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“Em verdade vos declaro: se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos céus.” (Mt 18, 3)
Quando foi que nós perdemos a inocência? Em que parte do caminho esquecemos o valor da pureza, da compaixão, da bondade? Em que momento – doloroso e trágico momento! – deixamos de acreditar em nossos olhos e passamos a aceitar passivamente aquilo que alguém mandou dizer? Em qual espelho quebrado ficou perdido nosso discernimento, a ponto de nos deixarmos convencer pelos sabidos e espertalhões que apresentam seus consensos maliciosos como a pura expressão da realidade? Quando foi que trocamos os critérios da verdade e da mentira pela psicopatia política, que tudo vê em termos de vitória e derrota, e para a qual a única coisa realmente feia na vida é perder, não a alma, mas um cargo, uma eleição, uma oportunidade de lacrar, uma ocasião de destruir o oponente e cuspir sobre o seu cadáver?
Fiz todas essas perguntas a mim mesmo quando recebi a notícia de que o seriado Chaves, exibido pelo SBT, foi considerado impróprio para menores de 10 anos pelo Ministério da Justiça lulista. O motivo alegado é que alguns episódios apresentam “violência fantasiosa” e “uso de drogas lícitas”. Em outras palavras: o Seu Madruga fingiu bater no Chaves e o Professor Girafales deve ter fumado um cigarro ou tomado um copo de licor oferecido pela Dona Florinda em alguma cena. Se algum dos personagens resolvesse mudar de sexo ou fumar maconha, creio que não haveria problema algum.
Dizem que a classificação do Ministério da Justiça é meramente indicativa, e não deve ter grandes efeitos práticos. Mas convém lembrar a meus sete leitores que estamos no Brasil. No país em que uma cantora é acusada de racismo por citar o nome de Jesus no lugar de Iemanjá (e Cláudia Leitte voltou a fazê-lo, ganhando meu respeito) e em que um apresentador queridíssimo por todos é investigado pela Polícia Federal por imitar os trejeitos de um militante de redação, não duvido que cedo ou tarde alguém processe uma família por permitir que seus pequenos vejam as histórias de Chaves, Quico, Chiquinha, Dona Florinda, Seu Madruga, Professor Girafales e Senhor Barriga. Afinal, o programa faz tanto sucesso que andou roubando preciosos pontos de audiência de uma outra emissora – de cuyo nombre no quiero acordarme.
“Chaves” representa uma ilha de inocência no mar de desesperança do nosso mundo doente de política e ressentimento
Chaves não apenas é um dos programas de televisão mais amados de todos os tempos, como representa uma ilha de inocência no mar de desesperança do nosso mundo doente de política e ressentimento. As aventuras dos moradores da Vila divertiram, encantaram e, por que não dizer, educaram várias gerações de brasileiros e mexicanos.
Na missa do último domingo, celebramos a festa da Sagrada Família, comemorada depois do Natal. Nenhum dos personagens da Turma do Chaves segue exatamente o modelo familiar que inspira os cristãos em todo o mundo: Jesus, Maria e José. Chiquinha é filha de Seu Madruga, mas não conhecemos sua mãe; Quico é filho de Dona Florinda, uma viúva que perdeu o marido ainda jovem; e Chaves é um órfão que mora em um barril. Ao longo da história, descobrimos que, entre brigas e reconciliações, eles acabam por formar uma só família: a Vila. E essa Vila é o mundo.
Chaves, o menino sem família, mas puro de coração, acaba por ser o elemento agregador de todas essas pessoas, fazendo com que cada um supere seus defeitos, suas carências, seus rancores. Em um dos meus episódios preferidos, gravado em 1976, Chaves é falsamente acusado de roubar pertences dos outros moradores da vila. A cena de Chaves abandonando a vila com sua trouxinha corta o meu coração sempre que a revejo. Mas não só o meu. Logo depois, Quico é visto chorando. Dona Florinda pergunta o motivo do pranto, e o menino mimado responde: “Eu tô com saudade do Chaves!”
Na cena seguinte, o verdadeiro ladrão – o vizinho Furtado – decide restituir todos os pertences aos seus donos: o ferro de passar a Dona Clotilde, a espingarda de caça a Seu Madruga, as calças a Dona Florinda. Ficamos, então, sabendo que tudo isso aconteceu porque, mesmo inocente, Chaves havia confessado a um padre seus pecados e fizera um pedido a Deus: que o ladrão se arrependesse dos seus furtos e se tornasse um homem bom. Em sua simplicidade, Chaves sabia que o perdão é a chave do Céu.
Na Grécia Antiga, havia um pensador que morava dentro de um barril e vivia entre os cães: Diógenes. Reza a lenda que ele andava em pleno dia pelas ruas de Atenas, dizendo sempre a mesma frase: “Procuro o homem!”
Diógenes dizia buscar o homem verdadeiramente virtuoso. Chaves, a meu ver, era mais modesto e mais eficaz do que o velho cínico. Ele não precisou fazer espalhafato nem se gabar de sua miséria para encontrar o que havia de melhor dentro de cada um de nós.
Chaves não precisou fazer espalhafato nem se gabar de sua miséria para encontrar o que havia de melhor dentro de cada um de nós
O ator e roteirista Roberto Bolaños, que deu vida ao Chaves, era chamado pelos mexicanos de “Chespirito” (em espanhol, “pequeno Shakespeare”). Um apelido justo: do mesmo modo que o Bardo inglês, o criador do Chaves escrevia e atuava para o povo, e era querido por pessoas de todas as classes sociais. Mesmo pequeno, ele é grande em nossos corações. Por isso, no dia do falecimento de Bolanõs, há exatos dez anos, eu rabisquei um breve poema que agora reproduzo para vocês:
Chaves do céu
Para Roberto Bolaños (1929-2014)
Foi sem querer querendo
que ele alegrou nossa vida,
que ele morou lá em casa,
que ele entrou na família
para nunca mais sair.
Foi sem querer querendo
que ele aprontou com o Quico,
que ele irritou a Florinda
e disse: – Senhor Coração,
o senhor tem uma grande Barriga!
Foi sem querer querendo
que ele foi o nosso bardo,
Shakespeare da meninada
que Silvio Santos programou
quando não tinha mais nada.
Foi sem querer querendo
que ele era contra o aborto,
que ele era a favor da vida
mesmo em um mundo danado
e em uma era perdida.
Foi sem querer querendo
que partiu sexta-feira
deixando tantas crianças
– hoje adultos estressados –
com saudade a vida inteira.
E é assim, sem querer querendo, que eu desejo um feliz 2025 aos meus sete leitores!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos