De algum modo, não sei qual, tive uma ideia a respeito de Deus – o Criador de toda a humanidade, dos negros e dos brancos –, que Ele havia feito os negros para servirem aos brancos como escravos. Como Ele poderia fazer isso e ser bom, eu não sabia. Não fiquei satisfeito com essa teoria, que tornou Deus responsável pela escravidão, pois me doeu muito e chorei por muito tempo e muitas vezes. (Frederick Douglass)
Não é fácil analisar acontecimentos históricos do passado sem cairmos na tentação de julgarmos esse passado com nossas lentes do presente. Mais tentador ainda é fazermos julgamentos a respeito do presente como consequência direta de um passado que temos dificuldade de abarcar corretamente. Ficarmos presos ao passado – tema já abordado por mim aqui nesta Gazeta do Povo – é a pior maneira de lidarmos com o presente e de construirmos perspectivas para o futuro. O passado, quando muito, deve nos servir, se bom, como inspiração; quando ruim, de prudente alerta em relação ao futuro. E só.
A discussão sobre o racismo no Brasil, por sua potente carga emocional oriunda da escravidão, tende a esse aprisionamento. Em partes porque os maus resultados da abolição ainda se fazem sentir (também já tratei disso), e a pobreza – que, infelizmente, tem cor no Brasil – é uma ferida ainda aberta de nossa história, que também nos liga ao nosso recente passado escravista. Por outro lado, essa circunstância é um prato cheio para reformadores sociais e revolucionários marxistas (alguns devidamente disfarçados de historiadores), pois dá a eles a narrativa adequada ao seu monocórdio bordão de opressores contra oprimidos; com isso, o ressentimento – fio condutor de todo projeto revolucionário – contamina toda a nossa análise do passado, tornando impossível uma contextualização adequada sob pena de estarmos relativizando a injustiça. Desse modo, a luta antirracista agora baseia-se não no progresso dos negros ou na luta por condições melhores para a população mais vulnerável do país, mas na vil, infrutífera e indistinta acusação contra os chamados opressores, na famigerada luta de classes, que serve a interesses políticos absolutamente alheios aos necessários para que os negros – e pobres em geral – alcancem a tão sonhada ascensão social. É a isso que tenho chamado de escravidão ideológica.
A coragem de espalhar uma “informação” é inversamente proporcional à vontade (ou capacidade ou honestidade) de verificar e expor sua veracidade
A pior característica dessa situação é que, na era da pós-verdade, ao mesmo tempo em que os acadêmicos progressistas determinaram a morte dos fatos, as redes sociais se transformaram num ambiente absolutamente generalizado de desinformação; a manipulação intencional e os erros involuntários foram potencializados a níveis assustadores, uma vez que a coragem de espalhar uma “informação” é inversamente proporcional à vontade (ou capacidade ou honestidade) de verificar e expor sua veracidade. Isso empobrece sobremaneira qualquer discussão séria e provoca uma total babelização do debate público – ainda mais quando os próprios acadêmicos engajados e pessoas influentes aderiram a essa prática. Os acadêmicos engajados o fazem porque tal ambiente é absolutamente favorável à manipulação ideológica necessária ao avanço de seus projetos utópicos de transformação social. Sir Roger Scruton, que faleceu no último domingo, dia 12, e a quem gostaria de honrar com uma citação, tem um artigo interessantíssimo sobre o poder de manipulação da pós-verdade: “Você pode culpar Nietzsche, cuja declaração de que ‘não há verdades, apenas interpretações’ o transformou na mais alta autoridade entre os acadêmicos pós-modernos. Mas o aforismo de Nietzsche é um mero paradoxo, sobre o qual nada pode ser construído. Muito mais importante foi Marx, cuja teoria da ideologia colocou o poder acima da verdade como motivo do pensamento político. O resultado da teoria de Marx foi sugerir que meu pensamento é ciência, o seu é ideologia: a minha é a verdadeira voz da história; a sua, a ‘falsa consciência’ da burguesia. Ainda mais destrutivo foi Foucault, que reformulou a teoria marxista da ideologia burguesa em termos da episteme de uma cultura – a estrutura de conceitos e argumentos que a classe dominante estabelece sobre a sociedade para que toda voz fale com seus termos”. O propósito, no fim das contas, é dominar a linguagem, pois quem a domina também domina a sociedade. Já as pessoas influentes – em geral, artistas –, porque precisam da anuência de uma elite que legitima suas ações, espalham aquilo que os faz parecer virtuosos. Vamos a um exemplo.
