| Foto: Arquivo pessoal/Paulo Briguet
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Hoje, no Natal do Senhor, peço licença aos meus sete leitores para falar de um personagem que marcou os meus 14 primeiros anos de vida e há quatro décadas é uma presença constante nos meus sonhos e reminiscências. Seu nome é Francisco Oreste Briguet. 

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Apenas sua companheira da vida inteira, minha querida Vó Maria, o chamava por Oreste, o mesmo nome do herói da tragédia grega, destituído de um s, certamente por erro do homem do cartório (esses homens dos cartórios antigos erravam muito). 

Seu primeiro nome era o mesmo do pai, meu bisavô Francisco Briguet, provavelmente batizado François Briguet, por ter nascido na Bélgica. Tinha nome de santo (Francisco), nome de herói (Orestes), mas quase todos o tratavam pelo nome de família: — Seu Briguet.

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Todas as famílias têm um Seu Briguet na sua história. Ele era aquela figura que as pessoas associam naturalmente a esta época do ano; para mim, desde a primeira infância, é impossível falar em Natal sem me lembrar dele. Seu Briguet era o nosso anjo do Natal.

Há muitos anos eu tenho um sonho recorrente: alguém me convida para a Festa. Assim mesmo, em letra maiuscula, como se fosse um nome próprio. Antes do Grande Dia, tento me preparar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Compro roupas novas, passo por um longo período de regime alimentar e abstinência, estudo cuidadosamente os mapas rodoviários para não me perder no caminho do evento, ensaio um repertório de músicas e piadas perfeitos para a ocasião. Mas, no último momento, alguma coisa errada acontece e eu acabo perdendo a Festa. Trata-se, portanto, de um sonho triste.

Muitas vezes, neste sonho, encontro meu avô. Do nada, Seu Briguet aparece diante de mim, com aquele andar e aquele sorriso inconfundíveis, mas não diz nada. Feito São José na Bíblia, ele não pronuncia uma única palavra

Porém, na última vez em que sonhei com a Festa, Seu Briguet fez algo diferente. Silencioso, ele se levantou da poltrona em que estava e começou a caminhar para a porta de saída; ao abrir a porta, voltou-se para mim e, com um simples gesto, me convidou a segui-lo.

Então Seu Briguet me leva para uma esquina do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, onde quatro operários, iluminados pela luz de um lampião, fundam uma agremiação esportiva que batizam de Sport Club Corinthians Paulista, em homenagem a um time inglês que recentemente havia feito uma excursão pelo Brasil. A poucos metros dali, uma senhora chamada Rosália Briguet, amamenta o seu filho recém-nascido, Francisco Oreste. Sim, meu avô nasceu no mesmo bairro, no mesmo ano e quase no mesmo dia do seu amado Corinthians.

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Depois, Seu Briguet me conduz pelas ruas da Barra Funda, outro bairro operário de São Paulo, onde um pintor de automóveis e seu neto de 6 anos, vestido com o uniforme do Palmeiras, se dirigem até a quitanda do Seu Duílio, onde compram frutas — uvas, ameixas e mangas — para a ceia de Natal. Os parentes do interior já chegaram. Seu Duílio olha para o cliente amigo e diz entre risos:

— Briguet, o seu neto é mais esperto que você!

Na época, o Corinthians amargava um jejum de 23 anos sem títulos, e o Palmeiras estava em excelente fase. Sempre considerei que um dos maiores gestos de amor de meu avô era dizer ao netinho quando Palmeiras e Corinthians se enfrentavam:

— Eu torço pra dar empate. Assim ninguém fica triste, meu neto. Nem eu, nem você.

O menino acaba de aprender a ler na Cartilha Sodré. Ao lado da máquina registradora da quitanda, há um cartaz com os seguintes dizeres: "FIADO SÓ AMANHÃ".

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Aquela frase deixa o menino intrigado. Pela primeira vez, ele se vê diante do mistério do tempo: hoje, ontem e amanhã se revezam em uma dança sem fim! 

Em seguida, ele me leva para uma festa. Não era ainda a Festa; me parecia um simples casamento, numa cidade do interior paulista. Ao redor dele, um grupo de homens ouve Seu Briguet contar piadas. De repente, ele se levanta e diz:

— Agora vocês me dão licença, que o meu ônibus sai às dez horas.

— Nada disso! Você não vai embora tão cedo, Seu Briguet.

E alguém se dispõe a ir até a rodoviária e trocar a passagem de meu avô para mais tarde.

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Agora estamos na sua oficina de pintura — no lugar hoje ocupado por aquele horrível Memorial da América Latina, que minha Vó Maria chamava de “pardieiro do Niemeyer”. 

Seu Briguet liga o compressor para pintar de azul um carrinho de lata que ganhei no Natal passado. Sinto o cheiro da tinta e do tinner, que para mim evocam um mar de lembranças, como a madeleine de Proust. 

Enquanto ele pinta o meu automóvel de moleque, eu brinco com a sua paleta de cores, fascinando-me com as infinitas denominações da luz: amarelo ouro azul turquesa vermelho volcano verde garrafa amarelo pastel azul cobalto vermelho fúria verde água amarelo queimado azul celeste vermelho rubi verde esmeralda...

A Festa é o Natal

Vejo Seu Briguet aos 22 anos, marchando com as tropas paulistas na Revolução Constitucionalista de 1932; apitando um jogo entre Santos e Juventus no velho estádio da Rua Javari, na Moóca; assobiando, assobiando sempre; descobrindo a pescaria depois dos 50 anos (meu tio precisava amarrá-lo com a corda na árvore, porque Seu Briguet não sabia nadar); passando por sérias dificuldades financeiras nos anos 60; sonhando em acertar os 13 pontos na Loteca; feliz na formatura e no casamento das duas amadas filhas; radiante no nascimento dos quatro netos; fazendo o sinal da cruz na testa das filhas e dos netos quando alguém ficava doente; jogando futebol com os amigos de infância em um campinho às margens do Tietê (que, na época, era um rio próprio para banho); triste no dia em que assistimos à derrota do Brasil para a Itália na Copa de 1982; folclórico nos almoços em família, quando costumava dizer o preço dos alimentos. 

A propósito, ouço Seu Briguet soltar um de seus bordões preferidos:

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— Lixa, Briguet!

Ou seja: para pagar as contas, honrar os compromissos e sustentar a família, ele precisou lixar muitas e muitas latarias de automóveis. Como ele está ao meu lado, aproveito para dizer que o seu lema continua sendo repetido — agora, por seu neto escritor. Sem mérito algum para tamanha honraria, acabei me tornando o Seu Briguet.

Eu poderia continuar descrevendo aqui muitas outras cenas e episódios que Seu Briguet me mostrou no sonho, mas não quero abusar da paciência de meus sete leitores. Digo apenas que, graças a esse sonho, eu finalmente pude entender o sentido do meu sonho da Festa.

A Festa, meus amigos, é o Natal. O Natal eterno e luminoso e infinito que nos espera no Céu. Deve ser por isso que Deus escolheu justamente o dia 25 de dezembro de 1984 — há exatos 40 anos — para levar o Seu Briguet de volta para Casa.

PS: Diga nos comentários quem é o Seu Briguet da sua família.

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