Quando a inocência tem os olhos vazados, um cristão deve perder a fé ou aceitar que lhe furem os olhos. (Jean Tarrou, personagem de A Peste, de Albert Camus)
Roger Ebert (1942-2013), um dos mais respeitados críticos de cinema do mundo, disse, em seu Great Movies, algo bastante preciso em relação à obra do genial Ingmar Bergman: “A obra de Bergman tem um arco. O jovem insatisfeito considera as questões sociais e políticas. Na meia-idade, faz perguntas enormes sobre Deus e a existência. Na velhice, se volta para suas memórias buscando respostas. E, em muitos desses filmes, há o mesmo tipo de cena de reconciliação”. Tal descrição não poderia ser melhor para falar de um de seus filmes mais belos e complexos, A fonte da donzela, de 1960, a que assisti pela enésima vez para lembrar (e homenagear) a atuação da belíssima atriz Gunnel Lindblom, que morreu no último dia 24, aos 89 anos.
Lindblom trabalhou em outros grandes filmes de Bergman, como o clássico absoluto O sétimo selo e o incômodo O silêncio, da famosa trilogia. No entanto, para mim, é no papel da selvagem Ingeri (pronuncia-se Íngueri), em A fonte da donzela, que ela brilha de modo particular. O filme é um dos primeiros em que Bergman trabalha com o tema da fé – ou da falta dela – e em que a reconciliação, como diz Ebert, ocorre não como o resultado de uma vitória do bem contra o mal ou uma espécie de virada jubilosa, como diz Tolkien, mas do salto da fé kierkegaardiano.
O filme fala por si, pois é uma obra de arte, não um tratado de teologia; e talvez seja até possível admirá-lo sem que lucubremos sobre Deus ou fé
(Contém spoilers) A história é baseada numa balada medieval sueca – Töres döttrar i Wänge – e o roteiro foi adaptado pela escritora Ulla Isaksson. Karin (Birgitta Pettersson), a bela e jovial filha de Töre (vivido pelo imortal Max Von Sydow) e Märeta (Birgitta Valberg), sai de casa a cavalo, numa manhã de primavera, em companhia de sua irmã de criação, Ingeri, para ir à igreja levar velas à Virgem Maria. Ingeri, que é solteira e está grávida – e, por isso, sofre rejeição principalmente de Märeta –, aceita a incumbência contrariada, pois os ciúmes que sente de Karin, que conquista a todos com sua beleza e graciosidade, a consomem. Inclusive, o filme inicia com Ingeri invocando Odin, o deus da mitologia nórdica, em seu favor, numa clara manifestação de paganismo em ambiente cristão. A jovem gestante vive no limiar entre a misericórdia e a blasfêmia; mas não só ela, como se verá no filme. A primeira manifestação de sua contrariedade se dá quando, ao preparar o alimento que levarão na viagem, coloca um sapo, que surge repentinamente na cozinha, dentro do pão. Vale lembrar que o sapo, no folclore europeu, representa o mal.
No decorrer da viagem, Ingeri, intuindo que algo maligno se aproximava, abandona Karin e fica na casa de um velho feiticeiro, pensando que ali encontraria o favor de Odin. Karin continua a viagem sozinha e cai nas mãos de dois facínoras que a estupram e matam, numa cena cuja brutalidade muda completamente o clima pastoril em que a história vinha se desenrolando (exceto pela incômoda Ingeri). Um terceiro, que está com eles e acompanha o terrível crime, é um garoto, que passa a ser o elemento contraditório do ocorrido, pois fica profundamente incomodado com o que vê. Outra pessoa que presencia o crime é Ingeri, que, de longe, mesmo horrorizada, nada faz; sua inveja a tornou cúmplice de uma tragédia sem precedentes.
Os bandidos fogem, mas, na iminência do frio intenso que se aproximava à noite, param para pedir guarida na casa de um próspero fazendeiro. O problema é que o fazendeiro é Töre, que, angustiado, aguarda o retorno da filha que se demora. Obviamente sem saber o que ocorrera, oferece sua hospitalidade aos supostos viajantes, que recebem comida quente e descanso. Porém, mais do que pelo comportamento errático em companhia dos comensais à mesa de Töre – sobretudo do garoto –, os criminosos acabam por “se entregar” quando tentam vender a túnica de Karin a Märeta.
O que se segue é o que torna esse filme uma verdadeira obra-prima bergmaniana. Töre, ao confirmar com Ingeri – que ele encontrara, arrependidíssima mas plenamente consciente do que fizera (ou não fizera), escondia debaixo da escada –, resolve se vingar dos assassinos de sua filha. Mas antes se prepara com um banho ritual (paganismo ou penitência?) em que bate em seu corpo nu com os galhos de uma bétula que ele arranca do chão, desde a raiz, com as próprias mãos, numa das cenas mais belas e famosas da filmografia de Bergman. Depois, tranca-se com a esposa no local onde os bandidos dormiam e se precipita sobre eles com um punhal ornamentado. Hesita, mas mata o garoto também.
