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Como todos sabem, Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz por sua atuação no filme “Ainda Estou Aqui”. O longa-metragem conta a história da família de Rubens Paiva, o ex-deputado federal brasileiro torturado e morto nos porões da ditadura militar em 1971. No filme, Fernanda interpreta o papel de Eunice Paiva, viúva de Rubens, que empreendeu uma admirável cruzada pessoal para que o Estado brasileiro assumisse a responsabilidade pela morte do marido. Essa história é contada em parte no livro “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice. Ainda não assisti ao filme, mas pretendo fazê-lo. Por ora, deixo meus cumprimentos à atriz.
O prêmio recebido por Fernanda Torres me fez pensar em algumas coisas. A tortura e o assassinato de presos políticos são inaceitáveis em qualquer caso, não importa a qual campo ideológico se pertença. Não existem assassinatos e torturas “do bem”. Essa deveria ser uma regra universalmente aceita.
Espero, sinceramente, que a visibilidade do filme sobre Rubens Paiva ajude a mostrar ao mundo que hoje, no Brasil, nós vivemos um regime de exceção comparável e, em muitos aspectos, até pior que o do regime militar. Atualmente o Brasil tem centenas de presos políticos, com a diferença de que a esmagadora maioria deles jamais cometeu crime algum. Os presos do 8 de janeiro — ou melhor, os reféns do 8 de janeiro — foram condenados a penas absolutamente desproporcionais e descabidas, superiores às de assassinos, traficantes, pedófilos e sequestradores que hoje se acham livres. A máquina da censura também é maior e mais poderosa nos dias atuais do que na época dos militares.
Rubens Paiva era um parlamentar. Daniel Silveira também era. No início dos anos 70, Paiva foi acusado de colaborar com o grupo terrorista armado Vanguarda Popular Revolucionária, liderado por Carlos Lamarca, ex-capitão do Exército Brasileiro. Em 2020, Daniel foi acusado, condenado e preso ilegalmente por gravar um vídeo em que xingava membros do Supremo Soviete brasileiro. Paiva lamentavelmente perdeu a vida. Silveira, depois de ganhar liberdade provisória, voltou à prisão por ter procurado atendimento médico durante uma crise renal. A defesa de Daniel Silveira já denunciou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirmando que o ex-parlamentar está sendo submetido a tortura e responsabilizando o Estado brasileiro caso algo lhe aconteça. No entanto, o caso jamais provocou reação alguma entre a classe artística brasileira, com raríssimas exceções.
Naquele início dos anos 70, não foi apenas Rubens Paiva que perdeu a vida de forma cruel. No dia 10 de maio de 1970, o tenente da Polícia Militar Alberto Mendes Júnior participava de uma operação para a captura de terroristas da Vanguarda Popular Revolucionária, que haviam montado um campo de treinamento na região do Vale do Ribeira, em São Paulo. Houve um tiroteio entre um grupo da PM e os terroristas Carlos Lamarca, Yoshitame Fugimore, Diógenes Sobrosa de Souza, Ariston Oliveira Lucena e Gilberto Faria Lima. Vários policiais ficaram feridos e necessitavam de atendimento médico. Diante da situação, o tenente Alberto ofereceu-se como refém aos terroristas, para que os seus companheiros pudessem ser levados para um hospital.
Não existem assassinatos e torturas “do bem”. Essa deveria ser uma regra universalmente aceita
Depois de um dia e meio andando com o tenente Alberto Mendes Júnior pelas matas do Vale do Ribeira, Lamarca e seus companheiros fizeram um “tribunal revolucionário” e condenaram o policial à morte. O jovem de 23 anos, conhecido entre seus colegas pelo apelido de Português, de temperamento alegre e amistoso, foi friamente assassinado a coronhadas, enquanto os seus algozes lhe sufocavam os gritos de dor.
Se fosse de esquerda, Alberto Mendes Júnior (promovido post-mortem a Capitão da PM), já teria filme, seriado e livros em sua homenagem. Mas ele era apenas um trabalhador pobre, simples e cristão, que deu a vida pelos amigos. Ao menos, o Capitão Alberto foi reconhecido como herói pela Polícia Militar. Na Câmara dos Deputados, há um projeto de lei do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) para incluí-lo no Livro dos Heróis da Pátria.
Estou à espera de homenagens ao Capitão Alberto e denúncias sobre Daniel Silveira.
(PS: No próximo dia 24 de janeiro, Alberto Mendes Júnior completaria 78 anos.)