“A morte põe termo às doenças, mas só por si não constitui um termo. Mas uma ʻdoença mortalʼ no sentido estrito quer dizer um mal que termina pela morte, sem que após subsista qualquer coisa. E é isso o desespero.” (Sören Kierkegaard)
Sou um tipo de professor que ama tirar os alunos da zona de conforto. Para isso, Platão é meu mestre e guia; aprender através do diálogo, da discussão organizada e saudável, para mim, é a melhor pedagogia possível. Sem certezas predefinidas, sem armadilhas retóricas, mas falar e ouvir, estressar as ideias a fim de que elas se nos apresentem cristalinas como a verdade. Despir o engano e plantar a dúvida que desperta o conhecimento é extraordinário.
Pois bem, recentemente, às portas do carnaval, propus, em aula, uma questão para nossa reflexão: por que o ser humano, tanto coletiva quanto individualmente, sente necessidade de escapar da realidade e de suplantar o ordinário? O carnaval, em certo sentido, é isso. As respostas foram as mais variadas, mas, em sua maioria, giraram em torno de “sair da rotina”, pois, no fim das contas, a rotina é uma coisa cansativa, e subvertê-la é uma forma de se sentir vivo e livre. Uma resposta chamou-me a atenção; uma aluna disse: “porque viver é uma porcaria, a vida é ruim”. E isso deu ensejo para que eu desse um passo a mais na reflexão.
A ideia de que a monotonia da rotina não é um mal, mas pode, ao contrário, ser um bem, não alivia a necessidade de nós – pelo menos da maioria de nós – escaparmos dela
O primeiro ponto é o de que a rotina é, em si mesma, ruim, algo do qual discordo. Sem rotina, sem repetição, sem persistências, muitas vezes, não há avanço. A rotina é necessária à ordem, à vida. Quem me fez pensar no assunto foi o grande G.K. Chesterton, em seu clássico Ortodoxia. Chesterton inicia seu argumento dizendo que “todo o intenso materialismo que domina a mente moderna apoia-se, em última análise, numa suposição; uma suposição falsa. Supõe-se que se uma coisa vai se repetindo ela provavelmente está morta; uma peça numa engrenagem”. Ou seja, a rotina significaria a imutabilidade e, consequentemente, a morte, que a vida estaria na variação constante – relembrando o debate entre Heráclito e Parmênides. Mas Chesterton subverte esse pensamento ao dizer que “a variação nas atividades humanas é geralmente causada não pela vida, mas sim pela morte; pelo esmorecimento ou pela ruptura de sua força ou desejo”. E complementa:
“O sol se levanta todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs; mas a variação se deve não à minha atividade, mas à minha inação. Ora, para expressar o caso numa linguagem popular, poderia ser verdade que o sol se levanta regularmente por nunca se cansar de levantar-se. Sua rotina talvez se deva não à ausência de vida, mas a uma vida exuberante. O que quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando elas descobrem algum jogo ou brincadeira com que se divertem de modo especial. Uma criança balança as pernas ritmicamente por excesso de vida, não pela ausência dela. Pelo fato de as crianças terem uma vitalidade abundante, elas são espiritualmente impetuosas e livres; por isso querem coisas repetidas, inalteradas. Elas sempre dizem: ʻVamos de novoʼ; e o adulto faz de novo até quase morrer de cansaço. Pois os adultos não são fortes o suficiente para exultar na monotonia. Mas talvez Deus seja forte o suficiente para exultar na monotonia. E possível que Deus todas as manhãs diga ao sol: ʻVamos de novoʼ; e todas as noites à lua: ʻVamos de novoʼ.”
No entanto, apesar de concordar com Chesterton, a ideia de que a monotonia da rotina não é um mal, mas pode, ao contrário, ser um bem, não alivia a necessidade de nós – pelo menos da maioria de nós – escaparmos dela. Encontrar equilíbrio na mesmice é um desafio e tanto, sobretudo para nós, modernos.
Outro ponto, que considero ainda mais desafiador e que provocou um debate ainda mais acalorado em nossa aula, foi minha afirmação de que tudo, absolutamente tudo na vida humana, todos os avanços, os encontros e desencontros, o progresso científico, as leis, a moralidade, as artes em geral, as guerras, as conquistas, as grandes descobertas, a educação, a cultura, a cura para doenças, as vacinas... ou seja, absolutamente tudo que nos fez chegar até aqui e tudo o mais que virá só foi possível pela impossibilidade de respondermos à pergunta fundamental, que sustenta toda a realidade e toda a existência humana: Deus existe?
Veja bem, atento leitor, não falo aqui de fé, de crer na existência de Deus e, pelas evidências, convencermo-nos de que Ele existe. Nem mesmo da descrença, assustada ou militante, em sua existência. O teísmo e o ateísmo, nesse sentido, estão em pé de igualdade. Estou falando de certeza incontestável, apodítica. Se, de alguma maneira – que ignoro qual seja –, tivéssemos a certeza de que Deus existe ou não, o ser humano (talvez o mundo) não duraria mais que alguns instantes.
Segundo Kierkegaard, não é a certeza da morte, mas o desespero da incerteza e a tentativa de fazer tudo subsistir é que move o homem
Minha afirmação, aparentemente absurda, provocou uma das mais interessantes discussões que já presenciei em aula. “Como assim acabar tudo?!”, eles perguntavam, inconformados. “Assim, do nada?! Discordo!”, outros se exaltavam. Eu, professor, feliz por ter conseguido provocá-los, procurei oferecer-lhes elementos para que a discussão não se encerrasse com a mera explicação de meu ponto, mas que eles pudessem testar suas certezas (ou dúvidas) mediante um exercício de imaginação. “Pensem”, disse eu, “qual seria nossa reação ao constatarmos, de modo definitivo, incontestável, que Deus existe ou não; qual seria nossa reação?” Alguns alunos, de modo titubeante, tentaram defender que haveria um processo de adaptação e que tudo seguiria normal. Outros tentaram dizer que sempre haveria alguns inconformados que, mesmo diante de uma certeza incontestável, seguiriam na tentativa de provar a existência ou inexistência de Deus. Insisti na ideia de que seria absolutamente impossível continuar existindo após tal constatação: diante da certeza afirmativa só nos restaria a aniquilação por nossas imperfeições e, diante da certeza negativa, só nos restaria a aniquilação pelo desespero absoluto.
Sugeri um passo além na provocação e perguntei a uma aluna, que é cristã: “do que trata o livro bíblico de Apocalipse?” Ela respondeu: “da volta de Cristo e do fim dos tempos”. Eu disse: “Pois é, mesmo da perspectiva teológica, à revelação final de Deus se segue o fim, não há mais o que fazer nesse mundo” – e sorri. Mais confusão.
Ao fim e ao cabo, eu disse que nossa saudável discussão não tinha, obviamente, o objetivo de encerrar o assunto, mas somente de provocá-los no seguinte sentido: se nós, em uma hora e meia de aula, sentimo-nos tão desconfortáveis com tal possibilidade, imaginem um filósofo sozinho, isolado, no alto de sua misantropia, pensando sobre esse tema. Pois esse foi o ofício do dinamarquês Sören Kierkegaard, cuja citação em epígrafe, retirada de sua obra O desespero humano, resume bem o que quero dizer: não é a certeza da morte, mas o desespero da incerteza e a tentativa de fazer tudo subsistir é que move o homem. Mas sobre a filosofia de Kierkegaard falaremos em outra oportunidade.
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