“O negro não pode suportar indefinidamente, sem desânimo e retrocesso, as tendências reacionárias atuais e o traçado irracional da barreira racial. E a condição do negro é sempre uma desculpa para que a discriminação continue. Somente se a inteligência e a solidariedade se unirem através da linha de cor, neste período crítico da República, a justiça e o direito prevalecerão”. (W.E.B. Du Bois)
No último fim de semana, ao sair de uma palestra que acabara de proferir sobre racismo no Brasil, uma jovem veio ao meu encontro e disse mais ou menos assim: “entendo perfeitamente o que disse em sua palestra, pois, quando eu era menorzinha, na escola, um menino deu um tapa na minha cara, do nada, e disse que eu era feia por ser negra. Se não fosse por meu pai, que sempre foi minha referência e nunca me deixou desanimar, teria sido muito mais difícil”. Lembrei-me, na hora, do dia em que meu filho chegou da escola e disse: “hoje um menino me chamou de macaco”. Ou quando meu amigo de infância Luís Antônio, nos anos 1990, foi abordado pela polícia três vezes seguidas, na mesma quadra, no Centro de São Paulo. Ou quando um gerente de uma loja teve a desfaçatez de estornar o dinheiro de minha compra, no débito, por eu não querer lhe fornecer um telefone de referência antes de me entregar um óculos de sol que tinha acabado de comprar.
A lista é grande, e se você, caríssimo leitor, juntar três ou quatro negros e perguntar se já sofreram preconceito, discriminação ou racismo (distinção aqui), dificilmente não lhe contarão um ou mais casos, desde situações notórias e inquestionáveis, até aquela impressão subjetiva que praticamente todo negro, fatal e infelizmente, carrega. O fato é que, como sempre digo, ser negro no Brasil é diferente de não ser, e isso não é mimimi, não é exagero. Nosso país foi, como disse Joaquim Nabuco numa citação recorrente desta coluna, fossilizado pela memória da escravidão, e “enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos”. A reforma da imaginação moral do nosso povo, nossa, é um processo do qual todos devem participar, um esforço de transformação cultural pelo qual todos devem passar.
Como sempre digo, ser negro no Brasil é diferente de não ser, e isso não é mimimi, não é exagero
Descobrir-se negro, para muitos, é algo que, não raro, ocorre pelo contraste – quando, por exemplo, uma criança é xingada na escola (a exemplo do meu filho, que citei acima). O atento leitor pode objetar, dizendo que não são só crianças negras que sofrem preconceito ou bullying, mas crianças acima do peso ou muito magras, de outras etnias etc. Isso é fato. No entanto, é somente com a criança negra que a discriminação se dá pelo estigma, pelo histórico real de quase 350 anos de escravidão; e quando alguém tem de lhe explicar o motivo de ter passado por determinado constrangimento, aquela memória, muitas vezes, pesa. E é exatamente nesse momento que o indivíduo inicia (ou deve iniciar) um processo de conscientização.
Óbvio que todo ser humano deve passar por um processo de conscientização, de tornar-se aquilo que é, para usar a máxima do poeta grego Píndaro. Mas insisto que a carga histórica estigmatiza, e muitos não têm, como eu tive, um alicerce de referências que me fizeram, desde muito cedo, consciente e orgulhoso de ser quem sou. Muitas vezes esse processo de reconhecimento é doloroso e exige um caminho árduo e uma decisão sóbria diante de uma encruzilhada em que o indivíduo deve escolher entre o impulso revolucionário ou o de elevação moral, espiritual e econômica.
E não é por qualquer razão, se não desse processo de conscientização, que os mais célebres intelectuais e ativistas negros da história recente tivessem investido de maneira radical e sistemática na construção de uma autoestima honrada em meio a tantos desafios urdidos pelo histórico escravista.