Dias atrás deparei-me com uma postagem, numa rede social, da indefectível Alexandra Loras, a ex-consulesa da França no Brasil – sobre quem também já falei em artigo –, a respeito da bula Dum Diversas, escrita pelo papa Nicolau V, que em 1452 deu “plena e livre permissão [ao rei Afonso V, de Portugal] de invadir, buscar, capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos de Cristo”. Loras, que agora é militante profissional em país alheio enquanto, em seu próprio país, a realidade do racismo não é muito diferente (exemplos aqui e aqui), disse: “O papa Nicolau V, que tinha mais autoridade que os reinados da Europa em 1452, autorizou a escravidão e colonização, até hoje o Vaticano não se desculpou por milhões de vidas impactadas, destruídas e abusadas por essa decisão. Até hoje as consequências sistêmicas dessa supremacia tem efeitos vivos na nossa sociedade”.
Qual o problema dessa afirmação da ex-consulesa, que diz ter ficado no Brasil porque aqui tem um palco? Primeiro, o sentimentalismo, que, segundo Anthony Daniels (a.k.a. Theodore Dalrymple), em Podres de Mimados, “enquanto manancial da política pública, ou da reação pública a acontecimentos ou a problemas sociais, (...) é tão desastroso quanto preponderante”. Um fato histórico não pode ser analisado dessa maneira. Segundo é que ela mente. O Vaticano já se desculpou pelos erros do passado da Igreja Católica – dentre eles, a escravidão (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). O mais recente pedido foi feito pelo papa Francisco, que disse: “Quero ser muito claro no que vou dizer, como foi João Paulo II, para, humildemente, pedir perdão pelas ofensas da própria Igreja contra os povos originários, e também pelos injustificáveis crimes cometidos em nome de Deus durante a chamada conquista da América”. Se tais pedidos não são suficientes, se a militância quer um pedido específico, é outro problema. O que não podemos é mentir em uma sinalização de virtude. Outra mistificação é dizer que o papa Nicolau V “tinha mais autoridade que os reinados da Europa”. Nicolau V foi chamado de “patrono das artes” e seu curto pontificado (1447 a 1455) não foi mais poderoso ou influente do que qualquer outro. Nicolau também não está na lista daqueles papas considerados “maus” pelo historiador Eric Russell Chamberlin em seu famoso livro The bad popes; muito pelo contrário, como podemos notar:
Um homem modesto e honrado, ele era por inclinação um estudioso (scholar) e, embora dirigisse os negócios da Igreja com energia e habilidade, seu primeiro e último amor era aprender coisas novas. Enviou emissários ao redor do mundo em busca de manuscritos preciosos e fundou efetivamente a mãe das bibliotecas, a Biblioteca do Vaticano. Ao seu redor, ele reuniu os principais estudiosos humanistas da época, incentivando a expansão e o crescimento daquele espírito de busca que, inevitavelmente, se voltou contra seu patrono.
O fato é que Nicolau V foi o papa que viu a queda de Constantinopla pelas mãos dos otomanos, em 1453, e sua bula Dum Diversas tinha a intenção de ajudar o imperador Constantino XI a derrotar os exércitos do sultão Mehmed II. Se, posteriormente, inclusive através de outra bula, a Romanus Pontifex, seus escritos que autorizavam a guerra contra muçulmanos tenham sido utilizados para legitimar a escravidão colonial é outra história. No entanto, não podemos negar que a escravidão perpetrada por muçulmanos, contra brancos cristãos e negros africanos, foi tão absurdamente assombrosa quanto a escravidão colonial. E quem diz isso é ninguém menos que Laurentino Gomes no seu celebrado Escravidão – Vol. I, no qual afirma que “Os números do tráfico de escravos em território muçulmano na África são impressionantes. Cerca de 12 milhões de negros africanos foram capturados e exportados através do Saara, do Mar Vermelho e do Oceano Índico entre os séculos 7.º e 19. Ou seja, o mesmo número de cativos embarcados para a América ao longo de 350 anos”.
Com informações como essas temos um vislumbre do quão complicado é analisar historicamente o passado, abdicando de manipulações rasteiras.
