E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome, para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra. Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam; e o Senhor disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. (Gênesis 11:4-6)
Ainda no início do filme Hotel Ruanda (2005), de Terry George – que indiquei num vídeo recente para o canal do Instituto Brasil 200, no YouTube, que podes assistir aqui –, estrelado pelo grande Don Cheadle, o jornalista Jack Daglish, protagonizado por Joaquin Phoenix, recém-chegado à cidade, pergunta a um jornalista local o que diferencia os tutsis dos hutus. Ele responde: “Segundo os colonos belgas, os tutsis são mais altos e elegantes; foram os belgas que criaram essa divisão”. Ele pergunta “como?”, e seu interlocutor continua: “Escolhiam as pessoas com narizes mais finos e pele mais clara. Eles mediam a largura do nariz. Os belgas usaram os tutsis para governar o país. Quando se foram, deixaram o poder aos hutus, que, é claro, se vingaram dos elitistas tutsis por anos de repressão”. George parece não se convencer, então se dirige a duas moças que estão sentadas ao lado deles: “Ouça, boneca, posso lhe fazer uma pergunta pessoal? Você é hutu ou tutsi?” Ela responde: “Tutsi”. “E sua amiga, tutsi?”. “Não, sou hutu”. Ele, perplexo, se volta ao jornalista com quem conversava e diz: “Podiam ser gêmeas”.
Tal cena evidencia o absurdo que foi o genocídio fratricida que ceifou a vida de mais de oitocentas mil pessoas, por uma rivalidade absolutamente artificial, produzido, primeiro por uma necessidade de domínio, depois por um clima de vingança no qual um dos elementos fundamentais da organização social, a linguagem, não mais servia para a comunicação, mas somente para a expressão de seu ódio – simbolizado pelas transmissões de rádio que incitavam a população hutu a “cortar as árvores mais altas”. Numa situação dessas, cada indivíduo ou grupo só ouve aquilo que vai ao encontro de seus próprios interesses. O antropólogo e escritor Flávio Gordon expôs, de maneira basilar, em artigo escrito para esta Gazeta do Povo, o total abismo moral a que foram lançados os hutus por uma “corrupção ideológica da história ruandesa”:
Há algo no genocídio de Ruanda que até hoje nos intriga, um traço alarmante que o diferencia dos demais genocídios modernos, notadamente do Holocausto. Um ano após o ocorrido, um comissário político da FPR sintetizou-o com perspicácia: “Quando tomamos Kigali, pensamos que enfrentaríamos criminosos de Estado; em vez disso, enfrentamos uma população criminosa”. Sim, o genocídio ruandês não foi simples obra de um governo, de um regime político, de um exército. Ele foi perpetrado pela população civil hutu em peso, aí incluídos intelectuais, professores, médicos, enfermeiras, juristas, ativistas de direitos humanos etc., uma gente que, até o dia anterior, talvez não houvesse matado sequer uma galinha, e que agora não hesitava em chacinar vizinhos e parentes. Seu cenário não foram campos de concentração afastados do escrutínio público, mas ruas, cidades, colinas e pântanos espalhados por todo o país. Tratou-se, em suma, de um genocídio popular.
Tal corrupção ideológica, que levou as pessoas a se voltarem contra seus próprios concidadãos – e até familiares –, foi composta por “meias-verdades”, mas ninguém estava mais interessado em ouvir a verdade como um todo ou mesmo ouvir o outro, a única coisa que importava era seu projeto de vingança. É curioso, pois, como diz Gordon, “era verdade que, durante o período pré-colonial, e especialmente durante a administração belga, os tutsis formaram uma aristocracia que subjugava os hutus. Sim, muitos hutus sofreram nas mãos de poderosos tutsis. No entanto, acreditar que os tutsis da época do genocídio descendiam diretamente dos poderosos de outrora, como se o tempo tivesse parado, e como se pudessem ser ignorados os séculos de miscigenação”, era menosprezar aspectos importantes que os uniam. Ou seja, o fenômeno que antecedeu o genocídio ruandês foi de caráter, digamos, linguístico, aquilo que o filósofo e teólogo alemão Eugen Rosenstock-Huessy chamou, em sua obra A origem da linguagem (Record), de uma das quatro “doenças da linguagem”: a guerra (as demais são a revolução, a degeneração e a crise).
