Foi noticiado neste espaço, por meio de uma entrevista, que o prefeito Gustavo Fruet (PDT) vetou uma proposição de lei da vereadora Maria Goretti (PSDB) que previa atendimento multidisciplinar ao homem que comete o crime de violência doméstica. Este veto foi apoiado pela secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves, durante entrevista a este blog, que por sua vez entendeu ser necessário oferecer um contraponto.
Contextualizando: No dia 17 de dezembro de 2012, a 14 dias do fim do mandato do ex-prefeito Luciano Ducci (PSB), a Câmara de Vereadores aprovou em segundo turno a proposição de lei n°. 005.00096.2012, que estabelecia atendimento ao agressor. O texto informa que o atendimento será multidisciplinar e ficará vinculado à FAS (Fundação de Ação Social) e outras secretarias, e que o encaminhamento pode ser feito mediante pedido do agressor ou por meio da delegacia especializada ou determinação judicial.
A proposição foi vetada. O ato do prefeito gerou reclamações de um lado e apoio de outro. A SPM, como se viu, se declarou a favor – talvez pelo fato de a secretária municipal da mulher, Roseli Isidoro, ser do PT, e a secretária nacional entender que seria necessário, ao menos publicamente, corroborar a decisão do prefeito e evitar um mal-estar, ou por realmente acreditar que esta não é a melhor solução no momento, como alega a secretária. Isso não se sabe, e o que vale, para fins de publicação, é a versão oficial – embora caiba aos demais interessados ir além.
A visão da SPM, que não está incorreta, é de que o agressor cometeu um crime, já que a lei encara a violência doméstica como tal. Aparecida afirmou o seguinte em entrevista:
“Bom, eu acho que o agressor é um criminoso, não é um doente. Começa por aí. Por que criar um serviço psicossocial pro agressor e não criar pra mulher, que apanhou por anos, que está numa condição de submissão, que não é mais sujeito de direitos? Acho que essa é a primeira questão. Para o agressor, não é atendimento psicossocial, é um serviço de responsabilidade e reeducação, que envolve outra perspectiva, outro olhar, com outros profissionais. Se tivesse sido criado um serviço deste tipo, eu diria que o prefeito estava errado, mas neste caso ele está certo. Tem de ser um serviço de responsabilização. O agressor tem de saber da responsabilidade de seus atos. Ele não pode ser tratado como doente, pois ele não é doente, ele é um criminoso. Segundo a Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é crime”.
Isso está correto, se entendermos que cabe à secretaria nacional zelar pelo cumprimento da lei, e que ela de fato criminaliza este ato. Mas o entendimento deve ir além disso. Se o problema não é de saúde e envolve antes de tudo a responsabilização do agressor por seus atos, o que se vê na fala da SPM, talvez como forma de evitar discutir o veto, é que o problema está sendo encarado apenas do ponto de vista criminal, o que também não é bom.
E ao se analisar a proposição de lei, fica bem claro que o viés vai além do seu caráter psicossocial, envolvendo também a discussão sobre relações de gênero (que, se bem conduzida, pode se prestar a discutir e desconstruir o machismo, que é a raiz do problema), noções de direitos humanos, terapia familiar e esclarecimentos sobre a lei, entre outros. Neste caso, tanto a responsabilização quanto o atendimento multidisciplinar podem caminhar juntos – afinal, o projeto não indica que as duas coisas seriam excludentes.
O que impediria o homem que está sendo processado, preso ou não, com medida restritiva de direitos não, de frequentar um curso onde, a depender da situação, ele possa ser atendido por uma equipe que analise também se há problemas com álcool ou drogas que potencializam os conflitos, ou então um curso de reeducação que vise a esclarecer e combater o problema do machismo e da relação desigual de poder dentro do relacionamento?
Em entrevista à Gazeta do Povo, a advogada que atua nesta área e também assessora jurídica da Marcha das Vadias de Curitiba, Xênia Mello, lamentou o veto e posicionamentos como o da SPM. Diz ela: “Não se pode resolver o problema da violência doméstica apenas pela vertente da política criminal. É lamentável essa visão. O problema da violência se resolve antes de tudo com educação”.
Como afirma Xênia, o problema não envolve apenas o Judiciário, que nunca dará conta de todos os problemas que envolvem a violência de gênero, mas também outros espaços, como os que se propõem a mediar os conflitos e evitar que ele passe de uma violência simbólica (que não é criminalizada) para a física ou psicológica (que é), além de evitar a reincidência. Afinal, prender e responsabilizar o agressor evita a impunidade a curto prazo, mas não impede a reincidência quando este homem cumprir sua pena e iniciar novo relacionamento, por exemplo.
Vale lembrar ainda que a própria lei Maria da Penha prevê que haja esse atendimento – obrigação compartilhada entre Executivo, Legislativo e Judiciário – e é nisso que ela inova, como também lembrou a advogada e membro da OABPR Sandra Lia Bazzo Barwinski. “A lei tem uma visão muito mais moderna do Direito Penal, pois não visa unicamente à pena – ela pensa mais na prevenção e na proteção. Enquanto não pensarmos nesta questão do atendimento também do agressor, continuaremos correndo atrás do prejuízo”, diz ela. “Claro que eu esperava mais do projeto, como um espaço exclusivo para atendimento, e que ele não se limitasse à FAS, mas já é um avanço, já que não há nada institucional neste sentido”.