Fato é que a relação da Igreja Católica com a escravidão foi, no mínimo, ambígua. Mas nem mesmo Laurentino Gomes, que é um excelente pesquisador, mas um historiador leigo – ou intérprete historiográfico – bastante limitado, foi honesto em retratar essa ambiguidade. Ele reserva um capítulo de sua obra (“A cruz e o chicote”) para tratar dos erros da Igreja no período escravista. No entanto, faltou fazer um justo contraponto com as muitas informações que estão disponíveis. Dizer que “até o final do século 19, com raras opiniões isoladas, a Igreja nunca se pronunciou oficialmente e de forma inequívoca contra a escravidão” não é verdade. Por exemplo, o papa Eugênio IV, anterior a Nicolau V, emitiu duas bulas condenando a escravidão; numa delas, a Sicut dudum, emitida em 1435, diz: “Pedimos e ordenamos a todos e a cada um dos fiéis de cada sexo, no espaço de 15 dias após a publicação dessas cartas no local em que vivem, que restaurem à sua liberdade anterior todas e cada pessoa de ambos os sexos que eram residentes das referidas Ilhas Canárias e foram feitas cativas desde o momento de sua captura, e que foram sujeitos à escravidão”. Também diz que serão excomungados “todos que tentarem capturar, vender ou sujeitar à escravidão os residentes batizados das Ilhas Canárias”. Anteriormente, na bula Creator omnium, já havia proibido a escravização dos habitantes das Ilhas Canárias.
A Igreja condenou a escravidão em várias ocasiões. Mas, na prática, suas ordens não eram cumpridas
O papa Gregório XVI, em 1839, publicou a carta In Supremo Apostolatus, na qual condena com veemência a escravidão. O texto é revelador. Veja, atento leitor:
No processo do tempo, a névoa da superstição pagã foi mais completamente dissipada e as maneiras das pessoas bárbaras foram suavizadas, graças a Fé operada pela Caridade, finalmente acontece que, desde vários séculos, não há mais escravos na maior parte das nações cristãs. Mas – dizemos com profunda tristeza – foram encontrados posteriormente, entre os homens fiéis, que, vergonhosamente, cegos pelo desejo de ganhos sórdidos, em países solitários e distantes, não hesitaram em reduzir à escravidão índios, negros e outros povos miseráveis, ou então, instituindo ou desenvolvendo o comércio daqueles que haviam sido escravizados por outros, para favorecer sua prática indigna. Certamente muitos pontífices romanos de memória gloriosa, nossos predecessores, não falharam, de acordo com os deveres de sua responsabilidade, em culpar severamente esse modo de agir como perigoso para o bem-estar espiritual dos envolvidos no tráfico e uma vergonha para o nome cristão; eles previram que, como resultado disso, os povos infiéis seriam cada vez mais fortalecidos em seu ódio à verdadeira religião.
Ou seja, esses três exemplos bastam para vermos que a Igreja condenou a escravidão em várias ocasiões. Mas, na prática, suas ordens não eram cumpridas. Por exemplo, o próprio Laurentino Gomes admite – no único contraponto que faz – que, apesar de a Companhia de Jesus ser a maior proprietária de escravos de Angola no século 17, o criador da ordem era frontalmente contrário:
Santo Inácio de Loyola, fundador da ordem, e alguns dos superiores em Portugal eram contra a posse de cativos pelos missionários. “Não convém que a Companhia se sirva de escravos”, escreveu o superior-geral Francisco de Borja ao provincial de Portugal em 1569. Pressionado em 1590, o superior da missão em Angola, padre Baltasar Barreira, respondeu que seria impossível a seus padres sustentarem-se na África sem o tráfico negreiro, uma vez que a Coroa portuguesa não lhes pagava o suficiente para cobrir suas despesas. Como alternativa, sugeria que a venda de cativos entre os colégios de Luanda, Salvador e Olinda se fizesse por meio de terceiros, ou seja, intermediários, de modo que os jesuítas não se envolvessem diretamente no negócio. Mas o superior-geral foi categórico: “que se vivesse então de esmolas, se tanto fosse necessário”.
