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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Visões de mundo

A esquerda e os evangélicos

Trecho do show de Madonna transmitido pela Rede Globo e divulgado nas redes sociais. (Foto: Reprodução/ Rede social - TV Globo)

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“A luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra esse mundo que tem na religião seu aroma intelectual. A miséria religiosa é, simultaneamente, expressão e protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura sufocada, o coração de um mundo sem coração, o sentido de um mundo sem sentido. A religião é o ópio do povo.” (Karl Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel)

No dia 4 de maio de 2024, uma quase septuagenária Madonna, ídolo musical dos anos 1980 e conhecida como a Rainha do Pop, famosa por suas músicas e sua postura (para dizer o mínimo) ousadas, realizou um show histórico na Praia de Copacabana para centenas de milhares de pessoas. As redes sociais e o constrangedor debate político brasileiro foram à loucura. E foram alguns dias recheados das discussões mais ultrapassadas, das indignações mais seletivas e inúteis e da tietagem mais bocó, protagonizadas por adolescentes maiores e menores de idade. Madonna fez seu show, faturou seus milhões, levou a comunidade LGBT ao paraíso e foi embora, deixando para trás uma tragédia de proporções bíblicas no Rio Grande do Sul e uma fake news, produzida por um jornalista que passou, obviamente, incólume à patrulha dos “defensoras da democracia”, sobre ter doado R$ 10 milhões ao estado castigado pela maior enchente de sua história.

Mas algo me chamou particularmente a atenção nas redes sociais nesses dias intensos de Madonna no Brasil: o embate entre evangélicos e fãs da cantora – que se traduz, ao fim e ao cabo, num embate entre conservadores religiosos e progressistas anticristãos. Conhecida por suas críticas à religião – mais especificamente ao cristianismo –,  Madonna sempre foi provocadora, e dessa vez não foi diferente; mas não sei se chegaria ao extremo desejado por um de seus fãs, que disse: “Eu espero que Madonna faça um aborto até o fim do show. Não senti que os crentes foram suficientemente ofendidos com o conteúdo até agora”. Ou outra, que afirmou – aqui peço perdão ao leitor, mas preciso ser explícito: “A Madonna servindo uma putaria bem gostosa em rede nacional. Viva a profanação!!! Fodam-se os evangélicos”.

As doutrinas e a moralidade cristãs entram em conflito direto com muitos comportamentos que pessoas não religiosas – em geral, de esquerda – consideram normais

Sobre o primeiro comentário reproduzido acima, fiz uma postagem no X, dizendo: “Daqui a dois anos, durante a campanha presidencial, veremos: ʻentenda por que os evangélicos votam na ~extrema direita~ʼ. Ou: ʻpor que os evangélicos rejeitam a esquerda?ʼ. Aí os sociólogos e palpiteiros de esquerda nem vão precisar explicar. É [só] pegar meia dúzia de tuítes de 04/05/24”. Tais comentários são um reflexo não só de uma implicância mútua entre fãs da Madonna e evangélicos. Eles refletem uma visão muito peculiar da esquerda – pois, sim, os fãs de Madonna, em tese, são progressistas – em relação aos cristãos, sobretudo evangélicos, pautada num preconceito, digamos, reativo. As doutrinas e a moralidade cristãs entram em conflito direto com muitos comportamentos que pessoas não religiosas – em geral, de esquerda – consideram normais. O mais tabu, provavelmente, seja a homossexualidade. Como Madonna tem muitos fãs nesse grupo, o conflito é ainda maior.

Mas usei esse exemplo, na verdade, para introduzir um problema maior, que ocupa grande parte da análise política contemporânea: a relação entre evangélicos e as concepções de direita e esquerda. Os últimos anos acenderam um alerta na esquerda em relação aos evangélicos por seu maciço apoio a Jair Bolsonaro. Tal apoio – que, como cristão, considero, do ponto de vista espiritual, extremamente pernicioso – foi analisado por mim nesta Gazeta do Povo, mais de uma vez, desde uma série de três artigos, em 2020, especificamente sobre a relação entre religião e política (que gerou um curso gratuito, de quatro aulas), até outros textos, esparsos, tratando do mesmo tema (aqui e aqui, por exemplo); posso dizer que refleti muito a esse respeito.

Por outro lado, compreendo perfeitamente a opção, pois, pelo menos, a considero legítima e mais afim não propriamente ao espírito do evangelho, mas a uma espécie de moralismo (no sentido de uma moralidade superficial) que pode provir dele e que conflita com o que a esquerda defende. Desde o conceito de família, até a relação com as drogas, com o aborto, a leniência em relação à criminalidade, até a sua profunda relação com uma espécie de ateísmo programático (como está na epígrafe de Marx), são coisas condenáveis por qualquer cristão que seja fiel à Bíblia. Sem contar que o materialismo, que está na base do pensamento progressista, é antagônico à perspectiva cristã. Como disse Martin Luther King Jr. em sua Autobiografia: “No comunismo, declaradamente secularista e materialista, não há lugar para Deus. Isso eu nunca poderia aceitar, pois, como cristão, acredito na existência de um poder criativo pessoal neste universo que é a base e a essência de toda realidade – um poder que não pode ser explicado em termos materialistas. A história é guiada, em última instância, pelo espírito, não pela matéria”.

Mas a verdade é que a esquerda sempre desprezou os evangélicos. Sempre os tratou como pessoas ignorantes, preconceituosas, ingênuas, anestesiadas de sua opressão pela promessa de uma vida melhor após a morte, através da parúsia. Para Marx, apoiado em Ludwig Feuerbach, a religião era, além de uma criação humana, um instrumento de opressão capitalista, que tirava do proletariado a consciência da exploração que sofria (por isso era ópio). E apesar de Marx não ter pregado, como ocorreria no regime soviético, o ateísmo como parte da instauração do comunismo, pensava que o socialismo superaria a religião.

