Estou convencido de que ainda é melhor falar a verdade, mesmo que isso me custe a vida. Pois você não encontrará em nenhum dos mandamentos de Deus ou da Igreja que um homem é obrigado, sob pena de pecado, a prestar juramento, se comprometendo a obedecer tudo o que lhe for ordenado por seu governante secular. (Franz Jägerstätter)
Em artigo publicado em 31 de maio de 2018, cujo título é “Uma carona na boleia da história, ou: reflexões sobre uma revolução brasileira”, por ocasião da famigerada greve dos caminhoneiros, que causou transtornos severíssimos à população e deixou no país um rastro de devastação econômica que chegou a R$ 50 bilhões – e que de nada adiantou, pois esses profissionais, por meio de seus sindicatos, continuam a ameaçar a sociedade –, evoquei o espírito revolucionário de Silva Jardim, o jornalista republicano que morreu nas lavas do Vesúvio, e que, durante a campanha ferrenha pelo golpe republicano, tripudiava das admoestações conservadoras de Joaquim Nabuco dizendo: “A revolução é como Saturno, devora os próprios filhos, observa sentencioso o Dr. Joaquim Nabuco, e aplicando uma velha frase. Ela foi aplicada, no seu sentido restrito, inalterável, à Revolução Francesa, visto que os que por ela trabalharam foram vítimas dos grupos dos novos partidos que se formaram, morto Danton às mãos de Robespierre, morto Robespierre às mãos da população. Mas não é o caso da Revolução Brasileira” (grifo meu). Ou seja, o radical jornalista acreditava que a revolução pregada por ele, que passava por lançar em total descrédito – com xingamentos e ataques pessoais constantes – não só a capacidade de governar da família imperial, mas sua moral, não tinha nada de semelhante à Revolução Francesa, que sob os brados de liberdade, igualdade e fraternidade, assassinou dezenas de milhares de pessoas. Para ele, “a nação brasileira não tem virilidade física e moral o bastante para produzir grandes sacrifícios em prol de uma transformação política no país”.
O fato é que o golpe republicano ocorreu sem derramamento de sangue, de modo sui generis, com um de seus principais agentes, o marechal Deodoro da Fonseca, gritando “Viva o imperador!” enquanto destituía a família imperial de seu governo e a despachava para o exílio; no entanto, além de a desolação ter sido quase total, com o arrependimento de muitos de seus líderes (como demonstro no artigo), o país nunca mais foi estável, atravessando as décadas de golpe em golpe até chegarmos a essa frágil democracia que vivemos.
Um conservador ou liberal jamais deveria compactuar com qualquer movimento revolucionário, seja de direita ou de esquerda
Meu artigo foi um alerta para muitos daqueles que insuflaram a greve dos caminhoneiros enxergando nisso uma maneira de capitalizar politicamente na desgraça do país – dentre estes, estava o então pré-candidato Jair Bolsonaro e seus principais apoiadores, inclusive o recém-falecido Gustavo Bebianno – à época, presidente nacional do PSL –, que subiu na carroceria de um caminhão e fez um discurso inflamado em favor de seu candidato. Aliás, vale um testemunho: a greve dos caminhoneiros foi o cisma definitivo de um grupo grande de amigos que se dividiu entre apoiadores e não apoiadores da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência. Para nós, um limite inegociável havia sido transposto – para além da difamação leviana perpetrada por um dos filhos do atual presidente, em 2017 (ano em que ele já estava em plena campanha) contra um desses amigos. Um conservador ou liberal jamais deveria compactuar com qualquer movimento revolucionário, seja de direita ou de esquerda. A comparação que alguns fizeram com a Boston Tea Party americana foi não só descabida como oportunista.
Posteriormente, em artigo publicado em 12 de julho de 2018, eu pedia paciência e me inspirava na história de Doutor Fausto, para alertar:
O fato é que a tentação pelo poder é um arquétipo antiquíssimo! Na tradição ocidental, remete a Adão e Eva e o fruto proibido; a troca da comunhão com Deus pelo conhecimento imediato (não mediado por Deus). E, desde então, a todo tempo, somos tentados pela ilusão de que somos capazes de suplantar as imperfeições inerentes a essa vida e, em geral, de modo inconsequente, depositarmos nossa esperança numa ideia, num grupo ou até mesmo numa pessoa. Em todo momento nosso senso de prudência é testado pela urgência de nossas aspirações imediatas. Se o mundo jaz no maligno, como diz a Bíblia – ou mesmo é uma cópia imperfeita de um mundo transcendente, como diz Platão –, então nosso desejo de que as coisas melhorem deve, necessariamente, ser mediado pela consciência de que somos limitados por nossas imperfeições.
