Estátua viva amordaçada segura bandeira do Brasil.| Foto: Luisa Purchio | Gazeta do Povo
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Liberdade,

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Escrevo-lhe estas linhas para dizer que estou voltando para casa e espero revê-la um dia. Depois de uma longa ausência, em que estive lutando duras batalhas, volto a escrever para a Gazeta do Povo, este jornal centenário que sempre lhe foi um fiel defensor. Alguém disse foi Marcel Proust, se não me engano que a obra de um homem leva 100 anos para ser concluída. Pode ser que eu não esteja aqui para ver seu retorno. Mas o meu filho, se Deus quiser, verá. Ou o filho do meu filho. Não importa cedo ou tarde, você voltará.

Gosto de escrever o seu nome assim, com inicial maiúscula: Liberdade. Gosto de pensar em você na forma de uma pessoa, com um rosto e uma alma, alguém que amamos e temos o dever de conservar e proteger. Gosto de imaginar você como algo precioso e frágil, com a importância de uma relíquia sagrada e a delicadeza de um dente-de-leão. Gosto de dizer em voz alta, mesmo quando estou sozinho e só Deus me ouve: 

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— Liberdade, Liberdade.

Liberdade, ontem as pessoas saíram às ruas para protestar contra o seu grande inimigo. Sabemos que ele, o imperador calvo, não é o seu único inimigo, mas apenas o mais evidente nas atuais circunstâncias. O fato é que, nos últimos anos, ninguém se empenhou tanto em sufocá-la, em feri-la, em vilipendiá-la. O calvo é o seu calvário, Liberdade. Ele precisa parar. O povo de bem, os milhões de brasileiros que têm o coração e a inteligência no lugar certo, sabem que esse seu inimigo esse nosso inimigo precisa ser contido, ou vai aniquilar a todos nós.

Liberdade, minha irmã, você não foi criada por nenhum homem, por nenhum político, por nenhum governo, por nenhum estado, por nenhuma revolução, por nenhum juiz. Você foi criada diretamente por Deus. Você habita aquele espaço que existe entre o dedo de Deus e do dedo do homem, no afresco de Michelangelo pintado no teto da Capela Sistina. Você depende de um gesto, de uma decisão, de um ato da nossa vontade. Você depende da nossa coragem.

Liberdade, ontem as pessoas saíram às ruas para protestar contra o seu grande inimigo. Sabemos que ele, o imperador calvo, não é o seu único inimigo, mas apenas o mais evidente nas atuais circunstâncias

Viu como a Paulista estava bonita, Liberdade? Era por você. Um dia antes da manifestação, eu escutei a Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, na interpretação de uma talentosíssima pianista chamada Antonella Franco. Nos anos 80, essa obra de Louis Moreau Gottschalk (1829-1869), um compositor americano apaixonado pelo Brasil, foi surrupiada por um partido político de esquerda. Mas agora podemos ouvi-la livremente e nos encantar com as variações sobre o tema do nosso Hino. Em determinados trechos da obra, Gottschalk desce a tonalidades sombrias e perturbadoras, ainda que imersas em um oceano de beleza. E naquela hora, naqueles compassos de paixão e ressurreição, eu pensei em você, Liberdade. Pensei em tudo que você tem visto, em tudo que você tem sofrido, em tudo que você tem suportado calada. Pensei nos presos políticos inocentes que só estavam clamando por você, e que a perderam pela vontade sumária do seu pior inimigo. Pensei nas famílias que a amaram e perderam tudo por esse amor. Pensei nos seus amigos exilados, censurados, perseguidos. Pensei em todos os seus defensores, cujas vidas foram devassadas e destruídas. Pensei no Olavo. No Allan. Na Ludmila. No Filipe Martins. No Clezão. Liberdade, Liberdade, eu pensei em todos eles, e sei que você não os esqueceu.

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Neste Dia da Independência, por um instante, eu voltei os meus olhos para outro lugar o lugar em que você não está. E ali eu encontrei todos eles, os seus inimigos, reunidos em um palanque, como os homens ocos de Eliot ou as figuras de um quadro de Bosch, amparados uns aos outros com seus crânios recheados de palha. Ali eu vi os golpistas, os facínoras, os pervertidos, os covardes, os pusilânimes, os eunucos invertebrados do poder, com seus corações de pedra e seus rictos de fel. Diante deles, um desfile de tropas cadavéricas, como nas antigas paradas da Praça Vermelha. Em torno deles, um grande, um enorme, um melancólico e soturno vazio. Um deserto sem fim, projetado por um idiota chamado de gênio.

Volte para casa, Liberdade. Sem você não podemos viver. Sem você estaremos condenados àquele deserto.

Do seu irmão,

Paulo.