Na quarta-feira, entrevistei por uma hora o diretor da Sutil Companhia, Felipe Hirsch. Ele falou sobre o espetáculo Cinema, que só estreará em São Paulo dia 26 de março, mas entrou para a Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba com ensaios que acontecem dias 18 e 19 no palco do Guairinha. Publico aqui uma parte da conversa.
Qual foi a sua motivação para fazer Cinema?
Começou lá atrás, quando fizemos Educação Sentimental do Vampiro. Vivi os últimos vinte anos do século aqui em Curitiba, e costumo dizer que se fizermos um Google Maps bem aberto, existem claramente duas Curitibas: uma do Leminski e uma do Dalton. Eu vivi o auge dessa Curitiba do Leminski, de poetas loucos que morreram cedo, publicitários e ilustradores da década de 80, algumas das pessoas mais interessantes que conheci na minha vida: Rodrigo Barros, Ferreira, Marcos Prado, Miran, Solda… Eu era muito garoto.
Tinha quantos anos?
Eu sentei numa mesa com o Leminski quando eu tinha 16 anos e fiquei quietinho. Era 1988, estava a um ano da morte dele. Essa Curitiba na virada do século voltou a ser predominantemente do Dalton, uma cidade mais provinciana – isso não a diminui em nada – mais dos malacos, das pessoas das rodoviárias, do interior.
Perdeu uma efervescência cultural?
Não, acho que ela mudou o foco. Os personagens que a dominam hoje são os do Dalton. E com isso, eu quis me aproximar da obra do Dalton. Estava ali na minha esquina e de alguma maneira achei que poderia ser mais fácil ver o Dalton do que imaginar um universo russo, mas não foi. Quanto mais perto da nossa esquina, mais difícil é imaginar, porque você sabe como é. Nós nos aproximamos da obra do Dalton com o mesmo olhar dos ilustradores dele: Poty, Raul Cruz, todos esses influenciados pelos expressionistas, e pelo viés da música atonal do Schoenberg, do Webern. E nessa montagem tinha uma cena ligada especificamente ao cinema, baseada num conto do Dalton, que se chama “Onde Andarão os Natais de Antanho”. Foi uma experiência muito bacana que eu sempre quis desenvolver.
A Educação Sentimental do Vampiro não foi apresentada em Curitiba. Pode nos contar um pouco mais dessa cena?
Uma narração contava a história de uma pessoa que passava os últimos momentos do ano dentro de um cinema porque queria ficar longe do quarto de hotel onde tinha uma gaveta com uma faca. Ele conseguia superar a depressão dentro de um cineminha desses vagabundos de rua que estão acabando. Essa cena continuou como um projeto da Sutil. Mas desse momento em diante viramos o jogo e fizemos o espetáculo mais importante da companhia, que é o Não Sobre o Amor. Quando a gente começou, ele poderia ser qualquer coisa, era uma obra plástica, feita numa sala de exposição; era cinema porque a gente foi à frente na ideia de como filmar, ver e mesclar linguagens; era teatro e emanava literatura. Num período posterior a isso, a gente entrou na comemoração dos 15 anos da companhia, foi estressante.
Vocês fizeram uma mostra de repertório em São Paulo.
Exatamente. Foi um período muito cansativo, nos abalou muito pela estrutura toda grande, por não contar co um patrocínio de continuidade, pelos meus compromissos com o (filme) Insolação, pelos compromissos do Guilherme e do Leo (Leonardo Medeiros) com a televisão. Fomos energicamente ao fundo do poço. Eu estava muito afastado. E um dia voltei a Curitiba para visitar minha mãe, chamei todo mundo e falei: “Vou voltar para a Sutil”, brincando. Chamei todo mundo em que eu confiava, todos renovaram os votos, digamos assim, e a gente partiu para esse projeto.
Quando foi isso?
Outubro do ano passado. Tínhamos um projeto para fazer com o Sesi e a minha proposta era fazer uma seleção de novas pessoas para a Sutil (o que a gente faz de quatro em quatro anos, mais ou menos), extensa, que envolvesse São Paulo. Foram 1,5 mil inscrições. Fizemos uma pré-seleção, chamamos 90 para fazer uma seleção dentro do Sesi, saíram 40 para um workshop e dali os 20 que estão aqui com a gente – 15 atores e cinco pessoas trabalhando na produção e parte técnica. A Sutil sempre tem dez projetos caminhando e um deles era esse do Cinema.
