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“A confiança, engendrada pelas orientações protestantes, é oposta ao reino da submissão, característico de um espírito católico vítima da desconfiança. Brilhante paralelo que, embora submetido às leis da retórica, revela impiedosamente uma divergência mental decisiva”. (Alain Peyrefitte - A sociedade da confiança).
Quem acompanha essa coluna com frequência já me viu dizendo, mais de uma vez, que somos um “quase-país”. Tudo aqui parece ser milimetricamente organizado para dar errado, para não funcionar, para privilegiar o jeitinho, o esquema, a vantagem infame e a procrastinação. Mais do que isso: é um lugar feito para quem se recusa a assumir responsabilidades e ama jogá-las para os outros.
Desde os governantes, passando pelas elites intelectuais e políticas, até à arraia-miúda, o povão, todo mundo parece ser especialista somente numa coisa: a esquiva
Óbvio que, propositadamente, generalizo, mas não muito. Não quero fazer grandes análises antropológicas, mas creio que o leitor me compreende perfeitamente; o pecado original do brasileiro parece ser o jeitinho e a Lei de Gerson. A maneira como lidamos com os nossos problemas, de como simplificamos as situações mais complexas, de como remendamos algo que deveria ser definitivamente solucionado, de como “acochambramos” o que deveria ser o certo, e de como, mais do que tudo, tentamos, a todo momento, nos eximir de nossas mais elementares responsabilidades é não só o retrato, mas a origem de nosso atraso civilizacional. Com isso, criamos uma sociedade de desconfiados. É Alain Peyrefitte, citado na epígrafe, em seu inescapável “A sociedade de confiança”, quem nos explica:
“A sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ganha-perde: uma sociedade onde a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo (ʻse tu ganhas, eu percoʼ); sociedade propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ganha-ganha (ʻse tu ganhas, eu ganhoʼ); sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação”.
Por sermos uma sociedade de desconfiados, para que mantenhamos um nível mínimo de sociabilidade, somos forçados ao estetismo. Parecemos ser confiáveis, mas nossos negócios, nossos acordos, nossas relações, são sempre mediadas por uma dose de insinceridade escamoteada a ponto de, não raro, prejudicamos e somos prejudicados com aquela fisionomia de “não tenho nada a ver com isso”.
Vamos ao caso específico – embora tenha certeza de que o leitor já passou por algo parecido – que me trouxe a seguinte reflexão: dias atrás, minha amantíssima mãe, de 82 anos – apesar de permanecer bem ativa e aparentar muito menos –, foi acometida de uma forte gripe. Ela faz atividades físicas num Centro Educacional Unificado (CEU) duas vezes por semana, mas, durante os dias de gripe, ficou impossibilitada de comparecer. Como a disputa por uma vaga no CEU é imensa, é preciso ficar atento para não perdê-la. Se não me engano, com duas faltas a matrícula é cancelada. Por isso, para os casos de doença, o CEU exige a apresentação de atestado médico a fim de provar que as faltas se deram por motivos de saúde. Aí começam os problemas de uma sociedade baseada na desconfiança.
Por determinação do plano de saúde – caríssimo, como de costume – os médicos só podem fornecer atestados do dia – ou seja, uma simples declaração de comparecimento. A esdrúxula explicação que me deram foi: como muitas pessoas solicitam atestado de sacanagem (para faltar no trabalho, por exemplo), o plano simplesmente decidiu parar de fornecê-los por mais de um dia. Ou seja, devido ao mau uso de uns, aqueles que realmente precisam são prejudicados, para que a instituição não tenha o custo de lidar com o problema de maneira mais efetiva e individualizada.
Trata-se daquilo que Thomas Sowell chamou, em seu “Discriminação e disparidades”, de Discriminação II, na qual decisões são tomadas não levando em consideração caso a caso, mas baseando-se em “noções insubstanciais ou animosidades”.
Do ponto de vista meramente econômico, é mais caro analisar individualmente todas as situações em contextos em que elas podem ser enormes; talvez fosse necessário um funcionário só para isso. Então emprega-se uma discriminação baseada em recorrência, em grupo, de forma generalizada. Aí, o barato para o plano sai caro para o cliente.
Pois bem, e o que minha mãe fez, então? Pegou o atestado do dia e eu levei até o CEU. O problema é que ela tinha atividade no outro dia também. Para evitar o trabalho de ir novamente ao pronto socorro, só para pegar mais uma declaração de comparecimento, ela me disse: “amanhã estarei melhor, então vou lá e converso com o professor, pelo menos garanto a minha presença sem precisar ir ao hospital de novo”. E foi o que ela fez: chegou lá, explicou a situação e sua condição física – dores no corpo e fraqueza –, contando com a compreensão do professor. Entretanto, para sua surpresa, a resposta dele – inacreditável – foi: “faça as atividades devagarinho, não pode ficar sem fazer nada aqui não”.
Minha mãe é uma pessoa pouquíssima dada a conflitos, de modo que, resignada, tentou, mas não conseguiu. Algum tempo depois, o professor passou por ela e disse, de modo displicente: “e aí, d. Benê, tudo bem?”. Ela, já contrariada, fragilizada, desabou a chorar e disse que eles não tinham coração, que ela já era de idade, estava com dor etc., e ele insistindo para que ela fizesse os exercícios. Mas a resposta do professor foi: “o problema não sou eu, mas o pessoal ‘lá de cima’” – ou seja, os funcionários da burocracia, que controlam as faltas e as vagas – e deu de ombros. Em seguida, a aula acabou.
Ou seja, é uma cadeia de desconfiança que começa no plano de saúde e desemboca no professor de atividade física, e que gera uma cadeia de insensibilidade na mera tentativa de se proteger, de escapar da mira da burocracia e da responsabilidade de tratar as situações de acordo com suas especificidades.
Minha mãe frequenta aquele espaço regularmente há dois anos (desde a inauguração), é uma octogenária, idônea, que sempre agiu corretamente. Mas nada disso importa. O que importa é que ninguém quer ser responsabilizado por nada e todo mundo só quer salvar a própria pele. No serviço público – falo com propriedade –, em que tudo é absurdamente burocrático e extremamente persecutório, “tirar o corpo fora” é regra.
Nosso desafio é deixarmos de ser uma sociedade de desconfiança. Mas, para isso, precisaríamos de uma total reforma de nossa imaginação moral, do modo como nos vemos e vemos uns aos outros. Não de cima para baixo, dos governos para a sociedade, mas em sentido inverso e cultural. Como diz Peyrefitte: “a confiança é vivida na relação bilateral de troca de bens e de serviços, no respeito das especificidades locais. Ela não se decreta pelo alto, pois a confiança não se ordena. É ela que ordena tudo”. Reconhecer tal condição é o primeiro passo. O segundo é a educação.