O problema da Torre de Babel nos é apresentado, ao fim e ao cabo, como um problema de linguagem
De acordo com Rosenstock-Huessy, “os povos em guerra não qualificam de bem ou de mal as mesmas coisas. A vitória de um é a derrota do outro. O segredo deve ocultar os planos de ambos os lados”. Ou seja, a comunicação deixou de ser efetiva e deu lugar à ocultação. E se tais conflitos ocorrem no interior de uma mesma unidade linguística, dá a guerra civil, que “prepara o terreno para a dualidade da linguagem”. Rosenstock-Huessy afirma, também, que “podemos definir a guerra, em termos de linguagem, como uma situação em que não escutamos o inimigo porque estamos demasiado sensíveis a qualquer rumor ou murmúrio dentro de nosso próprio grupo”; e outro detalhe importante levantado pelo filósofo é que “na guerra, pessoas que julgam que devem ser escutadas são excluídas”.
Ao tratar da revolução, Rosenstock-Huessy afirma que opera-se, nesse caso, uma “ruptura com a linguagem”. A antiga linguagem, que produzia a ordem institucional na sociedade, é rejeitada por uma nova linguagem, ainda inarticulada, um “imenso alarido” que produz um “conflito entre o velho e o novo, entre a linguagem de ontem e a de amanhã, com os grupos da linguagem do amanhã no ataque”. As demais “doenças” – a degeneração e a crise – não são tão importantes para nossa presente reflexão; no entanto, ao tratar da guerra e da revolução, Rosenstock-Huessy me levou, imediatamente, enquanto meditava em suas palavras, ao brilhante ensaio de Michael Oakeshott sobre a Torre de Babel, presente no volume Sobre a História e outros ensaios (Topbooks).
Em suas considerações iniciais, Oakeshott diz:
A decaída raça humana solta na terra logo encontrou-se em dificuldades. Em vez de desfrutar da companhia uns dos outros (como crianças poéticas) em uma vida de perpétuo assombro ante as maravilhas do mundo, alimentando-se de frutos, ou empenhando-se alegremente em descobrir e cultivar as riquezas da terra, gratos pelo que podiam obter dela, os seres humanos encheram-se de ilimitadas necessidades e de uma urgência selvagem em satisfazê-las. Negligentes quanto à sua beleza, desdenhosos de suas dádivas e convencidos de sua hostilidade, eles devastaram o mundo, buscando apenas gratificar seus perversos. e insaciáveis desejos. E suas relações com seus semelhantes seguiram o mesmo padrão: elas eram movidas por ganância, inveja, medo e violência.
Não é fácil viver em sociedade, uma vez que nossos anseios individuais são sempre muito mais pujantes que a solidariedade que nos humaniza. Diante disso, o mito da Queda é um elemento fundamental de nossa moralidade, pois é a partir dele que – pelo menos o Ocidente – fomos capazes de produzir, através da junção entre Grécia e Jerusalém, as mais avançadas democracias do mundo, baseadas nos freios e contrapesos de nossas limitações. Por isso, a compreensão do espírito revolucionário que tomou Nemrod (para usar a grafia de Oakeshott) e os seus na construção da Torre de Babel é importantíssimo, pois é um arquétipo preciso de todos os processos de insurreição luciferina (querer ser como Deus) que ocorreram na história da humanidade.
