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“A defesa, na verdade, não é realmente admitida pela lei, apenas tolerada, e há controvérsia até mesmo em torno da pertinência de deduzir essa tolerância a partir das respectivas passagens da lei.”
(Franz Kafka, “O Processo”)
Daniel,
Você está preso há 951 dias. Seu crime foi gravar um vídeo com críticas e ofensas aos membros da Suprema Corte brasileira. Passando por cima da lei, os próprios juízes que você ofendeu o condenaram a 8 anos e 9 meses de prisão. Você não foi condenado por matar, nem por roubar, nem por corromper pessoas ou empresas, nem por receber propinas milionárias, nem por lavar dinheiro, nem por quebrar a maior empresa do mundo, nem por apoiar ditaduras genocidas, nem por fazer tráfico de drogas, nem por associação com grupos de narcoterroristas, nem por destruir a economia do país. Você está preso porque disse alguma coisa quando era um parlamentar amparado pelo Artigo 53 da Constituição Federal: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (grifo meu).
Eu lembro bem do dia da sua prisão, Daniel. Era 16 de fevereiro de 2021, uma terça-feira de Carnaval, aquele Carnaval que não aconteceu por conta das medidas sanitárias. Você foi preso em sua casa; agentes da Stasi federal apontaram fuzis para você e sua esposa naquela noite e disseram estar cumprindo “um mandado de prisão em flagrante”.
Qualquer primeiranista de Direito sabe que “mandado de prisão em flagrante” é uma contradição em termos, algo que, como diria o Padre Quevedo, non ecziste. Mas existiu para você.
Novecentos e cinquenta e um dias de prisão, Daniel. E uma prisão que em nada se parece com o spa oferecido tempos atrás ao atual ocupante da Presidência da República. Grande parte desses dias você passou 22 horas confinado com mais três presos em uma minúscula cela da Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira, mais conhecida como Bangu 8.
O Daniel do Antigo Testamento foi jogado na cova dos leões e seus três companheiros de infortúnio foram jogados numa fornalha pelo rei da Babilônia. Você foi jogado numa cela infestada por ratos.
Se as leis brasileiras valessem alguma coisa atualmente, você estaria fora da cadeia há 152 dias
O Estado brasileiro, personificado pelo STF, depois de bloquear seus bens, destruir sua carreira política, rasgar a Constituição, ignorar por completo o senso de proporções, também lhe afastou cinco meses da companhia de sua esposa, filhas, mãe e familiares.
Já passou da hora de você ir para casa, Daniel. E, mesmo consciente dos riscos que isso traz no Brasil do regime PT-STF, eu não deixarei de dizer que você hoje é vítima de uma grande, escandalosa e monstruosa injustiça. Há muito tempo você deixou de ser um mero prisioneiro para tornar-se um refém.
Para soltura de reféns, cobra-se um resgate. Em agosto, esse resgate foi pago: os R$ 247 mil da multa imposta por Alexandre de Moraes foram depositados nos cofres do Poder Judiciário, graças às doações de seus apoiadores (porque os seus bens, é claro, foram confiscados pelo regime, conforme ensina Karl Marx no “Manifesto Comunista”). O detalhe é que esse tipo de resgate não é cobrado de assassinos, traficantes, pedófilos e outros criminosos. Mas a essa altura já sabemos que o seu caso é diferente, Daniel.
Você foi transformado em vítima da teoria do Direito Penal do Inimigo, criada pelo jurista alemão Gunther Jakobs nos anos 80. Segundo essa teoria, os indivíduos devem ser separados entre pessoas comuns e inimigos da sociedade. Uma vez classificado como inimigo, o indivíduo perde todos os seus direitos e garantias fundamentais.
