Acompanhei esta semana ensaios de dois espetáculos daqui que estrearão durante o Festival de Curitiba. O mais notório entre eles é Vida, da Cia. Brasileira de Teatro, que fará sua primeira apresentação no dia 19 de março sob os holofotes da Mostra Contemporânea.
O diretor Márcio Abreu ainda orquestra as frequências, tons e ritmos da montagem, em que atuam Giovana Soar, Nadja Naira, Ranieri Gonzalez e Rodrigo Ferrarini. Essa afinação é crucial para a estrutura dramatúrgica que criou, pela qual as cenas correm em fluxo mas sem linearidade, sincopadas, imersas em situações prosaicas em que os diálogos mais banais revelam outra estatura pela dinâmica de reiterações, ecos, interrupções e retomadas.
“Como começar um diálogo”, por visto, é a premissa da obra. Respondendo por seus próprios primeiros nomes, os atores representam quatro estranhos que formam uma banda para se apresentar nas comemorações do jubileu da cidade. Numa sala fechada, conviverão, sujeitos a transformações -“Eu queria ser você”, “me deixa olhar as coisas da maneira que você olha”, são frases que escapam de um ponto avançado da encenação.
Vida é o produto final de uma investigação da obra de Paulo Leminski que tomou a atenção da companhia nos últimos dois anos. Algumas citações do poeta sobrevivem no texto escrito por Márcio Abreu, mas sua presença se dá mais na contaminação do grupo pelo “entusiasmo com a linguagem” e pelos temas caros ao autor de Catatau. A interferência astral, cósmica, está entre eles. Mas, sobretudo, um olhar atento para o cotidiano curitibano.
Fala-se muito do tempo, ora chuvoso, ora abafado. Os atores põem e tiram casacos. Um deles se indigna por não lhe cumprimentarem no elevador, o outro já se acostumou e, nesses casos, responde ao próprio bom dia. Quando não protagonizam a cena, fazem cara de paisagem, como se não fosse com eles. Ir ou não embora da cidade os deixa em dúvida. O estrangeiro é medido dos pés à cabeça em suas diferenças. Comportamentos reconhecíveis?
“Dizem tantas coisas nesta cidade. É sempre diferente quando você está dentro, quando vê as coisas de perto. Quando você está dentro, parece que tudo fica banal” constata a certa altura Giovana – a que já foi embora e voltou. Essas e outras observações que por vezes parecem tratar só da realidade imediata sobrepõem-se em um conjunto intrigante sobre a interação humana, o estar no mundo e, particularmente, o estar em Curitiba. Não sem estranhamento.
Como se Eu Fosse o Mundo é outra importante montagem curitibana que poderia passar despercebida na mostra paralela do Festival de Curitiba se não fosse por um nome forte na ficha-técnica: Roberto Alvim, diretor que no ano passado ganhou o prêmio Bravo! de teatro pela peça O Quarto, de Harold Pinter.
A produção estará em cartaz nos dias 26, 27 e 28 de março, às 21 horas, no teatro José Maria Santos, pela Mostra de Dramaturgia promovida pelo Núcleo de Dramaturgia Sesi/PR, coordenado por Marcos Damaceno. Alvim se junta aos curitibanos Paulo Zwolinski, que assina sua primeira peça, Patrícia Kamis e Thiago Luz, atores em cena.
O diretor tem encontrado um lugar de destaque no teatro brasileiro (primeiro produzindo no Rio de Janeiro, depois em São Paulo onde montou a companhia Club Noir com a atriz Juliana Galdino) por ser um encenador bastante autoral, que vem desenvolvendo uma estética particular concentrada na presença física dos atores e na força da palavra, se permitindo radicalidades como uma iluminação incipiente que, ao ocultar grande parte das feições de quem está sobre o palco, universaliza os personagens. Também em consequência dessa escolha, as expressões e sentimentos são transmitidos essencialmente pelas vozes, trabalhadas em nuances sob as sombras.
“São estratégias que o espectador não reconhece de imediato, embora eu tenha certeza de que reverberam instantaneamente em todo ser humano”, disse Alvim, durante o ensaio da nova peça.
De fato, Como se Eu Fosse o Mundo atinge zonas sensíveis pela complexidade dos sentimentos que expõe em primeiro plano, estando o palco destituído de qualquer efeito ou objeto que pudesse se interpor como um obstáculo à propagação das emoções, que vão ganhando densidade em 45 minutos de encenação.
Se o argumento de uma relação amorosa que desanda é velho (no caso, remonta ao mito grego de Medea), sua força reside na omissão de um julgamento aos personagens. Em vez de condená-los, apontar um lado certo, sugerir soluções, a dramaturgia se fixa em problematizar o impasse de um modo que o próprio diretor reconhece como nada conciliador ou apaziguador.
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