É importante notar que o problema da Torre de Babel nos é apresentado, ao fim e ao cabo, como um problema de linguagem. Os revolucionários liderados por Nemrod queriam, como diz a Escritura, construir uma torre que os fizesse conhecidos e que também os mantivesse sempre unidos. Diz Oakeshott: “nesse esforço para subjugar Deus e a Natureza às ambições humanas, eles haviam se deparado com o trabalho de uma vida, e tornaram-se escravos de um ideal”. Subjugar Deus, nesse sentido, é assumir o seu lugar, tomar o controle da história nas próprias mãos e trocar as promessas do Senhor por um ideal. Mas Deus não permitiu que isso ocorresse e – não com um novo dilúvio, mas com uma “inundação de palavras” – destruiu os planos de Nemrod. Em sua primeira interpretação, arremata Oakeshott:
O tema dessa história é, pois, o ataque titânico contra os céus. Em sua versão mais antiga, o céu é a morada de um Deus um tanto severo, interessado apenas no bem e no mal, e sem nenhuma disposição para fazer alianças com aqueles que, nem sempre destituídos de boas intenções, tinham dificuldades em evitar as costumeiras negligências de uma vida humana. E ela remonta ao dilúvio, a ocasião na qual Deus demonstrou tanto sua impaciência para com a depravação humana quanto seu comando sobre as forças destrutivas da natureza. Assim, aqueles que se rebelam contra tal Deus são pessoas que não vêem o motivo pelo qual suas delinquências deveriam ser levadas tão a sério, e que desejam apenas evitar as conseqüências da depravação. Elas buscam libertação de um potentado em cujas promessas não mais põem fé. A história preocupa-se em evitar um reino de terror real ou imaginário, e com a conquista de uma segurança absoluta em relação aos poderes hostis de Deus e da Natureza.
Tanto no caso real do massacre em Ruanda, quanto no mito bíblico da Torre de Babel, o que temos é a corrupção ideológica tomando conta do espírito humano, o levando a cometer crimes contra o seu próximo e contra Deus. De acordo com Eric Voegelin, em suas Reflexões autobiográficas (É Realizações) o primeiro fenômeno das ideologias é a destruição da linguagem, pois “uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela” – tais como a Torre de Babel ou mesmo as diferenças raciais fictícias entre tutsis e hutus. Os símbolos de alienação ideológica produzem segundas realidades, onde os fatos, o testemunho dos antigos, os “gigantes” sobre os quais podemos nos assentar para enxergarmos mais longe e evitarmos processos de desintegração social, são todos ignorados e dão lugar aos ideais revolucionários. Em sua análise da ascensão do nacional-socialismo, em Hitler e os alemães (É Realizações), Voegelin é preciso:
Primeiro, se a parvoíce se torna geral, tornar-se-á então socialmente dominante; e é particularmente vista como socialmente dominante e correta se for adornada pela autoridade. Assim temos a condição de um regime totalitário – onde determinadas ideologias são prescritas e propagadas àqueles submetidos ao Estado e devem, portanto, ser corretas […] Então, se as pessoas que são autoridades dizem algo, certamente não pode ser falso. Ou somos todos estúpidos, ou somos inteligentes comparados com os outros, que são todos estúpidos; e se tivéssemos acreditado neles, teríamos sido estúpidos, e assim por diante.
Agora compare, caríssimo leitor, os critérios acima – juntamente com as histórias aqui relembradas – com qualquer outro movimento de ascensão revolucionária do qual tenhas notícia e note que sempre são iniciados por uma queda vertiginosa do nível da linguagem, que é substituída por palavras de ordem, rotulações infundadas e triunfalismo inconsequente. Aqueles que se deixam doutrinar por tais processos – que sempre iniciam com um punhado de “meias-verdades” – passam a integrar a militância responsável por trazer até os demais o futuro glorioso. Não importa mais o diálogo, e as palavras passam a significar, ao modo de Humpty Dumpty, o sentido que cada um quer dar a elas, num processo de destruição da linguagem que levará, invariavelmente, à babelização e ao assassinato – ideológico ou, quiçá, até físico.
Agora, se quiseres experimentar, paciente leitor, um embrião desse confuso processo de construção de segundas realidades e destruição da linguagem que, caso recrudesçam, levam a descarrilamentos revolucionários, basta fazeres um comentário crítico ao governo de Jair Bolsonaro em uma rede social e ver a mágica acontecer.