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Cheguei ao local de votação cedo demais. Os pássaros ainda nem cantavam, tudo era sombra e a seção eleitoral estava fechada e vazia. Eu já dava meia-volta para esperar no pátio, quando um homem sorridente brotou do nada. Espantei-me:
— Clezão, você por aqui? Mas você não estava...
— Não precisa ficar com medo, Briguet. Eu não posso lhe fazer mal nenhum.
Ainda um pouco assustado, estendi-lhe a mão:
— Prazer em conhecê-lo pessoalmente. Você é um herói nacional, sabia?
— Bondade sua dizer isso. Eu sou apenas um brasileiro comum.
— Mas você deu a sua vida pelo país...
— Nem todos reconhecem isso. Veja só: durante essa campanha eleitoral, eu quase não fui mencionado. A maioria dos candidatos preferiu esquecer a minha existência.
— A situação não anda nada fácil... Depois da sua morte, eu tive esperança de que as coisas mudassem um pouco, mas aconteceu o contrário. Pra piorar, vi que grande parte da direita é de esquerda.
— Tudo no Brasil acontece ao contrário, Briguet. Lá onde estou agora, pude perceber que esse é o grande problema. Os bandidos são libertados e os inocentes são perseguidos.
— Muita gente ainda acha que nós vivemos uma situação democrática normal. Poucos enxergam a ditadura.
— Andei lendo bastante, Briguet. Descobri que todas as ditaduras modernas têm eleições. O fato de haver eleições não significa que estamos em um país livre.
— E como nós podemos sair dessa, Clezão?
— Fazer o que você faz todos os dias ajuda bastante, Paulo: clamar pela misericórdia de Deus. Somente por meios humanos, jamais vamos escapar do abismo. Na prisão, eu orava e cantava a Deus todos os dias. Nunca me esquecerei dos amigos que fiz por lá. Tenho saudades deles, da minha esposa, da minha filha. Mas sei que eles vão ficar bem.
— Vários amigos seus estão passando necessidade no exílio, Clezão. Tenho conversado com muitos deles. Qual foi o crime que eles cometeram para sofrer esse martírio?
— Eles não cometeram crime algum, Briguet. Mas cometeram um erro terrível: acreditaram nas promessas dos homens. E foram traídos.
Clezão fechou os olhos, ficou alguns segundos em silêncio e pronunciou estas palavras aladas:
— Alguém vai pagar a dor da minha família. Alguém vai pagar a dor dos órfãos, das viúvas, dos velhos, dos doentes, dos torturados, dos roubados, dos iludidos, dos traídos. Alguém vai pagar o que fizeram com esse país. Não sei quando vai acontecer, Briguet, mas um dia haverá um julgamento justo. Quantas vezes for necessário, diga isso aos seus sete leitores.
Clezão apertou minha mão com força e saiu caminhando pelo corredor vazio da seção eleitoral. Antes de desaparecer, porém, ele se voltou por um instante e disse:
— Mande um abraço pra Cris!
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Conteúdo editado por: Jocelaine Santos