Reescrever a história burguesa em linguagem marxista […] é como reescrever uma sinfonia de Haydn com o ressoar dominante de um tambor, de modo que tudo fica permeado por um tom premonitório de catástrofe, e nada se resolve. (Roger Scruton, Pensadores da nova esquerda, É Realizações)
A história da escravidão e da abolição brasileiras sofrem disputa político-ideológica desde o século 19. A assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel, foi, à época, festejada pela população e pelos abolicionistas, mas menosprezada por aqueles cujo interesse era enfraquecer ainda mais a monarquia – os republicanos – e, obviamente, os escravocratas – os landlords, como os chamava André Rebouças – para mim, o herói máximo da abolição. Aliás, é dele um dos maiores testemunhos do que se sucedeu ao 13 de maio de 1888. Em 6 de março de 1893, da África, escreve ao amigo Visconde de Taunay relatando os acontecimentos de exatos um ano após a abolição:
A 13 de maio de 1889 eu tive uma tristeza inexplicável. Lembra-se que foi necessário telegrama para tirar-me de meu isolamento em Petrópolis… Na tarde de 22 de agosto de 1888, quando voltávamos da faustosa e hipócrita recepção ao imperador [em sua volta da Europa], eu lhe disse ao ouvido: “Agora posso dormir tranquilo”… Pareciam-me que, a todo momento, os escravocratas assassinavam a princesa redentora e cobriam de sangue a página santa que havíamos escrito durante longos oito anos… A 22 de agosto de 1888, ainda esperavam os celerados indenização e Chins [chineses]…
Dom Pedro II, em 04 de março de 1889, numa conversa com Rebouças diante da agitação republicana, disse: “Eu sou republicano… Todos sabem que, se fosse egoísta, proclamava a república para ter glórias de Washington… Somente sacrificava o Brasil à minha vaidade”.
Apesar de ser conhecida a figura, digamos, pouco dada a conflitos do imperador, que o fez protelar as resoluções o quanto pôde, e por isso, também, a abolição ter demorado muito para ocorrer – era uma vergonha o fato de sermos o último país das Américas a ainda possuir um regime escravista –, não é correto dizer que ele não a queria – ou mesmo o absurdo de que era escravocrata. Logo após assumir o trono, em 1840, alforriou todos os seus escravos, passou a pagar salários para os chamados Escravos da Coroa e a custear os estudos de seus filhos. Teve como pajem um negro, de nome Rafael, que o acompanhou durante toda a vida; e já em 1864 havia recomendado a causa da abolição ao seu ministério, demonstrando seu receio de que a Guerra de Secessão americana insuflasse os ânimos por aqui. Herdara o sentimento abolicionista de seu pai, D. Pedro I, que, em secreto, lutou pela causa dos escravizados. Em artigo publicado sob um pseudônimo, em 1822, cujo título, curiosíssimo, era Carta escrita pelo sacristão da freguesia de S. João do Itaboraí ao vigário da mesma freguesia, narrando os acontecimentos dos dias 09 e 12 de janeiro deste ano, dentre outras coisas de caráter abolicionista, disse: “eu sei que meu sangue é da mesma cor que o dos negros”. D. Pedro I também concedeu lotes de terras aos escravos que alforriou.
Com a princesa Isabel não poderia ter sido diferente. Criada sob essa influência, tinha, desde muito cedo, simpatia pela causa dos escravizados. Apesar de todo o culto que se criou em torno dela após a abolição, que parece, mesmo, aos nossos distantes olhos, exagerado, seria injusto dizer que seus atos, na campanha abolicionista, foram interesseiros ou realizados por pressão dos ingleses – fato esse que ninguém confirma; antes, o historiador americano Seymour Drescher, que escreveu uma obra monumental sobre a abolição no mundo, diz: “Parece haver pouca evidência de que grupos ou regiões geográficas ativas nos movimentos abolicionistas de outros lugares do mundo, tenham exercido um papel proeminente nas pressões abolicionistas durante a geração seguinte ao encerramento do tráfico brasileiro de escravos de 1850”. A pressão da Inglaterra só ocorreu durante o tráfico negreiro; no abolicionismo, as entidades abolicionistas inglesas apoiaram, mas sem influência direta. No período final da campanha, Joaquim Nabuco viajou à Inglaterra (e a outros lugares, como França e Espanha) e pediu o apoio da British and Foreign Anti-Slavery Society, inclusive publicando artigos abolicionistas brasileiros em seu jornal Anti-Slavery Reporter.