Após a carnificina, correm, juntamente com outros funcionários da fazenda, ao encontro do corpo de Karin – uma curiosa e desesperada procissão no meio da floresta. No caminho, um revelador diálogo ocorre entre o casal. Märeta diz: “Eu a amava mais que a Deus. Então ela se voltou para você. Passei a odiá-lo. A culpa é minha!” Mas Töre responde: “Não é só sua, Märeta. Só Deus pode julgar”. Ou seja, o casal, ainda que muito piedoso, vivia um conflito por causa da filha. Karin, a virgem de beleza angelical, era motivo de ciúmes não só por parte de Ingeri, mas de sua própria mãe. A aparente paz cristã desvanecera diante da tragédia.
A cena final é comovente e desconcertante, pois, enquanto Märeta chora copiosamente, com o corpo inerte da filha nos braços, Töre se afasta, prostra-se, olha para o céu e pergunta, indignado: “O Senhor viu? Deus, o Senhor viu? A morte de uma criança inocente e a minha vingança? O Senhor me permitiu? Não te entendo! Não te entendo!”
Mas eis que, de repente, Töre dá o salto. Percebe que está diante dAquele que disse a Jó: “Onde estavas tu quando eu lançava os fundamentos da terra?” (Jó 38,4). Então, se rende: “No entanto, agora imploro o teu perdão. Não sei como recuperar a paz sozinho. Não conheço outro modo de viver”. E completa: “Eu prometo, Senhor, aqui, perante o corpo de minha filha, lhe prometo que construirei uma igreja como penitência pelo meu pecado. Ela será construída aqui, de pedra firme... e com minhas mãos!” Ele volta, eles suspendem o corpo de Karin e, de repente, uma fonte passa a jorrar de onde estava sua cabeça. Ingeri ajoelha e, remida, lava o rosto na água cristalina; e Märeta, com a mesma água da vida, limpa o rosto da filha morta, como num batismo póstumo . Como diz Ulla Isaksson, “é de grande importância que a fonte jorre quando todos precisam dela. Nesse sentido o filme é muito luterano”. Ou seja, eles estão diante da Graça.
O leitor que não é cristão – ou nunca leu Kierkegaard ou Dostoiévski – talvez tenha dificuldade de compreender a profundidade desse aparente ato de fraqueza, pois trata-se de um ato de fé; o ápice da trama não se dá na esfera moral, mas do paradoxo da fé, que, de acordo com o citado Kierkegaard, em Temor e tremor, “consiste portanto em que o Indivíduo é superior ao geral, de maneira que, para recordar uma distinção dogmática hoje já raramente usada, o Indivíduo determina a sua relação com o geral tomando como referência o absoluto, e não a relação ao absoluto em referência ao geral”. Töre, como o Abraão bíblico, fala com Deus e decide o que fará tomando por referência não a compreensão racional de uma crença qualquer, mas o salto da fé, incompreensível ao homem natural. E Bergman, um filho de pastor luterano que cresceu dentro da austeridade protestante, conhece muito bem essa realidade – tanto que a repetirá em outros filmes, como O sétimo selo e um dos meus preferidos, Luz de inverno – sobre o qual já escrevi. A influência do filósofo dinamarquês no cinema nórdico é notável, e o modo como eles se relacionam com a fé – ainda que, atualmente, estejam entre os países sob os quais paira a falsa ideia de que abriguem um grande número de ateus – é muito interessante e particular.
Entretanto, caríssimo leitor, o filme fala por si, pois é uma obra de arte, não um tratado de teologia; e talvez seja até possível admirá-lo sem que lucubremos sobre Deus ou fé. O diretor Ang Lee, de As aventuras de Pi, que viu A fonte da donzela aos 18 anos, recém-chegado à Academia de Artes, disse que o impacto foi tão grande que ele se recusou a sair da sala de exibição e viu de novo, e que esse filme mudou a sua vida. Esteticamente, é estupendo! A fotografia do lendário Sven Nykvist é de uma precisão milimétrica; os atores e atrizes, colaboradores frequentes do mestre sueco, estão maravilhosos; e, claro, é Bergman entrando em sua melhor fase. Alguns elementos simbólicos também são muito interessantes: além do sapo e de outras referências do paganismo medieval, o close insistente nas mãos são dignos de nota; são como a materialização do estado de alma das personagens perante suas ações.
Encerro ressaltando, novamente, a atuação de Gunnel Lindblom como Ingeri, desesperada e pecadora – como todos –, mas pronta a reconhecer seus erros – como poucos. Que sua alma descanse em paz e que nós, enlevados por sua arte, nunca nos cansemos de agradecer.
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