Em artigo de 23 de agosto do mesmo ano, a temperança era o tema, e eu dizia: “Ter cautela diante do desconhecido e submeter nossas paixões ao escrutínio da razão é tudo o que precisamos para uma vida digna e virtuosa, não importando a que circunstâncias formos submetidos”. A temperança é uma das principais virtudes cardeais e também, podemos dizer, uma das principais virtudes conservadoras, pois, nas palavras do grande João Camilo de Oliveira Torres – infelizmente jamais lido pela imensa maioria dos atuais conservadores-cristãos-bolsonaro2022: “Podemos dizer que são as reformas contrarrevolucionárias, no sentido que Joseph de Maistre dava à expressão, no sentido de ‘o contrário de uma revolução’, não de uma ‘revolução ao contrário’ (O elogio do conservadorismo); e é impossível compreender essa máxima sem compreender, antes, a noção aristotélica de meio-termo, a temperança. Ainda em 2018, no artigo de 20 de setembro, evoquei a obra de Dostoiévski no sentido de vê-la como uma ode à liberdade. O próprio gênio russo se insurgiu contra os movimentos revolucionários de sua pátria, condenando o socialismo como uma “negação do sentido da realidade histórica”; afirmação à qual acrescentei: “Toda ideologia, seja de direita ou de esquerda, nega a realidade histórica, nega os pressupostos da liberdade e nega o princípio de falibilidade humana, pedras fundamentais da ordem da realidade – inclusive da realidade política. Nossa liberdade deve estar submetida à certeza de que não há soluções fáceis para a nossa condição no mundo, e só a plena consciência dos fundamentos da realidade pode nos livrar de sucumbir aos encantos ideológicos. Nem só de pão viverá o homem”.
Em 11 de outubro de 2018, após o resultado do primeiro turno da eleição, reafirmei, no artigo daquela semana, minha posição de que “só poderemos ser içados da cova abissal na qual nos encontramos com a ajuda de Deus e de um redirecionamento cultural que só será possível mediante um trabalho paciente e persistente de professores, escritores, artistas, jornalistas etc.; mas, sobretudo, de uma sociedade comprometida com aquilo que T. S. Eliot chamou de ‘coisas permanentes’. Os políticos são acessórios, muitas vezes desagradáveis, nesse processo”. E mais: afirmei que “o intelectual que sucumbe à paixão política mostra-se motivado por uma espécie de ‘revolta egofânica’ (termo de Voegelin), pois, em estado de ‘obsessão libidinosa’, tenta moldar a realidade a seus esquemas, apostando no imediatismo que, ideologicamente, o beneficia. E, então, aquele que é chamado a ponderar o arrebatamento das massas sucumbe ao seu alarido. O homem maduro (spoudaios) de Aristóteles é trocado pelo intelectual orgânico de Gramsci”.
A dois dias do segundo turno da eleição, analisei o desmantelamento da oposição PT-PSDB e o desespero da oposição que mal compreendia o que estava ocorrendo, e que uma mudança de direção estava em curso – se ideológica ou não, tanto fazia diante da total inépcia daqueles que, mesmo testemunhando o resultado dos descalabros da era PT, não viam o tsunami popular que se avolumava diante deles sem qualquer controle institucional; que “o que acontece hoje, no Brasil, em relação a toda essa corja política e intelectual que temos é que, após mais de 40 anos derramando ideologias sobre a cabeça do povo brasileiro – sobretudo das periferias –, sem qualquer preocupação com as reais necessidades das pessoas; de décadas tentando substituir seus valores por discursos persuasivos e desagregadores – para, através disso tudo, dominar pelo assistencialismo e pela escravidão ideológica dos ressentidos –, a sociedade surtou e percebeu que a promessa de um mundo melhor se mostrou, na verdade, um projeto de dominação total e perene”.