Mas há apontamentos interessantes feitos por Laurentino Gomes, é justo reconhecer. Dentre eles, há um sobre o infame livro Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, do jesuíta Jorge Benci. Laurentino explica: “Nascido na cidade de Rimini, Benci embarcou para o Brasil em 1681, com 31 anos, e exerceu diversas funções no colégio da Ordem na Bahia. Ao retornar a Lisboa, duas décadas mais tarde, escreveu Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, obra que, publicada em Roma, em 1705, o transformaria num dos principais ideólogos da escravidão entre os jesuítas”. Essa obra é uma das mais funestas e racistas já produzidas pelo espírito humano, pois foi escrita por um padre, o que é absolutamente inadmissível. Benci inicia dizendo que “sendo o gênero humano livre por natureza, e senhor não somente de si, senão também de todas as mais criaturas (pois todas elas as sujeitou Deus a seus pés, como diz David), chegasse grande parte dele a cair na servidão e cativeiro, ficando uns senhores e outros servos, foi sem dúvida um dos efeitos do pecado original de nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originaram todos os nossos males”. Ou seja, numa interpretação bíblica absurda, que mostrarei a seguir, diz que a escravidão é um castigo divino, por isso deve ser aceita.
É certo que, desse modo, Benci dá ao escravo o status de pessoa humana – e não de coisa, como dizia o direito romano – e, com sua obra, desejava melhorar o tratamento violento dado aos escravos; e ele o faz em extremo espírito de caridade – ainda que completamente desconectado da realidade. Há dura condenação aos maus tratos e ele propõe que sua obra seja lida “para atalhar estas culpas e ofensas, que cometem contra Deus os senhores, que não usam do domínio e senhorio que têm sobre os escravos”. Mas isso não torna a obra menos reprovável.
Dentre os completos absurdos que Benci diz em seu livro, está a consolidação da heresia retirada do livro de Gênesis (capítulo 9), sobre a famigerada “Maldição de Cam”. Diz o jesuíta:
Debaixo do nome de os senhores aos servos pão, que devem os senhores aos servos, se entende também o vestido, sendo que por boa razão parece que deviam andar todos despidos, visto que a servidão e cativeiro teve sua primeira origem do ludíbrio, que fez Cam, da desnudez de Noé seu Pai. Sabido é, que dormindo este Patriarca corri menos decência descoberto, vendo Cam, e escarnecendo desta desnudez a foi publicar logo a seus irmãos; e em castigo deste abominável atrevimento foi amaldiçoado do Pai toda a sua descendência, que no sentir de muitos ‚ a mesma geração dos pretos que nos servem.
Uma Igreja que tem, entre seus santos, africanos como Santo Elesbão e Santa Ifigênia, e homens devotados aos escravos como São Pedro Claver, não pode ser tachada, simples e indiscriminadamente, de escravista
E mais: diz também que negros são mais preguiçosos que os brancos:
Bem sei que não só os cativos e os Pretos, senão também os livres e os Brancos aprendem a pecar debaixo do magistério do ócio, acho contudo entre uns e outros grande diversidade. E qual é? É que os Brancos para serem bons Mestres da arte de pecar, necessitam de lições mui repetidas, e, por isso, é necessário que frequentem por largo tempo as classes do ócio; e os Pretos não necessitam de muito tempo. Com quatro dias de lição ficam Mestres em artes e Doutores da malícia. Mas qual é a razão desta diversidade? A razão é a mesma, porque na mesma classe debaixo da disciplina do mesmo Mestre, e ainda com igual aplicação, se fazem uns logo Estudantes da primeira suposição, e outros só depois de muitos anos. Isto é efeito da maior ou menor habilidade, que cada um tem. O mais hábil logo aprende, o menos hábil aprende mais devagar. E como os Pretos são sem comparação mais hábeis para todo o género de maldades, que os Brancos, por isso, eles com menos tempo de estudo saem grandes licenciados do vício na classe do ócio.