Se o atendimento na área da saúde não fosse importante, a lei não recomendaria, em seu artigo 29, que o Poder Judiciário disponibilizasse esse serviço para a mulher, o agressor e os filhos, se houver. Claro que, neste caso, a obrigação está a cargo dos juizados, mas em seu artigo 35 a lei complementa que as demais esferas devem criar programas complementares na área. E é fato que este atendimento por parte dos juizados hoje não é institucional e é precário, já que os juizados não dispõem de estrutura para fazer sozinhos o atendimento, como atestou o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ao defender seu apoio ao veto do prefeito, a vereadora Professora Josete, também do PT, e que havia votado a favor da proposição antes de ela ir para o prefeito, disse que analisou a questão mais a fundo e alegou que teme que, com a aprovação do projeto, houvesse um desvio no entendimento do que é agressão — que seria encarada apenas como uma patologia, e não como um problema de gênero, fruto do machismo e de uma sociedade patriarcal.
De fato, quando entendemos que a agressão é fruto de uma doença, um problema de saúde, como o alcoolismo, a drogadição ou um desiquilíbrio emocional, não se enxerga que muitos homens batem na companheira por um sentimento de posse, de propriedade sobre o corpo e a vida dela, e que se ela vier a desobedecer a essas regras, terá de sofrer as consequências da violência, como se merecesse esse castigo. Mas deve-se insistir mais uma vez que o projeto, se bem regulamentado, não precisa limitar sua atuação por essa vertente, até porque ele não propõe essa vertente exclusiva. E deixa claro que outras secretarias podem auxiliar a FAS neste processo – e aqui poderíamos elencar a da Saúde, a da Educação e a própria secretaria da Mulher.
Faz sentido a fala da secretária Aparecida quando ela afirma que não há programas sequer para a mulher agredida, algo que a secretária de Curitiba, Roseli Isidoro, reiterou, ao dizer que num primeiro momento é preciso reforçar o atendimento à mulher e reforçar a efetividade da lei. Mas no contraponto apresentado por outras pessoas que trabalham com o tema, nada impede que o atendimento de agredida e agressor sejam feitos em conjunto, até porque é importante que seja assim. Se hoje tratarmos apenas a mulher e apenas prendermos ou processarmos o homem, se ele iniciar um novo relacionamento, uma outra mulher sofrerá violência.
O prefeito alegou, também, que o projeto criaria novas despesas para o município. Não deixa de ser verdade. O risco é, ao se justificar o veto, optar por um discurso em que um projeto de atendimento multidisciplinar – e não apenas na área da saúde – seja visto como ‘menos importante’ neste momento, e que se continue a encarar a violência doméstica apenas como caso de polícia. É mais do que isso. É de polícia, pode ser eventualmente também de saúde e é sempre um problema social e de gênero, em que só prender não adianta.
Ainda em relação à questão financeira: vale lembrar que esse atendimento é previsto em lei federal e deve ser cumprido, e que se o prefeito não destinar um novo olhar para o tema, estará cometendo o mesmo erro de seu antecessor, que nunca destinou verba especifica para programas relacionados à lei. De acordo com a própria OABPR, em levantamento feito pela Comissão de Gestão Pública e Administração do órgão, não houve, durante a gestão de Luciano Ducci sequer uma rubrica específica na lei orçamentária ou nos planos plurianuais (PPA) que mencionasse a Lei Maria da Penha ou algum programa de atendimento à mulher vítima de violência, e, consequentemente, o agressor e a família como um todo. Até quando haverá essa lacuna?
É importante ressaltar, obviamente, que a proposição da vereadora Maria Goretti chegou tarde durante a administração de Ducci, já no apagar das luzes de sua administração, e que deixou para a gestão atual, em cima da hora, uma responsabilidade como essa. E que se o governo anterior ou a bancada que o apoiava na Câmara tivessem a preocupação de contemplar essa área, teriam, como mencionado acima, dado mais atenção ao tema ao aprovar o orçamento e demais leis. Mas essa discussão, embora digna de nota, é secundária agora.
Se de fato o programa precisa de correções, para estender a atribuição a outras secretarias, e com um viés mais abrangente e menos voltado para a “patologização” do problema, então, que a prefeitura inicie o debate na Câmara para aperfeiçoar a ideia, e crie um programa mais bem pensado e estruturado, e que dê uma participação digna de nota no orçamento para a questão da violência doméstica. O que não pode haver é uma ausência de política pública voltada para o agressor, também uma vítima, embora com suas particularidades. O que se espera é que o Executivo, que criou uma secretaria da mulher, corra atrás do prejuízo, valorize mais esse tema e cumpra o que está previsto em lei – prevenção da violência, punição da violência e erradicação da violência.
Contribua com a discussão nos comentários abaixo. Como trabalhar essa questão de modo que tanto a agredida quanto o agressor tenham atendimento?
A proposição de lei – Vá até preposições legislativas no lado esquerdo da tela, clique e então digite o número da PL no campo ‘Assunto’ que aparecerá na tela seguinte.
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