O fato é que ela tinha consciência de que demorara a agir; seu próprio testemunho é insuspeito. Diz, em nota reproduzida pelo historiador Heitor Lyra em sua biografia monumental de D. Pedro II: “Os acontecimentos precipitavam-se, tive vergonha de mim mesma, que talvez por um excesso de comodismo, para evitar uma estralada, o que sempre me é desagradável, descuidava de fazer com que se retirasse o ministério que, sentia, não fazia em primeiro lugar o bem do país; depois com ele me arrastava para o abismo”. Por outro lado, também são notórias suas manifestações de apoio à causa abolicionista; ou seja, quando entrou no jogo, entrou para ganhar (inclusive perdendo o trono). Fez passeata abolicionista com os próprios filhos e os estimulou a fazer um jornal para que, com a venda, pudessem comprar alforrias. Ajudou a sustentar o Quilombo do Leblon e escondeu escravos fugidos no palácio imperial – local que, segundo Silva Jardim, queria transformar num quilombo. José Murilo de Carvalho, em sua biografia do monarca, diz:
Tendo o imperador viajado em junho de 1887 para tratamento de saúde na Europa, Isabel assumiu a regência. Dessa vez, a princesa não manteve a postura discreta que adotara nas duas primeiras regências. Revelou-se agressivamente abolicionista. Suas razões eram de natureza política e religiosa. Pelo lado da política, a abolição podia converter-se em crédito a favor do terceiro reinado; no que toca à religião, seu catolicismo recomendava a libertação como um imperativo da caridade cristã. Estabeleceu contato direto com abolicionistas, sobretudo com André Rebouças, e envolveu-se abertamente em ações a favor dos escravos. (grifo meu)
Em 4 de maio de 1888, dias antes da assinatura da Lei Áurea, Rebouças afirma, em seu Diário: “Almoçaram no Palácio Imperial de Petrópolis, 14 africanos, foragidos das fazendas circunvizinhas”. Essa era a disposição da princesa Isabel pela abolição. Dizer que tinha medo de perder o trono também não é verdade, pois estava plenamente consciente disso; a abolição feita de uma vez, sem levar em consideração o que pediam os escravocratas, soava revolucionário. O marido tentou demovê-la, dizendo: “não assine, Isabel, é o fim da monarquia”; ao que ela respondeu: “assiná-lo-ei, Gaston; se agora eu não fizer, talvez nunca mais tenhamos oportunidade tão propícia. O negro precisa de liberdade, assim como eu preciso de satisfazer ao nosso Papa e nivelar o Brasil, moralmente, aos demais países civilizados”. E Joaquim Nabuco, um dos grandes heróis do abolicionismo, testemunha no seu Minha formação:
No dia em que a Princesa Imperial se decidiu ao seu grande golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha para lhe dar senão o seu sangue, e ela não o quereria nunca para cimentar o trono de seu filho… A classe proprietária ameaçava passar-se toda para a República, seu pai parecia estar moribundo em Milão, era provável a mudança de reinado durante a crise, e ela não hesitou; uma voz interior disse-lhe que desempenhasse sua missão, a voz divina que se faz ouvir sempre que um grande dever tem que ser cumprido ou um grande sacrifício que ser aceito. Se a Monarquia pudesse sobreviver à Abolição, esta seria o seu apanágio; se sucumbisse, seria o seu testamento. Quando se tem, sobretudo uma mulher, a faculdade de fazer um grande bem universal, como era a emancipação, não se deve parar diante de presságios; o dever é entregar-se inteiramente nas mãos de Deus.