Impressionante, não é mesmo? Mas Jorge Benci não representa a Igreja Católica toda; representa uma intenção, numa época e lugar específicos. Por isso, para terminar, gostaria de indicar uma obra verdadeiramente incrível sobre a relação entre a Igreja Católica e a escravidão; uma obra que não coaduna com mistificações e mentiras, antes faz duras e necessárias críticas ao escravismo e à participação de religiosos nela, mas também faz necessários contrapontos a fim de não promover injustiças. É a obra A escravidão, o clero e o abolicionismo, do médico e professor baiano – e negro – Luís Anselmo da Fonseca, publicada em 1887. Obra rara, publicada em edição fac-similar pela Fundação Joaquim Nabuco (Editora Massangana), tem quase 700 páginas e trata de muitos aspectos dessa relação complexa. Ele inicia justamente reconhecendo os méritos das exceções à regra (são minhas as devidas adequações ortográficas): “O clero brasileiro, considerado como classe ou corporação, nunca representou no país um papel importante, nem sob o ponto de vista intelectual, nem sob o moral. Entretanto, sabem-no todos os que não são estranhos à história nacional, nos tempos passados havia no clero muitas exceções à regra geral, distinguindo-se vários padres por sua ilustração (relativamente às diferentes fases da civilização brasileira), por suas virtudes, por sua cooperação para o progresso social e sobretudo por seu patriotismo”. E cita vários casos. Em seguida, é implacável:
Ao contrario das outras classes sociais, que todas tem melhorado e se elevado pelo trabalho, pela instrução, pelo comedimento e espírito de progresso, como por exemplo a classe dos artistas, a clerical tem decaído pela falta de cultura, pela indolência, pelo indiferentismo moral e sobretudo pelos maus exemplos que dá, a tal ponto, que vai de dia para dia perdendo o direito a todas as atenções e à consideração a que outrora poderia ter jus, e tornando-se merecedora da indiferença do vulgo e da acusação dos homens, que simultaneamente possuem patriotismo e capacidade de pensar. O clero brasileiro é hoje, geralmente, representado por homens vulgares, dotados de pouca instrução, tão ambiciosos como egoístas, frouxos nos costumes e excessivamente amantes da comodidade e do gozo. Geralmente são alheios a todas as conquistas do espírito humano, e jazem num atraso intelectual realmente pasmoso. Pelo que toca ao serviço do país e da humanidade, é completo o seu retraimento e a sua inércia.
E assim segue, não só dando como nomeando exemplos factuais de padres, bispos e demais religiosos católicos comprometidos com a escravidão. Mas toma o cuidado de dizer, em citação que faz do zoólogo suíço Louis Agassiz – que, curiosamente, se tornará um dos principais propagadores do racismo científico –, que a escravidão é uma moléstia, e que “Ao lado deste mal, eu indicarei entre as influências fatais ao progresso – o caráter do clero. Não quero, de modo nenhum, fazer qualquer alusão à religião nacional: quando falo do caráter do clero, não falo da crença que ele personifica”. Ou seja, não é a religião em si, mas seus representantes.
Faz uma crítica absolutamente contundente ao caráter ambíguo do grande Padre Antônio Vieira – a melhor que li até hoje –, dizendo de sua total capitulação ao escravismo por conta de suas batalhas pessoais. Ao mesmo tempo que defende a libertação dos índios, defende a escravidão africana. Mas também, por vezes, a rejeita. Fonseca divide a vida do Padre Vieira em períodos, e mostra suas inconsistências. Por exemplo: prega num Sermão do Rosário que “em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado (...) porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão”. Em outro, diz: “Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os ricos das próprias!” É verdade que talvez fizesse isso para evitar rebeliões, mas não há como dizer que isso não é uma ambiguidade. Noutro, fala em escravidão justa, mas reclama dos maus tratos: “Bem sei que alguns destes cativeiros são justos, os quais só permitem as leis, e que tais se supõem os que no Brasil se compram e vendem, não dos naturais, senão dos trazidos das outras partes: mas que teologia há, ou pode haver que justifique a desumanidade e sevícia dos exorbitantes castigos com que os mesmos escravos são maltratados?”. Mas no Sermão da Primeira Dominga da Quaresma, de 1653, ele faz talvez a mais contundente acusação em relação à escravidão:
A que diferente preço compra hoje o demônio as almas, do que oferecia por elas antigamente! Já nesta nossa terra vos digo eu! Nenhuma feira tem o demônio no mundo onde lhe saiam mais baratas: no nosso Evangelho ofereceu todos os remos do mundo por uma alma, no Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas: não é necessário oferecer mundos, não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba, e dois tapuias, e logo está adorado com ambos os joelhos: – Oh! que feira tão barata! Negro por alma, e mais negra ela que ele! Esse negro será teu escravo esses poucos dias que viver, e a tua alma será minha escrava por toda a eternidade, enquanto Deus for Deus. Este é o contrato que o demônio faz convosco, e não só lho aceitais, senão que lhe dais o vosso dinheiro em cima. (...) Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes são os que Deus me manda que vos anuncie: (...) – Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vos ides direitos ao inferno. Já lá estão muitos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida. Pois, valha-me Deus! Um povo inteiro em pecados? Um povo inteiro ao inferno? Quem se admira disto não sabe que coisa são cativeiros injustos.
