobre quais são “atitudes de mulheres” ou quais são “atitudes de homens”. Acho que se pode partir do nosso exemplo, de mostrar mulheres em profissões não convencionais. Mas o que mais gostaria de ver na mídia é material que fomentasse debates sobre o assunto, pra que, usando o exemplo que citei, essas profissionais não fossem vistas como apenas algo diferente, curioso.

Depois do webdoc, qual a relação que vocês mantêm com esse universo? Ainda têm contato com as personagens ou com outras caminhoneiras?

Ailime Depois de gravadas as entrevistas, não voltamos a encontrar as caminhoneiras, mas mantemos contato com três delas pelo facebook. (Alessandra não tem perfil no facebook e trocou a profissão de caminhoneira por motorista de ônibus em sua cidade, Vitória)

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