Minha primeira e última filosofia, aquela na qual acredito com certeza absoluta, eu a aprendi na creche. Geralmente a aprendi de uma babá; isto é, daquela solene sacerdotisa ao mesmo tempo da democracia e da tradição, indicada pelos astros. Aquilo em que eu mais acreditava naquela época, aquilo em que mais acredito atualmente, são coisas que chamamos de contos de fadas. (G.K. Chesterton)
Sou um leitor e entusiasta dos chamados contos de fadas – também conhecidos como contos maravilhosos –, histórias que se notabilizaram no Ocidente como herança das histórias tradicionais, transmitidas oralmente, de geração em geração, e cuja característica mais marcante é seu forte conteúdo moral. Estão presentes em todas as culturas e englobam mitos, lendas, fábulas e fantasias. No continente africano, por exemplo, a tarefa de transmitir as histórias da tradição pertence aos chamados griots, que, além de artistas, músicos, contadores de histórias, genealogistas e conselheiros dos reis, são responsáveis por mediar os conflitos. Diz-nos Isaac Bernat, em Encontros com o griot Sotigui Kouyaté, “a transmissão de conhecimento para a formação e educação da comunidade a que pertence também é outra característica importante no que se refere à sua atuação [dos griots] na sociedade. Isso se dá através das histórias e dos provérbios que conta e que sempre sintetizam uma filosofia de vida que passa de pai para filho”.
Os contos de fadas ajudam as crianças (e os adultos) a assimilarem o mundo como ele é, e o recurso imaginativo é um veículo poderosíssimo para tal
Já escrevi sobre o tema em outras ocasiões e sei da importância desse tipo de literatura para a formação do imaginário de uma sociedade. Atualmente, os contos de fadas foram relegados à categoria de literatura infantil, como mero passatempo para entretê-los ou fazê-los adormecer – e só não foram totalmente abandonados porque se transformaram numa franquia bastante rentável no cinema. Entretanto, como diz C.S. Lewis em “Três maneiras de escrever para crianças” – texto presente no livro Sobre histórias –, “uma história para crianças de que só as crianças gostam é uma história ruim”. E complementa sua defesa dizendo que “em quase todas as épocas e lugares, os contos de fadas não eram feitos especialmente para as crianças nem desfrutados exclusivamente por elas. Só se deslocou para a escola maternal quando caiu de moda nos círculos literários, tal como, nas casas vitorianas, a mobília que caía de moda ia para os quartos das crianças. A verdade, porém, é que muitas crianças não gostam desse tipo de literatura, assim como muitas crianças não gostam de sofás de crina, de que muitos adultos gostam, como gostam de cadeiras de balanço. E todos aqueles que a apreciam, sejam jovens ou velhos, provavelmente a apreciam pela mesma razão”. E Chesterton corrobora, afirmando, entusiasmadamente, como expresso na epígrafe deste artigo, que sua filosofia de vida veio deles. E observa, num ensaio excepcional chamado Contos de Fadas, que
Se se realmente ler os contos de fadas, observar-se-á que uma ideia os atravessa de ponta a ponta – a ideia de que a paz e a felicidade só podem existir dadas determinadas condições. Essa ideia, que é o âmago da ética, é o âmago dos contos infantis. Toda felicidade da terra encantada pende de um fio, de um único fio [...] Essa grande ideia, pois, é a espinha dorsal de todo o folclore – a ideia de que toda felicidade pende de uma pequena proibição; de que toda alegria positiva depende de uma negativa.
Ou seja, os contos de fadas ajudam as crianças (e os adultos) a assimilarem o mundo como ele é, e o recurso imaginativo é um veículo poderosíssimo para tal, pois nos permite compartilhar de experiências não vividas e também adequar nossa realidade individual a todas as experiências possíveis dentro dos mais variados contextos. Como diz Chesterton, “não são fantasias: as outras coisas é que, comparadas a eles, parecem-me fantásticas”.
E a característica mais marcante de tais histórias é que elas exaltam as virtudes em estado puro como nenhum outro tipo de literatura é capaz de fazer. Como afirma Bruno Bettelheim, em seu célebre A psicanálise dos contos de fadas, “ao contrário do que acontece em muitas histórias infantis modernas, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem. É esta dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo”. E mais – a citação é longa, mas precisa:
Exatamente porque a vida é frequentemente desconcertante para a criança, ela precisa ainda mais ter a possibilidade de se entender neste mundo complexo com o qual deve aprender a lidar. Para ser bem sucedida neste aspecto, a criança deve receber ajuda para que possa dar algum sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de ideias sobre a forma de colocar ordem na sua casa interior, e com base nisso ser capaz de criar ordem na sua vida. Necessita [...] de uma educação moral que, de modo sutil e implícito, conduza-a às vantagens do comportamento moral, não através de conceitos éticos abstratos, mas daquilo que lhe parece tangivelmente correto, e portanto significativo. A criança encontra este tipo de significado nos contos de fadas [...] Esta é exatamente a mensagem que os contos de fada transmitem à criança de forma múltipla: que uma luta contra dificuldades graves na vida é inevitável, é parte intrínseca da existência humana – mas que, se a pessoa não se intimida, mas se defronta de modo firme com as opressões inesperadas e muitas vezes injustas, ela dominará todos os obstáculos e, ao fim, emergirá vitoriosa. As histórias modernas escritas para crianças pequenas evitam estes problemas existenciais, embora eles sejam questões cruciais para todos nós. A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma como ela pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade. As histórias “fora de perigo” não mencionam nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo pela vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos.