Apesar de a Companhia de Jesus ser a maior proprietária de escravos de Angola no século 17, o criador da ordem era frontalmente contrário
No mais, é justo afirmar: Padre Vieira foi tão ambíguo quanto qualquer um de nós pode ser.
Fonseca faz, ainda, uma observação importantíssima sobre a influência do Direito Romano no catolicismo: “Se entre os padres ilustrados e doutores da Igreja, estes elementos – a saber, a filosofia grega, a alexandrina e os princípios da politica romana – disputavam a primazia; na grande massa dos cristãos, nos políticos e nos papas, predominava, de modo pouco menos do que absoluto, o ultimo deles, o qual por muitos séculos preponderou e reinou quase exclusivamente, sendo ainda hoje fortíssimo no espírito e na organização dessa mesma igreja”. Régine Pernoud, em Idade Média: o que não nos ensinaram, faz uma observação parecida em relação à subjugação feminina, dizendo que “sua influência [da mulher] diminui paralelamente à ascensão do Direito Romano nos estudos jurídicos, depois nas instituições e, por fim, nos costumes. É um apagar progressivo do qual se pode seguir as principais etapas, pelo menos na França, muito bem”. E também que:
O Direito Romano do qual vemos renascer a influência na Itália, em Bolonha principalmente, foi a grande tentação do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo não só pela burguesia das cidades, mas também por todos os que viam nele um instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente, com efeito, de suas origens imperialistas e, por que não dizer, colonialistas. Ele é o direito, por excelência, dos que querem firmar uma autoridade central estatizada. Também é reivindicado, adotado, estendido para as potências que procuravam então a centralização: pelo imperador, primeiro, depois pelo Papa.
Padre Vieira foi tão ambíguo quanto qualquer um de nós pode ser
Por fim, para não cansá-lo mais, paciente leitor, deixo aqui o reconhecimento que o dr. Luís Anselmo da Fonseca faz dos ilustres clérigos católicos que lutaram contra a escravidão, numa citação que deveria fazer corar de vergonha pessoas influentes como Laurentino Gomes, Alexandra Loras e um ator negro, radical militante de esquerda, chamado Eddie Coelho, que apareceu para me xingar e desmerecer o meu trabalho ao ver o comentário que fiz no post de Loras. Após elencar uma série de documentos da Igreja que legitimavam a escravidão, Fonseca diz:
Com estas doutrinas e opiniões contrastam, felizmente, outras que nos apressamos em citar. Santo Anselmo, arcebispo de Canterbury, no concilio de Londres, reunido em 1102, combateu a escravidão e protestou contra a prática de se venderem homens como se fossem brutos. Pio II, a 7 de Outubro de 1462, trinta anos antes de C. Colombo descobrir a América, publicou um Breve exprobrando o rei de Portugal, Afonso V, e condenando os portugueses pelo fato de reduzirem à escravidão os negros africanos. O papa Paulo III, o advogado dos indígenas americanos, defendendo-os da escravidão, condenou-a em geral, de modo muito positivo e inteiramente conforme ao espirito da doutrina cristã (...) Urbano VIII proibiu que despojassem os negros de sua liberdade e que os roubassem à sua pátria, às suas mulheres e a seus filhos. Bento XIV, em letras dirigidas aos bispos do Brasil, em 20 de Setembro de 1741, igualmente condenou a escravidão e recomendou-lhes que a combatessem. Pio VII teve o mesmo procedimento e condenou o tráfico dos escravos. Gregório XIV, pelas letras apostólicas de 13 de Dezembro de 1839, proibiu, em nome de Cristo e da Igreja, que o trafico continuasse.
Com tal belíssima e acurada citação, escrita ainda no fim do século 19, quando os recursos de pesquisa eram absurdamente mais escassos, quero terminar dizendo que eu mesmo não sou católico, mas sou um defensor contumaz da Verdade, e dela não abro mão. E uma Igreja que tem, entre seus santos, africanos como Santo Elesbão e Santa Ifigênia, e homens devotados aos escravos como São Pedro Claver, não pode ser tachada, simples e indiscriminadamente, de escravista. Só assim, falando em nome da justiça, a luta contra as injustiças prevalecerá.