Minhas expectativas se confirmaram e Jair Bolsonaro foi eleito em 28 de outubro de 2018, com aproximadamente 58 milhões de votos. O que eu disse, então? Na semana seguinte, o título do artigo provocava uma inversão de perspectiva: “O que esperar dos governados por Bolsonaro?” Mais uma vez minha posição é exposta de maneira inequívoca, e a escolha que fiz para ilustrá-la foi de ninguém menos que o escritor Thomas Mann e sua campanha contra o nacional-socialismo num programa de rádio transmitido, desde o exílio, pela BBC de Londres. Mann denunciava que a liberdade do povo alemão, que elegeu Hitler, não era real, mas uma espécie de “egoísmo popular” e “individualismo obstinado”, e que “um povo que não é livre internamente e responsável por si mesmo não merece a liberdade externa; não pode falar de liberdade. E quando precisa dessa sonora palavra, então a emprega erroneamente”. Mann descreve aquilo que Eric Voegelin irá analisar em profundidade em sua obra inescapável para o nosso tempo, Hitler e os alemães, onde nos apresenta um dilema:
Se Hitler era estúpido ou um criminoso, e o povo votou nele em manadas, então o povo também deve ter sido estúpido e criminoso. Mas isso não é possível, então Hitler não era estúpido nem criminoso. A outra possibilidade, o ponto que está sofrendo resistência, é que talvez um grande número de alemães, talvez a grande maioria, eram de fato extraordinariamente estúpidos, que, em matéria política, um grande número ainda seja, e que o que vemos aqui seja uma situação de apodrecimento intelectual e ético que, de fato, fundamentou a ascensão do fenômeno de Hitler. Não é apenas um problema alemão. É um problema internacional.
A era Bolsonaro representa um total desvio do conservadorismo que buscávamos antes de sua meteórica ascensão. Trata-se de um reacionarismo ideológico e perigoso
Ou seja, a eleição de Hitler era culpa consciente do povo, e não era possível tergiversar dessa responsabilidade. No mesmo artigo trago Platão para o debate, pois, em seu conceito de democracia, seria necessário um programa de educação que evitasse que a população caísse nas armadilhas da tirania. E, para não dizer que tenho algum tipo de birra com o bolsonarismo crescente, cito um dos artigos mais brilhantes de ninguém menos que Olavo de Carvalho, “O orgulho do fracasso”, em que nos diz que são “o pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas estruturais e constantes do fracasso desse povo”; do nosso povo. E eu mesmo arremato, dizendo que:
Os cinco pontos levantados por Olavo podem ser encontrados em cada iniciativa messiânica que surge em nossa experiência pessoal e pública – bem como em nossa política. Somos sempre empurrados para uma noção errônea de que o progresso ou o conserto de determinada situação desfavorável cabe num slogan cuja aplicação levará, invariavelmente, à resolução de nossos problemas mais profundos. Nossa religião, há muito, tornou-se uma tentativa vã de manipular o sagrado em nosso favor – quando não, de mantê-lo longe de nossas decisões claramente reprováveis. O conhecimento, quando esse afã pragmático rasteiro e apressado toma o lugar da reflexão, é demonizado, tido como algo elitista. E, por fim, todo o brilhantismo de muitos decai e se submete à mera busca por um lugar ao sol – ao centro de poder e influência.
Terminei o ano sugerindo uma reflexão, em 28 de dezembro, sobre o tipo de príncipe que escolheríamos para nos orientar, o de Maquiavel ou o de Antoine de Saint-Exupéry. A proposta do governante maquiavélico é clara, e uma citação, retirada do artigo, pode nos esclarecer. Diz Maquiavel: “Todos concordam quanto é louvável que um príncipe mantenha sua palavra e viva com integridade, não com astúcia; todavia, em nossa época vê-se por experiência que os príncipes que realizaram grandes feitos deram pouca importância à palavra empenhada e souberam envolver com astúcia as mentes dos homens, superando por fim aqueles que se alicerçaram na sinceridade”. Ou seja, o príncipe que Maquiavel nos apresenta é um manipulador contumaz, em cuja palavra não devemos confiar. Por outro lado, o príncipe de Saint-Exupéry é pautado por outros ideais, pois “para o monarca criado pelo filósofo florentino, ‘é bem mais seguro ser temido que amado’; mas o príncipe de Saint-Exupéry, mesmo diante da serpente e sentindo medo, não se desespera, pois confia que maior é o amor – e através dele podemos contemplar as estrelas e nelas vermos o Príncipe da Paz”.