E o breve diálogo com o Barão de Cotegipe – que foi contra a assinatura da lei – no ato da promulgação, foi profético. Disse ela: “E então, barão, não foi acertada a votação desta lei?”. Ao que ele respondeu: “Redimiste, sim, uma raça, mas perdeste o vosso trono”.
Agora, os republicanos, que desejavam o poder, se radicalizavam cada vez mais. O jornalista Antônio Silva Jardim, um dos mais radicais militantes republicanos, defendia não só a queda da monarquia, mas o fuzilamento do marido da princesa Isabel, o Conde D’Eu, a quem o movimento republicano havia feito seu principal inimigo. Diz o biógrafo da princesa, Hermes Vieira:
Prosseguindo na luta, os republicanos, não satisfeitos com as rajadas enfurecidas que zurziam contra a soberana família, começaram a divulgar uma série de de notícias, falsas algumas, outras com vislumbres de fundamentos, todas, porém, envenenadas pela ansiedade dos contendores em atingir o poder. Às vezes, a um fato natural, lógico, forjavam dar uma fisionomia descabida absurda, monstruosa.
E esse foi o espírito até o golpe de 15 de novembro de 1889 e após, quando expulsaram do país, covardemente, a família imperial, de madrugada, para que a população não percebesse, pois amava o imperador e os seus. Como disse o Conde de Weisersheimb, embaixador da Áustria no Rio de Janeiro, cinco dias após a proclamação: “A grande massa da população, tudo quanto não pertencia ao Partido Republicano, relativamente fraco, ou à gente ávida de novidades, ficou completamente indiferente a essa comédia, encenada por uma minoria decidida”. Ou mesmo o testemunho conhecidíssimo de Aristides Lobo, líder republicano paulista, que disse, sobre o desfile dos militares no 15 de novembro: “o povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam, sinceramente, estar vendo uma parada [militar]”. E Rui Barbosa, um dos articuladores do golpe republicano, já desiludido, em 1914 arrematou o que, de fato, era aquilo:
De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto… Essa foi a obra da república nos últimos anos. No outro regime o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para sempre. As carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos temiam a que, acesa no alto, guardava a redondeza como um farol que não se apaga… Em proveito da honra… da justiça… E da moralidade gerais.
A imperatriz Teresa Cristina morreu 40 dias após o banimento, logo que chegou em Portugal, confidenciando à Baronesa de Japurá: “Maria Isabel, eu não morro de doença. Morro de dor e de desgosto”. O monarca, mudando-se para Paris, passou a viver em hotéis baratos, recebendo ajuda de amigos, pois se negara a receber a pensão que governo republicano lhe oferecera. É comovente o relato do Conde de Afonso Celso, na obra O imperador no exílio, que narra a visita que ele e seu pai, o Visconde de Ouro Preto, fizeram ao imperador logo após a morte da imperatriz. Reproduzo-o inteiro, peço que o estimado leitor leia com atenção:
Era modestíssimo o seu quarto. A um canto, cama desfeita. Em frente, um lavatório comum. No centro, larga mesa coberta de livros e papéis. Um sofá e algumas cadeiras completavam a mobília. Tudo frio, desolado e nu. Os joelhos envoltos num cobertor ordinário, trajando velho sobretudo, D. Pedro II lia, sentado à mesa, um grande livro, apoiando a cabeça na mão. Ao nos avistar, acenou para que nos aproximássemos. Meu pai curvou-se para beijar-lhe a mão. O Imperador lançou lhe os braços aos ombros e estreitou-o demoradamente contra o peito. Depois, ordenou que nos sentássemos perto dele. Notei lhe a funda lividez. Houve alguns minutos de doloroso silêncio. Sua Majestade o quebrou, apontando para o livro aberto e dizendo com voz cava:
—Eis o que me consola.