Embora o próprio STF tenha rejeitado por diversas vezes a teoria de Jakobs, vemos que ela está sendo aplicada contra uma categoria especial de brasileiros: você e os réus do 8 de janeiro
A diferença é que o Direito Penal do Inimigo, em sua concepção original, era aplicado contra assassinos, psicopatas, torturadores, terroristas e pedófilos. No Brasil, ela está sendo aplicada a pessoas que desagradam o governo.
A frase de Orwell em “A Revolução dos Bichos” nunca foi tão precisa para descrever a realidade: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”.
Daniel, eu tive a oportunidade de ler aqui o relatório do seu exame criminológico. É um texto bastante detalhado, em que você conta sua história de vida, diz que começou a trabalhar com 14 anos numa lanchonete, depois foi operário da construção civil, ingressou na Polícia Militar e, finalmente, em 2018, eleito deputado federal.
Sobre o seu “crime” — gravar aquele famigerado vídeo —, você afirma com todas as letras “ter noção da gravidade do delito” e “reconhece a própria responsabilidade”, acrescentando que “à época dos fatos, não tinha consciência de que seu comportamento poderia configurar delito desta gravidade e alega que seus comportamentos foram movidos por forte emoção e pelas particularidades daquele momento político.
Admite que deveria ter tido maior cuidado na forma de se expressar, especialmente em razão da visibilidade social que possuía devido ao cargo que ocupava. Afirma que o período no cárcere favoreceu a reflexão quanto aos fatos alegando que “não vale a pena antagonizar de maneira a gerar conflitos e sim debater de forma conciliadora”.
De maneira clara — continua o relatório — você expressa “arrependimento quanto ao delito cometido, justificando este arrependimento em razão do sofrimento que trouxe a si e à própria família, e que não poderia insuflar a população desta maneira”. Quanto aos impactos da prisão, você diz que “o afastamento das filhas representa o fator mais difícil com o qual tem que lidar, e que a prisão o teria levado a refletir não somente sobre os próprios atos, mas a reavaliar valor das coisas e que estar com a família é o que mais importa”.
E, no entanto, Daniel, mesmo depois de você ter feito essas declarações todas, mesmo depois de você ter o seu comportamento considerado “excelente” pelas autoridades prisionais, mesmo depois do limite de prazo para a progressão, mesmo depois do pagamento da multa, mesmo depois da afirmação de que você pretende se dedicar aos estudos de Direito e Psicologia e à vida familiar — mesmo depois de tudo isso, o ministro Alexandre de Moraes considerou o relatório do seu exame criminológico insuficiente e “extremamente superficial”.
Talvez ele espere de você o mesmo comportamento que Stálin e seu procurador-geral, Andrei Vyshinsky, exigiam para os réus dos Processos de Moscou: a humilhação completa, a autocrítica rastejante, a confissão dos piores e mais abjetos crimes.
Como escreveu o jurista André Marsiglia: “Um dia os livros de história contarão que, embora nossa lei exigisse apenas boa conduta para progressão de regime, um juiz de nossa Suprema Corte exigiu que um político punido por sua fala fosse obrigado a mostrar arrependimento e prometesse silêncio no futuro. E, depois disso, ainda negou a progressão. Abuso à lei, abuso à liberdade de expressão, abuso ao parlamento”.
Esta carta vai ficando por aqui, Daniel. Dou-lhe uma última notícia: ontem eu conversei com seu advogado, o Dr. Paulo Faria. Ele está em Washington e hoje vai protocolar, junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, uma denúncia sobre os abusos cometidos contra você. Ele tem esperança — assim como eu tenho — de que a sua libertação virá em breve, de que você vai poder abraçar suas filhas, sua esposa, sua mãe, e retomar a vida.
O nome Daniel significa “Deus é meu juiz” — e eu espero firmemente que Ele tenha a palavra final nessa história de dor e sofrimento.
Enquanto você estiver preso, enquanto um patriota do 8 de janeiro estiver preso, todos nós, brasileiros tementes a Deus, estaremos presos também.
Conteúdo editado por: Aline Menezes