A intenção já era resgatar aquela cena de Educação Sentimental do Vampiro e desenvolvê-la?
Sim. Mas tinha um motivo especial do porquê fazer essa cena agora. Fiquei muito preocupado durante o período de Insolação com a questão de ver e não ver. É fato que de uns cinco anos para cá todos os padrões de comportamento crítico mudaram muito. Hoje todos nós somos críticos, todos temos espaços na internet. Eu estava em Dublin, uma cidade que eu não conhecia e me levou de novo aos braços do Oscar Wilde dentro de uma livraria antiga, li O Crítico Enquanto Artista, fundamental na minha decisão de como fazer a Sutil falar sobre esse assunto. É um ensaio lindo que dá o valor certo à crítica, quase do peso do artista. Tem que ter a mesma capacidade do artista. O problema são as pessoas: como elas se preparam para isso? – tanto os críticos quanto os artistas mesmo. Por crítico estou falando de nós que vemos. Eu não considero o público que assiste agora preparado o bastante.
O último espetáculo que você estreou aqui em Curitiba foi o Thom Pain, e o público teve alguma dificuldade de relação com a peça. [Pelo Twitter, o diretor comentou: “O que alguns consideram uma relação difícil (entre peça e platéia) eu considero parte do jogo.”]
O Thom Pain é uma provocação do Will Eno, que é um grande pensador do teatro. A reação ao Thom Pain é essa. Aí é que está: os nossos passos são ousados. Não me assusta isso. Thom Pain fala sobre se expor, sobre a separação que teve da Rachel, uma atriz inglesa. Tenta, no teatro expor a 700 mil pessoas a dor dele. Busca na infância e juventude alguma explicação mas não consegue: ele fracassa ao explicar diante do público o seu estado emocional e aquela relação. E o fracasso de explicar é o sucesso da peça. Só que o público quando assiste confunde.
Faltou esse apuro do olhar do público, como você estava falando?
Também. Nesse uróburo que o Oscar Wilde propõe entre arte e crítica, entre arte e público, todos nós temos que nos preparar e aprender a ver. O Arthur Muller diz que nós, como público, procuramos com o olhar algo que nos identifique. A partir do momento que você tem essa identificação, você procura do seu lado, no público, alguém que também teve esse tipo de identificação, e forma um grupo. O ato de ver e se indentificar com o que e quem vê é um ato de se tornar menos sozinho. Só com o apuro do olhar e o desenvolvimento emocional – não estou nem falando do intelectual, mas este também –, a capacidade de não vulgarizar a arte.
Em que momento desse processo vocês estão agora?
Tivemos um desenvolvimento muito profundo dessa história toda. Eles sentem muito tudo isso que eu estou te falando, na pele mesmo. É um trabalho muito emocional. O próprio processo de seleção foi um mergulho nisso.
O que você procurava durante a seleção?
Eu procurava sensibilidade, basicamente isso.
Você escreveu o texto?
Sim, mas tem muito poucas palavras. É como o Ways of Seen (Modos de Ver), clássico documentário da BBC que fala sobre o fato de que ver precede a palavra. Há um roteiro que pode ser modificado.
Qual é a estrutura desse roteiro?
Não tem. A estrutura é conceitual. É uma hora e meia sobre o ato de ver e ver quem está vendo.
Foram construídos personagens?
É, mas não personagens definidos, são estados energéticos, emocionais.
Não se pode falar de gênero então.
É uma peça que tem humor, mas é bastante conceitual.
Você a considera uma radicalização dentro da sua própria linguagem?
Aconteceu isso no Não sobre o Amor. A cada espetáculo novo que eu faço, quero dar um passo. Não quero ter medo do abismo, se tiver terra embaixo ótimo. Não estou aqui para mostrar o certo e o errado, estou aqui par sentir o que estou experimentando.
Leia mais na edição de domingo do Caderno G.
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Atenção: O Festival de Curitiba abriu mais uma bilheteria oficial, localizada no Memorial de Curitba. Funciona de segunda a sábado das 12 às 18 horas e aos domingos das 9 às 17 horas.
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