Um projeto de lei apresentado esta semana pelo vereador Rogério Campos (PSC) é uma daquelas iniciativas que, ao buscar atingir um objetivo, contribuem claramente para o efeito oposto, embora a princípio soem como a solução dos nossos problemas. O vereador propôs que haja ônibus exclusivos para mulheres na rede pública de transporte de Curitiba, como forma de evitar assédios, constrangimentos e estupros – e de fato ocorrem muitos desses casos, e não há mulher que não tenha passado por uma destas situações. Os ônibus circulariam em horários de pico, pela manhã e no início da noite, e seriam identificados pela cor rosa. Somente mulheres e seus filhos de até 12 anos poderiam se valer do serviço.
Embora o assédio moral, físico e sexual seja uma constante na vida das mulheres que circulam pelas grandes cidades, onde em pleno século XXI o gênero feminino ainda não pode exercer plenamente o seu direito de ir e vir no espaço público, não é por meio da segregação que tais atitudes – fortemente calcadas no machismo estrutural da sociedade – serão combatidas. Pelo contrário: projetos como esse apenas reforçam a ideia de que nada está sendo feito para acabar com o machismo, e que na falta de ações concretas neste sentido, cabe às vítimas serem postas de lado, segregadas, envoltas em redomas de vidro e encarceradas dentro de seu próprio espaço caso queiram sobreviver.
Quando uma sociedade precisa lançar mão de tais medidas, ela apenas comprova o que feministas têm afirmado há décadas, e que muitos tentam negar, apesar de todas as provas em contrário: o de que estamos falhando em combater a discriminação, a violência de gênero, o medo do outro e a segregação. Lançar mão desse argumento é o mesmo que dizer à mulher que fique em casa e não use roupa curta para não ser estuprada. Resolvemos o problema da violência de gênero impedindo a convivência universal. Dizemos às mulheres: “o machismo existe, e se você não quer ser vítima dele, tome o vagão correto, o ônibus certo e não incomode mais. É o máximo que a sociedade e a administração pública podem fazer por você”.
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São várias as implicações que podem piorar ainda mais a vida das mulheres caso isso venha a ocorrer. E quando uma mulher não puder ou não quiser pegar o ônibus cor de rosa, e entrar em um ônibus normal em horário de pico? Essa será um sinal verde para que os assediadores a ataquem? Que mensagem ela poderá estar passando? E se ela estiver na companhia do namorado, esposo, filho maior de 12 anos, colega de faculdade, de trabalho ou amigo? Terão de fazer o trajeto separados? Talvez ela até opte pelo ônibus normal porque está na companhia de um homem, mas caso não esteja, terá de correr sempre para o ônibus cor de rosa? Chegará o momento em que ela não se sentirá mais no direito de utilizar o convencional? Haverá um momento em que os ônibus convencionais passarão, naturalmente, a servir apenas os homens, sendo reconhecidos como espaços exclusivamente masculinos? É isso que queremos?
Obviamente que o assédio, a injúria sexista e a violência sexual nos ônibus precisam ser combatidos. Ser contra a medida dos ônibus exclusivos não significa fechar os olhos para o problema. Não significa corroborar a opressão, ou então, como alguns podem afirmar, dar um tiro no próprio pé, ao rejeitarmos, enquanto mulheres, uma medida que supostamente protege e ampara a nós mesmas. Porque ela não ampara. A solução deve vir por outros meios.
A primeira é fiscalizar e punir de forma exemplar os casos de assédio, seja por meio de maior vigilância eletrônica dentro de ônibus, terminais e estações-tubo, seja por meio de uma central que seja acionada imediatamente após a denúncia de uma mulher, ainda dentro do veículo, quando fiscais poderão adentrar o espaço e levar vítima e agressor para a delegacia mais próxima. Além de campanhas maciças que condenem este tipo de comportamento e deixem bem claras as possíveis sanções a que serão submetidos, além de deixar claro que as vítimas serão ouvidas e apoiadas, para que tal ação deixe de ser vista como uma agressão menor.
Recentemente, a própria ONU Mulheres apoiou tal medida, que existe em cidades da Índia e no Rio de Janeiro (no sistema de metrô). Tal atitude, porém, não ajudou a diminuir os casos de estupro e assédios sexuais nestes locais, mas certamente passa uma mensagem de que não cabe aos homens se controlar, mas às mulheres se esconder para não serem atacadas. Não podemos nos render às soluções fáceis e benéficas a curto prazo, mas que poderão se voltar contra nós num futuro próximo, e fortalecer a ideia de que não pertencemos a alguns espaços.
Como bem disse a antropóloga e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ Bila Sorj, na ocasião em que os vagões exclusivos para mulheres foram implantados no Rio de Janeiro, em 2006: “Esta lei é um retrocesso na luta pela igualdade e não combate a raiz do problema. A questão é: porque os homens se sentem tão livres para assediar as mulheres? A medida admite implicitamente que o assedio é um impulso irresistível dos homens, uma fatalidade que está inscrita na natureza dos homens, a qual é impossível de ser controlada. E pressupõe que o que se pode fazer, então, é proteger as mulheres com vagões exclusivos. Esta lei reforça a ideia de fragilidade das mulheres, como se elas fossem seres que não pudessem se defender. Segregar reforça uma serie de estereótipos masculinos e femininos que têm colocado a mulher numa condição de subordinação”.
Na época, a socióloga não foi a única a rechaçar a medida. Também se manifestaram contra o Instituto Patrícia Galvão, o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro (Cedim) e Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam), ligado à UERJ, além de outros órgãos, o que nos faz pensar se tal projeto de fato vem ao encontro dos interesses da mulher. Do jeito que está não pode ficar. Mas a solução proposta para o problema nem de longe é a melhor.
A pergunta que devemos fazer é: queremos ter esta proteção à custa de algo maior, que é o nosso direito de circular livremente por qualquer espaço? Queremos reforçar a ideia de que, se queremos viver em segurança, caberá a nós nos escondermos em locais diferenciados, ao invés de exigirmos que os demais nos respeitem em qualquer lugar que estejamos? Apoiaremos a decisão mais simples, ou a mais correta? —-
Um adendo: até quando o estereótipo da cor rosa para identificar as mulheres? Já está na hora de entenderemos que as cores não possuem gênero, e que essa relação (mulher e cor de rosa) já cansou.