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Os homens não fazem ideia do que é andar sozinha na rua

Um homem não imagina o que é andar na rua sendo mulher (photo credit: <a href="http://www.flickr.com/photos/23401759@N00/3732733842">IMG_1629</a> via <a href="http://photopin.com">photopin</a> <a href="https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/">(license)</a>) (Foto: )
Uma mulher andando na rua usando um vestido azul florido e carregando os sapatos

Um homem não imagina o que é andar na rua sendo mulher (photo credit: IMG_1629 via photopin (license))

Os homens não fazem ideia do que é andar sozinha na rua.

Nem eu. Sou homem. Mas posso fazer um esforço de imaginação, sendo homem.

Um homem – imagine um homem genérico, não eu, não ele, não ninguém: um homem genérico – não costuma nem mesmo supor o que é, para uma mulher, andar por dez quarteirões, sozinha e a pé.

Um homem – o tal homem genérico – não costuma saber que tipo de coisas uma mulher ouve nesse trajeto, impedida de esquecer de si mesma, pensando na vida, enquanto dá seus passos como ele o faz sem sequer pensar no valor desse privilégio.

Simplesmente não passa por sua cabeça as coisas que ela ouve. Muito embora ele mesmo, genericamente, as diga inúmeras vezes.

Coisas que essa mulher ouve, a irmã dessa mulher ouve, a mãe dessa mulher ouviu e a avó, um dia, também.

E a irmã, a mãe e a avó desse homem da mesma forma ouviram, mas dita por outros homens genéricos.

Mas dá na mesma: é como se ele mesmo dissesse, pois, ao repeti-las, ele concorda que os seus colegas as digam e as tenham dito para a sua irmã, sua mãe, sua avó.

E ela ouve.

Simplesmente por fazer um passeio ou ir ao supermercado ou ao trabalho, um trecho que percorre diariamente, um trecho pelo qual qualquer homem genérico anda impunemente, de camisa aberta.

E as coisas que ela ouve de homens genéricos se repetem com a mesma religiosidade das calçadas e portões. As nuvens e os carros mudam, mas o homem genérico continua sempre o mesmo.

E ela ouve. E, depois de tantas vezes manifestando indignação, fechando a cara ou apertando o passo, um dia ela finge que não ouve mais. Muitas, de tanto ouvir, tristemente passam a acreditar. Outras ficam surdas para sempre e nada mais as toca, nem carinho. O coração endurece como o chão que ela pisa no trajeto.

Os indianos, digo, os indianos da antiguidade, de milênios atrás, conheciam uma coisa chamada dárshana. Um dos significados dessa palavra: quando a mulher concede ao outro a sua imagem. A visão de uma parte de seu corpo ou do corpo todo, como uma manifestação divina. A visão de si mesma como um presente. Como uma benção.

E dizem que o homem genérico, cinco mil anos depois, é evoluído: não se faz merecedor do que vê e recebe e, mesmo assim, quer ser ouvido.

E tocar.

Um homem genérico não perde uma oportunidade de confundir desejo – que a mulher pode, se quiser, provocar – com permissão, com permissividade.

Confundir essas coisas é estar a um passo do roubo.

A um passo de roubar coisas que sequer se entende, que não se pode guardar e que só tem verdadeiro valor para a vítima.

A um milímetro de correr em um terreno que se deveria palmilhar.

Não se pode levar a água na concha formada pela mão bruta. Ela sequer chega aos lábios.

Um homem genérico, enfim, não perde uma oportunidade de mostrar que não é digno sequer de um dia ter colocado a boca no peito de sua mãe.

Nelson Rodrigues disse que, até os 35 anos, um homem não sabe dizer nem bom dia a uma mulher.

Suponho, ele era um otimista.

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