Em 2019 não desisti de, vez por outra, manifestar minha opinião em relação à nossa realidade atual. Artigos como “A sedução da ‘nova era’”, de 11 de janeiro; “Atração fatal”, de 21 de janeiro; “O texugo, a ideologia e o exemplo romeno”, de 27 de maio; e “A era dos alaridos”, de 16 de setembro, por exemplo. Em todos procuro ponderar a posição conservadora, pautada naquele ideal burkeano tão bem adaptado por aqui por homens da envergadura João Camilo de Oliveira Torres, e do liberalismo histórico, tradicional no Brasil desde o século 19, na figura de intelectuais ilustres como Visconde de Cairu, Antônio Pereira Rebouças, Joaquim Nabuco e Antonio Paim. Não tenho me posicionado de acordo com meus interesses circunstanciais, pois, no momento, não tenho interesse em cargos públicos para além do que já exerço como professor do ensino básico.
Não era hora de tocar lira enquanto Roma pega fogo. Mas Bolsonaro o fez, com direito a dancinha, selfies, chutes em pixulecos e acenos
Portanto, como podes ver, caríssimo leitor, sempre procurei manter a coerência para com o que acredito, e acho engraçado quando pessoas dizem que estou “em cima do muro” ou sou “isentão”. Minha posição é crítica, como foi nos governos anteriores; minha posição está definida desde o início, foram os outros que mudaram em busca de vantagens. Não tenho pretensão de elogiar um governo por fazer o seu trabalho; nem de salvar o Brasil depositando minha esperança em políticos – ou na política partidária. Diante do exposto, não tenho nenhum problema em afirmar, categoricamente, que nesse fim de semana vi minhas expectativas começarem a se concretizar de maneira assombrosa. A era Bolsonaro representa um total desvio do conservadorismo que buscávamos antes de sua meteórica ascensão. Trata-se de um reacionarismo ideológico e perigoso, que vem, a cada dia, mostrando suas garras. E, infelizmente, vem ao encontro da mentalidade ainda sebastianista do brasileiro. O comportamento das pessoas que, nesse último fim de semana, saíram às ruas numa atitude de confronto com as instituições democráticas que, gostemos ou não, existem para que haja equilíbrio entre os poderes, são um exemplo de como nos afastamos daquilo que era a política da prudência – pregada, inclusive, por muitos intelectuais que hoje cerram fileiras com o autoritarismo que já nos domina. Histeria e devoção são as palavras mais apropriadas para descrever o que vi. E o principal agente da desordem espiritual e social dessa gente me parece ser o maior interessado nela: o presidente da República.
Ao sair para saudar os manifestantes – diante de um problema gravíssimo de saúde pública que pode não só infectar muitas pessoas como também colapsar o sistema de saúde do país –, Jair Bolsonaro, estando ele mesmo com suspeitas de estar infectado com o Covid-19, deu um passo, provavelmente sem volta, em direção à total apropriação pessoal do Estado brasileiro e de confronto com a ordem institucional e pública; tudo isso em nome de um projeto de poder autoritário baseado numa miragem de maioria popular que não se refletiu nem nas urnas, uma vez que, fora os que votaram em seu adversário, a quantidade de votos nulos e brancos da eleição que o elegeu passou dos 30%. O absurdo silêncio institucional em relação à morte de Gustavo Bebianno, um dos principais articuladores de sua campanha e um dos ministros mais importantes do início de seu governo, transformado em inimigo repentinamente, já havia me parecido um ato de total desrespeito ao cargo que ocupa, um exemplo do perverso patrimonialismo que nos persegue há séculos. Ir às ruas nessas circunstâncias foi esticar a corda da democracia ao seu limite.
Desse modo o presidente desafia frontalmente as instituições da República, transforma em pessoal uma disputa com o Congresso que deveria se dar nos termos meramente políticos (termos que ele conhece muito bem, pois foi deputado por 30 anos), desobedece a recomendação de seu próprio ministro da Saúde, e, tal qual o príncipe maquiavélico, rompe com a palavra empenhada – que advertia para que a população não fosse às ruas – e ele mesmo se transforma num possível propagador da doença que já causa desastres socioeconômicos em muitos países. Mesmo que a doença não tenha essa propagação toda no Brasil, o caos econômico – previsto mesmo antes da pandemia, é bom lembrar – tende a se intensificar de maneira devastadora. Não era hora de tocar lira enquanto Roma pega fogo. Mas ele o fez, com direito a dancinha, selfies, chutes em pixulecos e acenos enquanto, da rampa do palácio, ouvia gritos pedindo o AI-5. É tudo muito assustador, e só estamos no início do segundo ano de seu governo.
Como brasileiro, o que me resta é pedir que Deus tenha misericórdia de nossa nação, dominada por pessoas que O honram com os lábios, mas mantêm o coração nas trevas.
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