Recentemente, ao escrever uma matéria para o Caderno de Justiça e Direito da Gazeta do Povo sobre a atuação das mulheres no mundo jurídico, tive a oportunidade de conversar com cinco mulheres que se destacam na área: uma juíza, uma desembargadora, duas advogadas e uma ex-desembargadora que hoje trabalha como advogada.
São histórias muito interessantes, e que coroam 114 anos de atuação feminina no Direito, desde que, em 1899, uma mulher, Myrthes Gomes de Campos, estreou no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Como não foi possível colocar o depoimento delas na íntegra na matéria, compartilho mais sobre o assunto aqui no blog. Será um depoimento por dia.
Também não se esqueça de ler a matéria na página do caderno.
Depoimento da magistrada Luciane Bortoleto, que atua no Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Curitiba
A minha escolha pelo Direito ocorreu porque eu gostaria de seguir a carreira diplomática. Este era o meu sonho. Depois de formada, comecei na área sendo assessoria de um juiz federal. No entanto, percebi que a Justiça Federal era mais distante do dia-a-dia da população quando comparada com a Justiça Estadual, que trabalha mais com as dificuldades que surgem no meio social, como a área criminal, a da infância e juventude ou a área de família. É uma área onde as pessoas são mais vulneráveis, onde a questão social é muito forte, e isso me fez ficar apaixonada pela profissão.
Eu sempre tive a percepção de que queria trabalhar com direitos humanos, onde eu pudesse fazer alguma diferença, ainda que indiretamente. Eu nunca pensei em trabalhar com o Direito enquanto ciência, mas no campo prático, atuando como operadora do Direito. Então, logo após me formar, em 1995, e trabalhar na Justiça Federal, prestei concurso para a Magistratura e passei, em 1998.
Enquanto fui assessora deste juiz federal, não senti discriminação de gênero, pois o ambiente era muito feminino, havia muitas mulheres assessoras, inclusive, muitas hoje são magistradas. Esta carreira dava bastante estabilidade. No entanto, quando prestei o concurso para juíza, o número de candidatos homens e mulheres era parecido, praticamente o mesmo, pois acredito que este foi um período de transição, em que as mulheres já estavam crescendo na área. Tanto que já na faculdade não enfrentei problemas, pois havia igualdade no número de alunos e alunas.
A primeira vez que senti dificuldades foi como juíza no interior, quando trabalhei na comarca de Matelândia. Lá o ambiente era muito masculino, havia dois juízes homens, e o promotor de justiça e o delegado eram homens também.
Certa vez, durante alguns meses que precederam uma eleição, a primeira com urna eletrônica, foi preciso fazer o treinamento dos mesários, cadastrar as urnas etc. Era a minha primeira eleição como juíza no município. Então ouvi de um morador a seguinte frase: “Poxa, ainda bem que temos um promotor aqui, né, doutora?”, e eu percebi que ele pensava assim porque, além de nova, eu era mulher. Só respondi que realmente, era muito bom ter aquela pessoa ali.
Às vezes era preciso me impor. Houve situações em que as pessoas chegavam ao fórum, à minha sala, e pediam para falar com o juiz. Quando eu dizia que poderiam falar, elas pediam pelo juiz, e então eu deixava mais claro que poderiam falar comigo justamente porque eu era a juíza. Alguns ficavam ressabiados. Havia também vendedores de livros jurídicos que iam à minha sala vender seus produtos e já iam pedindo pelo juiz, como se não fosse possível haver uma mulher juíza.
Percebi que às vezes era testada, e que tinha de me impor, trabalhar mais para provar que era capaz de dar conta, algo que geralmente não ocorre com os homens. Mas sempre fui em frente, isso nunca chegou a me incomodar, a me desviar do meu trabalho.
Quando prestei concurso, passei por situações no mínimo exóticas. Na entrevista com um profissional de psicologia, me perguntaram se eu queria casar e ter filhos, como lidaria com essa questão. Respondi que estava muita tranquila em relação à vida pessoal. Não imagino que perguntariam isso a um homem.
Na prova oral, um desembargador fez um comentário a respeito de outra candidata, dando a entender que ela não daria conta do cargo por ser casada e ter filhos. Eu nem a conhecia, mas comentei que certamente ela já tinha conversado com o marido a respeito, que a apoiava, e que certamente já deveria ter contratado uma babá. Acho que deu certo, pois ela foi aprovada e hoje somos grandes amigas, inclusive.
Como uma juíza que atua na área de gênero, eu vejo que esta preocupação com o social tem crescido, mas isso se deve também ao movimento de mulheres, que tem pautado o debate e aos poucos desconstituído esse pensamento linear, conservador e tradicionalista sobre situações que envolvem a violência doméstica.
Há mais preocupação em entender o contexto de vulnerabilidade em que as pessoas se encontram, de fazer uma escuta das partes, entender a questão além do jurídico, de uma forma mais global, entender o que leva essas pessoas a buscar o Judiciário, o que elas esperam.
Quanto ao perfil do profissional que atua nessa área, creio que não precisa necessariamente ser mulher. Uma vez ouvi que o profissional – o juiz, o promotor, o psicólogo – teria de ser mulher, mas não concordo. O importante é a pessoa ter sensibilidade, interesse pelo tema. Há muitos colegas homens que têm muita vocação para a área.
Quanto à participação feminina no Direito como um todo, acho que este é um processo irreversível. O interessante é que, em alguns estados, as mulheres já são maioria nos tribunais, justamente porque, há algumas décadas, em torno dos anos 70, o salário de juiz era pouco atrativo, tinha pouco valor, e por isso não havia concorrência masculina. Dessa forma, as mulheres entraram para a magistratura e hoje são maioria. Mas acredito que as mulheres logo serão metade desse contingente em todos os estados.
Na sociedade como um todo, no entanto, a equiparação pode demorar, principalmente em outros setores, como no mundo do trabalho ou na política. De acordo com a ONU, a igualdade total só virá após 2050. É bastante tempo.
Conheça mais sobre a história de Myrthes Gomes de Campos, a mulher que inaugurou a participação feminina no mundo jurídico