Nos Estados Unidos, por exemplo, W.E.B. Du Bois – o primeiro negro a obter o título de doutor, pela Universidade de Harvard, em 1895 –, em sua obra-prima As almas da gente negra, publicada em 1903, se mostrava bem consciente de tais desafios. Du Bois afirma que “em outros períodos de preconceito intensificado, invocou-se toda a tendência de autoafirmação do negro [...] Na história de quase todas as raças e povos, a doutrina pregada em tais crises tem sido a de que a autoestima corajosa vale mais do que terras e casas, e de que um povo que voluntariamente abre mão do respeito por si próprio, ou deixa de lutar por ele, não é digno de civilizar-se”.
No Brasil, o grande José Correia Leite, em 1929, ao organizar o Congresso da Mocidade Negra, tinha como objetivo “a instrução do negro no Brasil”; e enfatiza: “não é ideia revolucionária, não vão tratar de fazer ataques grosseiros ou comparações absurdas. Não, naturalmente; trata de solidificar uma grande ideia!” A percepção de Correia Leite – mas não só dele, de praticamente todos os líderes negros dos anos subsequentes à abolição, cuja obra fora destruída pelo golpe de 1889 – era de que o negro precisava de um impulso de autoafirmação. Avalia e afirma ele, em 7 de abril de 1929:
“Em 40 anos de liberdade, além do grande desamparo que foi dado aos nossos maiores, temos a relevar, com paciência, a negação de certos direitos que nos assistem, como legítimos filhos da grande pátria do cruzeiro. Se os conspícuos patriotas desta República não cuidaram da educação dos negros, o nosso congresso tratará desse máximo problema que está latente na questão nacional... Para os relegados filhos e netos dos épicos e primitivos plantadores do café, que foi e é a base de toda a riqueza econômica do nosso país, essa é a marcha do porvir. (...) O Congresso da Mocidade Negra tem que se realizar, muito embora os trânsfugas pensem que a raça não esteja preparada para o certame, dentro da estabilidade essencial. Porém, a raça espoliada fará o seu congresso, entre as angústias e as glórias do seu antepassado, baseando-se nas esperanças de uma nova redenção para a família negra brasileira”.
Ainda que um feriado de “Dia da Consciência Negra” seja questionável, a ideia de uma consciência negra não é absurda, uma vez que trata desse processo de descoberta, pelo contraste da discriminação e do racismo, para a construção da autoestima e do impulso que mudará o panorama cultural brasileiro
Correia Leite criticava duramente as organizações negras que vivam organizando festas, mas não se propunham a um trabalho sério, de elevação do negro brasileiro. Diz ele, em artigo escrito em maio de 1947, que “é preciso que nos inteiremos da responsabilidade de nossa condição e compreendamos que a verdadeira vocação de cada um de nós é de salvaguardar , condignamente, os direitos de nossa integridade na comunhão nacional”.
Tais desafios, infelizmente, não foram superados, caríssimo leitor. Por isso que, ainda que um feriado de “Dia da Consciência Negra” seja questionável (como eu mesmo já questionei, lá em 2012), a ideia de uma consciência negra não é absurda, uma vez que trata desse processo de descoberta, pelo contraste da discriminação e do racismo, para a construção da autoestima e do impulso que mudará, pelo esforço de todos, o panorama cultural brasileiro.
Se a data foi arquitetada e tem sido usada ideológica e politicamente pela esquerda, a direita precisa oferecer alternativas e compreender que espalhar, à exaustão, o vídeo de Morgan Freeman (tirado de contexto, diga-se) e falar em consciência humana não ajuda, antes acirra os ânimos e dá razão à fama de meros defensores do status quo. Tal chaga social não desaparecerá simplesmente se pararmos de falar nela; o trabalho deve ser efetivo, de todos, pois, para além das ideologias e apropriações, trata-se de um problema real. A defesa de uma perspectiva não à esquerda é legítima e um tributo à memória de luminares como Martin Luther King, André Rebouças e Mary McLeod Bethune. E não pode servir de eco para negacionistas e ideólogos.
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