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“Força é mudares de vida.”
(Rainer Maria Rilke)
Há muitos anos, quando eu não acreditava em Deus, certa manhã entrei no quarto do escritório para pegar um livro (se não me engano, era “O Inominável”) e minha avó estava rezando no escuro.
— Desculpe, vó, eu não vi que a senhora estava aí.
— Pode pegar o livro, meu filho.
Vó Maria rezava baixinho, diante de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida — a mesma imagem que tenho na minha mesa de trabalho agora. Ah, se eu pudesse voltar no tempo, deixaria Samuel Beckett de lado e rezaria o terço com Maria!
Hoje eu sei que Maria estava rezando por mim, por minha irmã, por meus primos, por suas filhas. Talvez naquela manhã — eu havia passado a noite no bar — ela estivesse rezando especialmente por minha volta ao Pai. Talvez ela soubesse que eu andava disputando as bolotas dos porcos, como o filho pródigo. Talvez.
Mas o que eu posso dizer com segurança é que um dia minha avó rezara pela própria vida. Aos 32 anos, em 1950, ela deu entrada ao Hospital Sorocabana, em São Paulo, com um quadro de peritonite aguda. Por vários dias, ela atravessou um calvário de dores intensas, febre alta, vômitos, diarreia e suores profusos. Todas as tentativas de combater a infecção que tomava seu ventre se mostraram infrutíferas.
Depois de uma visita noturna à paciente, um médico chamou à parte Mãe Mulata — assim minha bisavó era chamada por todos — e disse:
— Infelizmente não há mais nada a fazer. O quadro de sua filha é irreversível.
Naquela noite, Mãe Mulata saiu andando pelas ruas da Lapa e chorou. Conhecida por sua força e obstinação, ela nunca havia chorado daquela maneira, nem mesmo na morte dos filhos João e Iracema. Então Mãe Mulata voltou seus olhos para o céu — naquele tempo ainda era possível ver muitas estrelas no céu paulistano — e suplicou:
— Maria, você é Mãe. Salva aquela que tem o teu nome!
No quarto, Maria agonizava. Colocou a mão sobre o ventre, onde parecia haver um vazio do tamanho do mundo — e esse vazio doía profundamente.
De repente, alguém abriu a porta e entrou no quarto.
A paciente então percebeu a aproximação de uma mulher, vestida com hábito de freira. Era uma linda moça, com ar majestático, olhos bondosos e a pele bastante escura
A mulher colocou suas mãos sobre a fronte de Maria.
— Enfermeira, por favor... Eu tenho sede...
— Eu sei, minha filha.
Dizendo isso, a mulher embebeu uma gaze em um copo de água e umedeceu os lábios da paciente.
— Moça, me diz: eu vou morrer?
— Não, Maria. Você vai ficar bem. Há misericórdia.
Quando Mãe Mulata voltou ao quarto, a filha estava sem febre. Na manhã seguinte, conseguiu sentar-se no leito. Em dois dias, recebeu alta. Os médicos não tinham explicação para a melhora da paciente: a peritonite simplesmente desapareceu da noite para o dia.
Antes de deixar o hospital, Maria perguntou ao médico (o mesmo que havia desenganado):
— Doutor, quem é aquela irmã enfermeira que trabalha à noite?
— Aqui não temos irmãs enfermeiras. Não somos um hospital religioso.
E agora estou aqui, minha amada Vó Maria, muitos anos depois, escrevendo esta pequena história e sentindo saudade de você.
Estou aqui, o filho pródigo que voltou ao Pai graças às suas orações, e tenho diante de mim a imagem diante da qual você rezava o terço naquela manhã, quando eu entrei no quarto, sem esperança, para buscar um livro. No entanto, a verdadeira obra estava ali, na minha frente, e eu não tinha olhos para ver. Mas tenho palavras para dizer agora:
— Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da minha vida...
Conteúdo editado por: Aline Menezes