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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Quatro anos depois

Eleições 2022: reavaliando e reafirmando minhas posições

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Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL). (Foto: Divulgação/Band)

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“Ninguém é obrigado a tomar parte na desordem espiritual de uma sociedade. Pelo contrário, todos são obrigados a evitar essa sandice e viverem sua vida em ordem.” (Eric Voegelin, Science, Politics and Gnosticism)

“Oh, nunca, nunca se alimentarão sem nós! Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto eles permanecerem livres, mas ao cabo de tudo eles nos trarão sua liberdade e a porão a nossos pés, dizendo: ‘É preferível que nos escravizeis, mas nos deem de comer’.” (Fiódor Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov)

Às portas das eleições mais descaradamente perversas de nossa história, gostaria de, nesse pequeno texto, caríssimo leitor, fazer uma avaliação de três artigos meus, publicados, respectivamente, em 11 de outubro de 2018 (Voto: unindo o útil ao desagradável), 26 de outubro de 2018 (Eleições 2018: o povo contra as ideologias) e 1.º de novembro de 2018 (O que esperar dos governados por Bolsonaro?), nos quais falo especificamente das eleições daquele ano. Tais artigos foram escritos e publicados após uma série de textos, iniciados ainda no mês de maio, nos quais eu advertia para o perigo messiânico que se desenhava e para a necessidade imperiosa de que buscássemos a prudência (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). Ainda que muitos pensem que, em algum momento, apoiei isso que está aí, tais artigos, se não surtiram efeito prático na natimorta direita brasileira, pelo menos servem-me de prova e consolo.

No primeiro artigo, fiz uma análise dos antecedentes políticos e culturais que nos levaram àquela situação, e disse que “após mais de 50 anos sendo submetidos a uma cultura de contestação – senão de destruição – e de exaltação do que há de mais sórdido no pensamento ocidental, a cultura e a educação do país foram reduzidas a mera militância política, e não há o que se possa fazer em curto ou médio prazo.” Ou seja, qualquer esperança de solucionar o problema brasileiro por meio da política deveria ser absoluta e prontamente descartada. E adverti:

“Não há saída fácil para esse problema, que não uma paciente ocupação de espaços, como a realizada anteriormente por esses que hoje dominam todas as esferas de produção cultural e de educação. É preciso catalisar o senso de desordem que a sociedade brasileira tem demonstrado nos últimos anos – através de um conservadorismo que se manifesta não por convicção, mas por inércia –, e propor um caminho de restauração da ordem. E, sem grandes rupturas, sem arroubos revolucionários ou reacionários, realizar uma prudente reformação do imaginário cultural brasileiro. Não para destruir o que foi construído até agora, mas para restaurar o que foi destruído desde então.”

Qualquer esperança de solucionar o problema brasileiro por meio da política deveria ser absoluta e prontamente descartada

Entretanto, afirmei que era “preciso votar”, e ponderei: “numa democracia (ou no que deveria ser uma), é preciso escolher o representante dos ʻinteresses do povoʼ. E votar, para mim, é sempre escolher o mal menor; é sempre escolher entre aquele que se meterá menos em minha vida e o que vai, efetivamente, me prejudicar. Aliás, essas são minhas perspectivas para o Brasil atual. A conjuntura me obriga a tal posição. Não tenho ilusões”. Essa foi a postura de muitos que, como eu, viveram os últimos anos dos governos petistas sendo chamados de “fascistas” somente por lhe fazer oposição. Mas tenho a meu favor (ou pelo menos a favor de minha consciência) que meu voto, no primeiro turno, não foi para Jair Bolsonaro, e meus motivos estão fartamente justificados nos artigos listados acima.

Ao se definir o segundo turno, assumi a postura de que evitar o retorno do PT ao poder era a única alternativa, personificada em seu antípoda. No artigo de 26 de outubro, reagi à agitação daqueles dias, em que movimentos desesperados como #EleNão e todo o ódio perpetrado por aqueles que se diziam representantes da democracia atingiam níveis altíssimos de insanidade. Disse eu: “Essa gente enlouquecida perdeu completamente a capacidade de analisar o que está ocorrendo, não consegue – por conta de seu sentimentalismo tóxico e de seu ódio – sequer articular sua rejeição a fim de resistir racionalmente, e agora berra, a plenos pulmões, evocando o futuro do pretérito com Chicos e Caetanos nos palanques e muita ressaca dos anos 1960. Patético, no mínimo”.

Mas aqui vai um mea culpa: é forçoso admitir, com tristeza, que, naquele momento, eu não via Jair Bolsonaro – apesar de todas as evidências – como alguém capaz das indignidades a que assistimos nos últimos anos. Errei ao escrever: “A verdadeira ʻviúva da ditaduraʼ deu de cara com um cadáver insepulto. Não porque o candidato militar seja um representante autodeclarado do ʻano que não terminouʼ, mas porque suas declarações sobre o período colocam em xeque a narrativa de martírio construída por aqueles que, atualmente, ocupam as mais altas esferas do poder nacional”. Sim, Jair Bolsonaro é um representante da ditadura militar brasileira em pleno século 21. E não é porque a esquerda vive eternamente presa naqueles anos, a endeusar seus facínoras e a assentar toda sua narrativa de confronto nessa oposição anacrônica – agora já não tão anacrônica assim –, que podemos menosprezar os muitos maus feitos daquele regime. A saudade daqueles tempos, a que pessoas da geração de minha mãe às vezes se referem ingenuamente, não deve nos levar a erros de julgamento. A história está aí.