O fato de, atualmente, existirem cristãos de esquerda não apaga esse histórico conceitual do marxismo, que é, sim, ateu. O que cristãos de esquerda tentam é encaixar o que pensam ser a sensibilidade social do progressismo em sua suposta piedade cristã anticapitalista. Mas o cristianismo não está submetido a sistemas políticos ou econômicos, que são fundamentalmente humanos. Em tese, não existe cristianismo de direita ou de esquerda. Tentar transformar Jesus Cristo em revolucionário, em comunista, em alguém que fez “opção pelos pobres” é reduzi-lo a um mero joguete de nossa pecaminosa incapacidade de segui-lo. A Bíblia diz que todos, ricos e pobres, estamos no mesmo balaio (Romanos 3,23). Mesmo quando afirmei que “a quintessência do conservadorismo é o evangelho”, tomei o cuidado de dizer: “não que Jesus Cristo tenha sido conservador – longe de mim diminuí-lo desse modo”, pois, apesar de a história da salvação ser essencialmente antirrevolucionária, Jesus não cabe em classificações políticas.

Agora, todo cristão que compreendeu a mensagem de Jesus é um agente da fé, da esperança e do amor; enfim, das chamadas virtudes teologais. Não é um agente de transformação desse mundo, pois sabe que ele “jaz no maligno” (1 João 5,19), mas um mensageiro da salvação, um testemunho vivo do arrependimento e da remissão dos pecados mediante o sacrifício cósmico na cruz do Calvário. Não tem a ver com uma mudança política, material, mas com a consumação dos séculos. Tudo isso sem macular a ordem institucional desse mundo (“a César o que é de César”), sem ferir o tempo humano (João 14,16). O cristão vive entre o “já” e o “ainda não”. Toda tentativa de transformar esse mundo na força da chamada “justiça social” é só desespero e desesperança.

A esquerda sempre desprezou os evangélicos. Sempre os tratou como pessoas ignorantes, preconceituosas, ingênuas, anestesiadas de sua opressão pela promessa de uma vida melhor após a morte

Não – repito – digo que não devamos ser agentes de alento para os mais necessitados, que não devamos agir no mundo concretamente levando amor através da misericórdia e da compaixão divinas que nós mesmos recebemos. A caridade cristã é reconhecida na história por isso, bem como sua penetração entre os mais pobres. Mas o ponto central é: a Igreja não faz isso porque quer transformar esse mundo, porque quer construir um reino de igualdade econômica, porque quer que as classes sociais sejam extintas. A visão de mundo da igreja, para usar o conceito formulado por Thomas Sowell em sua obra Conflito de Visões, é restrita, ou seja, reconhece que a natureza humana é falha e limitada, por isso não é possível reformá-la para que seja melhor, mas somente estabelecer acordos sociais mínimos, que podem (e devem) ser reavaliados sempre.

Já a visão de mundo progressista é irrestrita, na qual o “homem é ʻperfectívelʼ – o que significa que está em permanente aperfeiçoamento, e não que seja capaz, de fato, de atingir a perfeição absolutaʻ. Podemos chegar cada vez mais pertoʼ, segundo [William] Godwin, embora ʻnão seja possível determinar limitesʼ nesse processo. Basta, para seu propósito, que os homens sejam ʻeminentemente capazes de justiça e virtudeʼ – não somente os indivíduos isoladamente, mas ʻtoda a espécieʼ”. Ou seja:

“A visão restrita é uma visão trágica da condição humana. A visão irrestrita é uma visão moral das intenções humanas, que são vistas como finalmente decisivas. A visão irrestrita promove a busca dos mais altos ideais e as melhores soluções. De forma contrária, a visão restrita vê o melhor como o inimigo do bom – uma tentativa vã de alcançar o ser inatingível [é] vista não somente como fútil, mas também, com frequência, como contraproducente, sendo que os mesmos esforços poderiam ter produzido uma contrapartida mais viável e benéfica.”

A visão cristã de mundo é de contingência, não de solução. A visão da esquerda, essencialmente utópica, baseada numa ideia de igualdade que jamais se concretizou em tempo e lugar algum, nega o plano divino de salvação e tenta solucionar os problemas humanos através de soluções políticas, de transformação das estruturas sociais para abstrações que só existem teoricamente. O crente de esquerda, ao aderir a isso, só está substituindo a piedade e a esperança cristãs por uma piedade política da esquerda, usada, em geral, com a finalidade de conquistar corações e mentes para seu projeto de paraíso na Terra. Esse é, a meu ver, um erro grosseiro, fruto da tentativa de agradar o mundo (e perder a alma).

E é por isso que a esquerda não compreende os evangélicos, porque não consegue avaliá-los pelo que eles realmente creem, mas segundo um julgamento social e materialista completamente equivocado. Suas análises sobre os evangélicos são sempre pueris e carregadas de preconceitos. Os crentes podem ter muitos defeitos – a intolerância religiosa em relação às religiões de matriz africana é um deles –, frutos, muitas vezes, da falta de aprofundamento na compreensão de sua fé (Oséias 4,6); mas, na simplicidade de seu entendimento e de seu temor, eles compreendem misticamente (pelo Espírito) a obra de Cristo. Por isso jamais aceitarão a esquerda e suas mundanidade. Só precisam lembrar que mundanidade à direita também é pecado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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