Parece uma brincadeira, mas não é: na Dinamarca, um programa de TV da rede pública se arroga o direito de decidir que tipo de corpo é mais bonito e merece mais apreço. Mulheres das mais variadas idades – de mulheres recém-saídas da adolescência a idosas – são levadas a uma sala escura. Tiram a roupa na frente de dois homens. Os homens analisam seu corpo, expõem seus defeitos e qualidades. A regra é clara: ela não podem falar – nem reclamar e nem agradecer o que é dito. O apresentador é fixo, e sempre traz um novo convidado, que com ele tece comentários sobre o corpo da mulher. “Isto agrada os homens”. “Gosto deste tipo de bunda”. E por aí vai.
Antes que digam que cada um é livre para fazer o que quer e que as mulheres estão lá por livre e espontânea vontade, deixo claro que agradeço pelo aviso, mas que o buraco é mais embaixo. O fato de essas mulheres estarem a exercer sua liberdade de mostrar o corpo onde e como queiram não significa que tal ação não exerça influência nefasta sobre a vida de outras que se recusam a exercer o papel de objeto na TV para deleite dos homens. O fato de muitas naturalizarem essa opressão não significa que ela não exista ou não seja deletéria. Pelo contrário. Ela é parte do problema.
O debate aqui não deve girar em torno da exposição do corpo feminino. Muitas vezes, essa exposição pode ser libertadora e destruir mitos e preconceitos sobre o corpo da mulher, como é o caso da Marcha das Vadias e seus seios de fora (que chocam mais do que a violência contra a mulher), de exposições sobre diferentes tipos de seios e vulvas, sobre mulheres menstruadas, ou simplesmente da arte pela arte, pelo desejo de se fotografar o corpo humano, explorá-lo, conhecê-lo. A questão é a forma como se expõe esse corpo. O programa, o qual vi em partes, é extremamente humilhante. Parte do pressuposto de que as mulheres têm necessidade de ouvir e ser aprovadas pelos homens, e de que a sua visão sobre o próprio corpo não importa. O que importa é a visão de quem vai consumi-lo. Talvez haja muitas que realmente necessitam dessa aprovação, mas é justamente isso que deve ser combatido.
A autonomia, a autoestima, o bem estar físico e psicológico devem ser buscados por homens e mulheres, mas principalmente por mulheres, cujo corpo é um verdadeiro campo de batalha, onde se travam lutas para decidir que tem mais autonomia sobre seu direito de ir e vir, de se mover no espaço público, de se valer dele com vistas à realização de seus desejos e prerrogativas – a Igreja, o Estado, a Medicina, o companheiro, mas nunca ela mesma. E tal programa simplesmente mina qualquer possibilidade neste sentido.
No programa, os dois homens pedem à mulher em silêncio que se vire, como se estivessem a analisar uma roupa, um carro, um pedaço de carne. O apresentador já disse que está fazendo um favor às mulheres. Em que sentido? Por que ele se arroga o direito e o dever de dizer a elas como devem ser? E se não há machismo, por que os que se expõem são sempre mulheres? O apresentador – o nome dele é Thomas Blachman – diz que o que o leva a fazer este tipo de programa é discutir a estética do corpo feminino sem descambar para a pornografia ou para o politicamente correto. Mas se esta é uma discussão, por que somente os homens podem falar? E desde quando ele está a ser politicamente incorreto, subversivo, incômodo? Existe algo mais banal e mantenedor do status quo do que reduzir uma mulher a um objeto? Isso vem sendo feito há milênios…
E por que não se discute também a estética do corpo masculino? Os homens não necessitam da nossa opinião, igualmente? Ou são tão autônomos que isso é dispensável? Na verdade, mesmo se houvesse participantes e apresentadores de ambos os sexos, a pergunta não poderia deixar de ser feita: vamos realmente nos impor padrões e mitos de beleza que só servem para destruir a autonomia e gerar transtornos de saúde e de comportamento, em benefício de empresas que lucram por meio do racismo, do sexismo e do especismo?
O que a imagem de um homem sentado numa posição confortável, de analisador – e, muito importante – vestido, a falar do corpo de uma mulher que precisa ficar calada, tem a nos dizer? Absolutamente nada? A produtora do programa, Sofia Fromberg, disse que é do interesse feminino conhecer os desejos masculinos. “Sinceramente, qual é o problema?”. Sinceramente, o quão longe ela consegue enxergar? Os dois, Blachman e Fromberg, dizem que estão fazendo algo revolucionário e totalmente inovador. Se é inovador, como explicar que toda mulher já tenha passado por isso antes, na rua, na propaganda, nos jornais e em outros programas de TV? Que eu saiba, não é de hoje que uma mulher é reduzida à sua aparência, mas alguém parece não ter avisado o visionário Blachman a respeito disso.
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