Um dos autores mais hábeis nesse sentido, para mim, é Hans Christian Andersen. Quem não se compadece da Pequena vendedora de fósforos? Quem não compreende as armadilhas da mentira e da adulação em A nova roupa do imperador? A discriminação sofrida pela menina pobre em Mágoas do coração, por não ter dinheiro para participar da brincadeira de que “todas as crianças da rua, e mais as da rua de trás” participavam? O que dizer da rejeição sofrida pelo Patinho feio? E os infortúnios do Soldadinho de chumbo e da Pequena Sereia?
A característica mais marcante de tais histórias é que elas exaltam as virtudes em estado puro como nenhum outro tipo de literatura é capaz de fazer
Mas não podemos nos esquecer, por exemplo, da lição de perseverança e coragem de João e Maria, dos Irmãos Grimm, ou mesmo da astúcia do Mestre Gato em O gato de botas, de Charles Perrault; as fábulas de Esopo e La Fontaine são fonte de ensinamentos imortais, como a espetacular lição de A raposa e as uvas, que mostra como podemos esconder, com arrogância pueril, nossa covardia e frustração diante das dificuldades que nos recusamos a enfrentar; ou, ainda, as consequências da insatisfação infundada e da sede por novidades de As rãs que queriam um rei; E as histórias de Andjau – ou Anansi/Ananse –, a aranha-macho da mitologia ganense, que, com suas aventuras, instrui sobre os limites da astúcia.
Ou seja, tais histórias são a base da imaginação moral de um povo, do modo como este constrói sua autointerpretação, que, como afirma o filósofo Eric Voegelin em Anamnese, é composta de “símbolos – míticos, revelatórios, apocalípticos, gnósticos, teológicos, ideológicos, e assim por diante – pelos quais expressa sua experiência de ordem”. Qualquer interpretação intelectual de uma sociedade deve passar pela tensão com essas autointerpretações, e deve, antes de tudo, respeitar essa tensão. Quando esse princípio é desrespeitado em nome de uma interpretação puramente material ou idealizada da sociedade – geralmente produzida em ambiente acadêmico –, ocorre o que o filósofo Russell Kirk chama de “desagregação normativa”. Edmund Burke previu essa realidade em Reflexões sobre a Revolução na França, quando afirmou:
Mas agora tudo isso vai mudar. Todas as agradáveis ilusões que tornavam o poder gentil e a obediência liberal, que harmonizavam diferentes matizes da vida e que, por uma branda assimilação, incorporavam à política os sentimentos que embelezam e suavizam a sociedade privada, serão dissolvidas por esse novo e conquistador império de luzes e de razão. Toda roupagem decente da vida será rudemente rasgada. Todas as ideias adicionadas, obtidas no guarda-roupas de uma imaginação moral, que o coração possui e o entendimento ratifica como necessárias para cobrir os defeitos de nossa natureza nua a trêmula, e para elevá-la à dignidade em nossa própria avaliação, serão desacreditadas como ridículas, absurdas e moda antiquada.
A geração atual é fruto dessa mentalidade, que interpreta a realidade de maneira idílica – como fez Rousseau, o pai dessa prática; e os mais jovens representam a mutação desse fruto. Criada totalmente desarraigada de valores herdados, e sedenta por um futuro que julga capaz de construir com suas próprias mãos (às vezes, da tela de seus smartphones), ao menor indício dessa impossibilidade – pois a realidade concreta tem seus próprios atributos e a natureza humana teima em se mostrar irremediavelmente falha –, o medo se apodera dela. É uma geração assustada, que não assimila a própria imperfeição e não compreende que a história humana é uma sucessão de erros e acertos, crueldades e benevolências, e que não há, a não ser em casos extremos, mocinhos e vilões em sentido absoluto. É uma geração cuja imaginação moral foi substituída pelo imediatismo proveniente dos recursos tecnológicos.
Por isso a necessidade urgente de olharmos para o passado não como quem o julga do alto de um esnobismo cronológico, que considera o presente melhor e mais virtuoso que o passado apenas por estar temporalmente à frente; mas como quem, primeiro, observa com parcimônia as gerações anteriores, cuja trajetória permitiu que chegássemos até aqui e aprendêssemos com seus erros e acertos. Que compreende que os complexos processos históricos, muitas vezes inimaginavelmente violentos para os padrões atuais, eram a realidade de todos os povos, e que é uma estupidez anacrônica reduzi-los ao maniqueísmo da luta de classes. Que não se transforma uma sociedade tentando apagar esse passado em nome de um futuro utópico, mas com a prudência de quem reconhece as próprias limitações.
Tal postura não tem a intenção, estimado leitor, em hipótese alguma, de perpetuar as “injustiças” do passado, cujos efeitos julgamos sentir ainda hoje; mas de alertar aos espíritos indignados da geração assustada que não adianta desesperarmos diante do passado, tampouco derramarmos nossa estupefação infantil nas redes sociais ou em teses acadêmicas, tentando encontrar culpados dentre aqueles que julgamos herdeiros das nefandas circunstâncias que nos trouxeram até aqui. Aqueles que propõem um futuro com base na condenação do passado estão, na verdade, condenando o futuro, pois, como diz C.S. Lewis por meio de seu demônio Fitafuso, “a gratidão tem os olhos no passado e o amor no presente; o medo, a avareza, a luxúria e a ambição têm os olhos no futuro”. E nada melhor que os contos de fadas para nos provar isso.
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