Uma das minhas alegrias na infância era assistir ao Programa dos Trapalhões no fim das tardes de domingo. Morávamos em um pequeno apartamento no centro de São Paulo, tínhamos uma TV preto e branco. Eu era muito pequeno, cinco ou seis anos, e ria alto quando Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo (esse era o nome completo do personagem de Renato Aragão) arrancava os livros das estantes do cenário e mostrava-lhes o fundo falso, provando que eram apenas objetos cenográficos e não verdadeiros livros.
Talvez eu risse tanto porque em nosso apartamento, embora minúsculo e modesto, havia uma biblioteca de verdade, a biblioteca do meu pai, onde a literatura russa tinha lugar privilegiado. Foi assim que eu comecei a minha vida de escritor, entre Didi Mocó e Lev Tolstói.
Mais tarde, na adolescência, quando li “Rei Lear” pela primeira vez, o personagem que mais me fascinou foi o Bobo. Ele possui uma qualidade ímpar: como os membros da corte não o levam a sério, ele é o único que pode falar a verdade que vê com os próprios olhos. Em seu célebre ensaio sobre Tolstói, George Orwell compara o grande romancista russo com o velho monarca da tragédia shakespeariana. De certo modo, podemos dizer que Tolstói e Lear agiram como bobos no pior sentido da palavra: Tolstói, ao trocar a literatura por uma utopia social e messiânica; Lear, ao rejeitar a única filha que o amava por se recusar a bajulá-lo.
Mas o Bobo de Lear não é bobo. Ele enxerga a realidade e a expressa com todas as letras, por meio de seus versos escandalosamente lúcidos. Pois foi exatamente no Bobo de Lear e no Didi Mocó quando eu vi Pablo Marçal entrar como uma bomba de alto poder destrutivo no teatro das eleições paulistanas.
O palco já estava todo montado: de um lado, Boulos, o invasor de propriedades que sonha em suceder Lula e conduzir o Brasil ao socialismo marcusiano do PSOL; do outro, Nunes, o eterno ex-vereador com carisma de um cone de rua, que entregou amplos setores da prefeitura de mão beijada para a esquerda e para as velhas máfias locais.
Os coadjuvantes são uma dupla da velha linha auxiliar da esquerda brasileira: Datena, o apresentador que não sabe falar sem teleprompter (para não mencionar seu problema com objetos do mobiliário), e Tabata, a menina globalista que se recusa a crescer.
Os produtores e financiadores do espetáculo são os membros do establishment paulista: Kassab, Temer, Waldemar, Dória, Rodrigo Garcia e, cereja do bolo, Tarcísio, ícone da direita que a esquerda aceita. Essa turma investiu pesado nos cenários, nas contratações e na divulgação do espetáculo, tendo até mesmo se livrado de um ator que estava na preferência popular mas não estava no script: Ricardo Salles.
Em agosto de 2002 — quatro meses antes da primeira eleição presidencial de Lula —, o professor Olavo de Carvalho alertava que o Brasil vivia um teatro de democracia, em que as duas lâminas da tesoura, parecendo ir uma contra a outra, na verdade cortavam todo o cenário para o mesmo lado: o sinistro.
Foi justamente naquela eleição que Lula se orgulhou do fato de que todos os candidatos eram de esquerda — e eram mesmo. Serra representava o socialismo fabiano do PSDB; Ciro e Garotinho eram os herdeiros do velho getulismo; e Lula — bem, preciso dizer?
Durante muitos anos, apesar dos alertas do Olavo, muita gente votou no PSDB por acreditar que se tratava de um partido de direita
Se tivessem ouvido o professor, saberiam que a estratégia das tesouras — o grande teatro em que as disputas internas do socialismo se fazem passar por debate democrático — já existia desde a época de Lênin, que em 1902 criou as duas facções internas do Partido Social-Democrata Operário Russo (os radicais bolcheviques e os moderados mencheviques).
Essa estratégia foi internacionalizada por Josef Stálin a partir do final da Segunda Guerra e até hoje é utilizada pelo movimento revolucionário para fagocitar os processos eleitorais em favor da esquerda no mundo todo.
Por que tanto ódio contra Marçal, a ponto de ser agredido com cadeirada e expulso de debates? A razão é muito simples. Ele estragou a encenação cuidadosamente montada pela esquerda. Ele melou os planos das hienas políticas, esses planos que vêm dando certo desde os tempos do “titio” Stálin. Ele é o Bobo que ousou contrariar a corte. Cortem-lhe a cabeça!
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