Ainda digo, resignado: “Se essa resposta [à falência do projeto petista] foi canalizada num candidato – ou mesmo se esse candidato se aproveitou da insatisfação popular para ancorar nela seu projeto pessoal –, não vem ao caso nesse momento. Nem se há outro projeto ideológico em curso. Mais importante é que políticos, ideólogos, artistas, jornalistas, idiotas úteis e todos aqueles que estão desesperados com a possibilidade de ver seu pior pesadelo se tornar realidade – mesmo que simbolicamente – compreendam que não se pode enganar o povo para sempre”. Infelizmente essas pessoas ainda não aprenderam. Continuam a rotular qualquer alternativa a eles de mal absoluto, a demonizar adversários, a perseguir e ostracizar oponentes. A diferença é que agora fazem isso diante de um espelho que também os demoniza. A esquerda não sabe viver sem um inimigo a ser destruído; o bolsonarismo também não. Os dois polos são essencialmente antidemocráticos.

E o terceiro e último artigo, findo o segundo turno e confirmada a vitória de Bolsonaro, tem um título que não poderia ser mais sugestivo: O que esperar dos governados por Bolsonaro? Sim, pois eu não tinha qualquer esperança com o governo que se iniciava. Apesar de, num impulso de antipetismo, ter votado nele – voto do qual me arrependo –, sabia que o governo, sustentado por uma corja de parlamentares que iam da inexperiência ao oportunismo e à incapacidade mais alarmante, não seria capaz de sequer preparar o caminho para uma restauração da ordem. E o motivo, apontado num dos artigos listados acima, é que “não é possível reformar politicamente uma sociedade na qual seus governantes têm a alma em desordem”. E como analiso, toda a filosofia de Platão foi baseada nessa constatação.

A esquerda não sabe viver sem um inimigo a ser destruído; o bolsonarismo também não. Os dois polos são essencialmente antidemocráticos

Curiosamente, nesse terceiro artigo sobre a eleição evoquei o escritor Thomas Mann e seus discursos radiofônicos contra Hitler – registrados na obra Ouvintes alemães! –, cuja denúncia fundamental era a deturpação da noção de liberdade provocada pelos nazistas. Disse Mann – e aqui reproduzo do artigo:

“Como foi possível o nacional-socialismo se qualificar como ‘movimento de liberdade alemão’ quando é impensável, para o bom senso, que semelhante horror tenha algo que ver com liberdade? Isso foi possível através de uma inversão da noção de liberdade, inversão a que o pensamento alemão sempre se inclinou, e que, como tudo que é falso e funesto nesse pensamento, foi levado ao extremo pelos nazistas.”

E complemento: “Ou seja, foi o próprio povo alemão e sua cultura, à época inclinados a uma deturpação da noção de liberdade, que permitiram a chegada de Hitler ao poder. O maníaco encontrou um caminho propício para propagar seus crimes. Ele não surgiu do nada, não foi alguém fabricado; ele se aproveitou dessa noção errônea de liberdade, que Thomas Mann chama de exterior, política – que menosprezava a liberdade interior, que colocava a noção de ʻser alemão, apenas alemão e nada mais, nada além dissoʼ, numa espécie de ʻegoísmo popularʼ, num ʻindividualismo obstinadoʼ que estava acima de tudo – para dominar, pois ʻum povo que não é livre internamente e responsável por si mesmo não merece a liberdade externa; não pode falar de liberdade. E quando precisa dessa sonora palavra, então a emprega erroneamenteʼ.” Qualquer semelhança – sem cair na Lei de Godwin, mas notando a semelhança de método de toda e qualquer ideologia, mais ou menos sanguinária – não e mera coincidência.

Pois bem, mais uma eleição se aproxima e as perspectivas são ainda menos animadoras do que eram em 2018. Temos ainda um país em frangalhos – e ferido por quase 700 mil mortes numa pandemia que o próprio presidente disse que não mataria 800 pessoas; mas agora com uma agravante: estamos moralmente fragilizados e desmoralizados. O conservadorismo está desmoralizado, o cristianismo está desmoralizado, o governo está desmoralizado, a política está ainda mais desmoralizada. Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em três instâncias, está solto – ao que tudo indica, com a ajuda de Bolsonaro, que, inclusive, se orgulhou de ter acabado com a Operação Lava Jato. Absolutamente entregue ao Centrão, esse governo não tem a mínima chance, se reeleito, de avançar com pautas importantíssimas para o país. A derrama descarada e criminosa de dinheiro público por meio da famigerada “PEC Kamikaze”, a fim de buscar a reeleição, com benesses que durarão até dezembro desse ano e cuja manutenção nem sequer foi prevista no próximo orçamento, cobrará o seu preço. Não há qualquer sinal de melhora.

O brasileiro, vocacionado para a servidão e doutrinado na dependência extrema dos políticos – como bem nos mostra meu amigo Bruno Garschagen em seu inescapável Pare de acreditar no governo –, mais uma vez depositará sua esperança na imanentização do eschaton cristão e no sebastianismo visceral. De minha parte, só garanto que não cometerei o mesmo erro de 2018. Não se negocia com a barbárie e, dessa vez, não há menos pior – pelo menos se o segundo turno se confirmar entre os dois líderes nas pesquisas. Continuarei o meu trabalho de formiguinha, crendo, como Platão, que se quisermos, de fato, mudar a sociedade, o único caminho é a educação de longo prazo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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