—Vossa Majestade é um espírito superior. Achará em si mesmo a força necessária.
D. Pedro não respondeu. Depois de novo silêncio, mostrou-nos o título da obra que estava lendo, uma edição recente da “Divina Comédia”. Então, com estranha vivacidade, pôs-se a falar de literatura, a propósito do livro de Dante Alighieri. Mudando de assunto, discorreu sobre várias matérias, enumerando as curiosidades do Porto, indicando-nos o que, de preferência, deveríamos visitar. Não aludiu uma única vez à Imperatriz. Só ao cabo de meia hora, quando nos retirávamos, observou baixinho:
—A câmara mortuária é aqui ao lado. Amanhã, às 8 horas, há missa de corpo presente.
Saímos. No corredor, verifiquei que o meu chapéu havia caído à entrada do aposento imperial. Voltei para apanhá-lo. Pela porta entreaberta, presenciei cena tocantíssima: Ocultando o rosto com as mãos magras e pálidas, o Imperador chorava como um menino; por entre os dedos escorriam lhe as lágrimas sofridas, que caíam sobre as estrofes de Dante.
Morreu o imperador em 5 de dezembro de 1891, em Paris, recebendo cortejo de milhares de pessoas. Suas últimas palavras foram: “Que Deus me conceda esses últimos desejos: paz e prosperidade para o Brasil”. E sua cabeça, no caixão, foi deitada em cima de um pequeno travesseiro com areia da costa brasileira; esse foi o seu desejo, expresso num bilhete, que dizia: “É terra de meu país; desejo que seja posta no meu caixão, se eu morrer fora de minha pátria”. A princesa Isabel morreu em 14 de novembro de 1921, na Casa d’Orleães em Dreux, França.
A família imperial pode não ter sido – como não foi, de fato – a responsável exclusiva pela abolição; e é fato, também, todos cremos, que poderia a tê-la realizado antes. Mas seu ato foi, no mínimo, corajoso e expressou o seu amor pelo país. O protagonismo, desde as primeiras manifestações, no jornal Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que já em 1814 criticava a escravidão; o jornal O Mulato ou O homem de cor, de Francisco de Paula Brito, o primeiro jornal abolicionista brasileiro, que circulou em 1833; as manifestações de D. João VI, de D. Pedro I e Pedro II – este último, que tinha pelo negro Rebouças um amor filial; e por fim, a fina flor ativista e intelectual que, a partir de 1880, movimentou não só a capital do império, mas todo o país com o brado abolicionista. Tudo isso foi importante. Dentre as figuras ilustres, destacamos: José do Patrocínio, André Rebouças, Luiz Gama, Ferreira de Menezes, Vicente Ferreira de Souza, Joaquim Nabuco, João Clapp, Castro Alves, Rui Barbosa e Carlos Gomes. Também as mulheres Chiquinha Gonzaga, Luísa Regadas e Nísia Floresta tiveram papel de destaque na luta. Fora isso, o próprio povo, que participando ativamente dos meetings abolicionistas, das conferências-concerto e das passeatas, foi absolutamente fundamental para a concretização do crucial 13 de maio. Ou seja, ninguém tem o protagonismo exclusivo da Causa; porém, todos, inclusive a monarquia, tiveram, cada um a seu tempo, importância. Mas é uma pena que a narrativa perniciosa dos republicanos tenha encontrado guarida nos historiadores marxistas, que, tratando a família imperial, de forma absurdamente reducionista, como parte da elite – em sua sanha por dividir a sociedade em burgueses e proletários, opressores e oprimidos –, não pôde ver em seus atos qualquer papel benéfico, pois era parte dos opressores-burgueses-exploradores.
Que a nossa história seja restabelecida com todas as contradições que ela carrega. Que lidemos com elas como uma nação adulta, sóbria, que encontrou o seu caminho. E não aceitemos mais que ela seja vilipendiada por interesses ideológicos ou mesmo partidários.
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