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A música é... a canção de ninar de uma mãe. Ela dá som aos nossos sentimentos quando não temos voz, dá-nos palavras quando estamos em silêncio. Com ela louvamos, amamos, esperamos e recordamos. Na expressão da alma, encontramos os contornos do trajeto de um colibri em voo, e o vento que o carrega. A música molda-se e fragmenta-se em infinitas cores, matizada e diversificada, e eternamente criativa. É o espírito falando da forma. (Jason Martineau, Os Elementos da Música, In: Quadrivium)

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Sou uma pessoa musical. Não sei precisar quando a música, digamos, me atingiu, mas provavelmente foi desde que nasci, pois minha família é igualmente musical – apesar de nenhum de nós ser músico. O que sei é que, quando tento buscar na memória um momento, me vem à cabeça eu ainda criança, os bailinhos de garagem, as danças da vassoura – brincadeira na qual aquele(a) que ficava sozinho(a), “dançava” com a vassoura até trocá-la por um par escolhido que já estivesse dançando – e duas músicas: I'll be there, de Michael Jackson, e Hurt, do grupo The Manhattans. Sim, sempre gostei de músicas românticas. Essa, provavelmente, é a lembrança mais longínqua quando penso em música.

As festas de família também são marcantes em minha memória, e lembro-me, com muita vivacidade, de meus irmãos Mário e Adilson fazendo um dueto perfeito em cima da música You Send Me, de Sam Cooke, na interpretação absolutamente inesquecível de Roy Ayers e Carla Vaughn.

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Creio que, como acontece com todo mundo, muito do meu gosto inicial em relação à música foi passivo, as músicas chegavam a mim e eu gostava ou não, mas não as procurava; e até que eu tivesse capacidade de discernir aquilo que eu, autonomamente, queria ouvir, fui de Con Funk Shun a Clara Nunes, passando por Neil Diamond, Orquestra de Sílvio Mazzuca, o new age de Kitaro, Adoniran Barbosa, Beth Carvalho, KC & Sunshine Band, e tudo mais quanto o ecletismo de meu pai, somado ao gosto pelo samba de minha mãe e o entusiasmo Black Power e Disco dos meus irmãos fosse capaz de me alimentar.

O rock foi uma influência externa à meu círculo familiar, pois era um gênero alheio ao gosto de todos. Conheci Iron Maiden ainda criança – particularmente os discos Peace of Mind e Killers –, por intermédio de dois amigos de infância, e curti muito punk-rock em minha época de skatista, na adolescência. As primeiras vezes que saí para um lugar onde as pessoas se reuniam para dançar, foi ainda no final dos anos 1980, no California Club, ZN de São Paulo, e me marcaram ali bandas como Siouxsie and Banshees, Toy Dolls e Simple Minds.

No início dos anos 1990, fiz um curso de DJ, época em que a House Music de grupos como Technotronic, e o tecno belga do Tragic Error faziam um sucesso estrondoso. Eu tinha duas pick-ups antigas – cujo pitch para as “viradas” eu controlava com o dedo –, um bom número de discos “piratas”, e com eles animava as festinhas do bairro. Vale lembrar que tive o prazer de fazer minha “formatura” na saudosa Toco, danceteria da V. Matilde, ZL, tocando algumas músicas para uma multidão. O rap chegou em seguida, com os bailes black da Chic Show, Black Mad e Zimbabwe, as lendárias equipes de som de SP, em casas como a Sunset Club e Clube da Cidade. Época de negritude e rebeldia.

Enfim, recentemente criei, com meu grande amigo Silvera – cantor e produtor musical que tem em seu currículo, além de excelentes discos autorais de R&B/soul e gospel, produções de Ed Motta, Gal Costa, César Camargo Mariano, Racionais MCs e muitos outros astros da música brasileira –, um podcast, chamado Óculos Escuros (ouça aqui ou na sua plataforma de podcasts preferida), no qual falamos sobre cultura e arte, tendo como fio condutor de nossos descontraídos bate-papos aquilo que mais nos une: o amor pela música. O primeiro episódio, Memórias Musicais, dividimos essas histórias de como a música chegou a nós.

Como disse inicialmente, apesar de me considerar um musicófilo, não sou músico e nunca tive a intenção de sê-lo; aprendi um pouco de violão na adolescência, fui capaz de fazer acompanhamento de samba em minha fase pagodeiro e, após minha conversão, toquei por alguns anos na igreja, onde conheci minha esposa, que é professora de canto e foi nos ajudar a afinar as vozes. Como sempre gosto de brincar: ela me ensinou a cantar e eu a cantei. O fato é que eu amo música, e não consigo ficar um dia sequer sem ter contato com ela em algum nível, seja ouvindo enquanto trabalho – como faço nesse exato momento, ouvindo Bar-Kays – mas só hoje já ouvi Chevalier de Saint-Georges e The Manhattans –, indo a shows, concertos de música clássica, na igreja ou enquanto faço minhas raríssimas caminhadas.

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Há algo de divino na música, que, por sua “ubiquidade e antiguidade”, como diz Daniel Levitin, neurocientista que coordena o Laboratório de Percepção, Cognição e Especialização Musicais da Universidade McGill, no Canadá, a diferencia de todas as outras atividades humanas. Ele diz, na introdução de seu excelente livro A música no seu cérebro, que “não temos notícia de nenhuma cultura humana, atual ou de qualquer outra época, que desconhecesse totalmente a música. Entre os mais antigos artefatos encontrados em escavações há instrumentos musicais: flautas de osso ou tambores feitos com peles de animal esticadas em troncos de árvores.

Onde quer que os homens se juntem, lá estará a música: casamentos, enterros, formaturas, partidas para a guerra, eventos esportivos em estádios, noitadas, orações, jantares românticos, mães ninando seus filhos, colegiais estudando”. E o neurologista Oliver Sacks diz, em seu Alucinações musicais, que:

Nós, humanos, somos uma espécie musical além de linguística. Isso assume muitas formas. Todos nós (com pouquíssimas exceções) somos capazes de perceber música, tons, timbre, intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e, talvez no nível mais fundamental, ritmo. Integramos isso tudo e “construímos” a música na mente usando muitas partes do cérebro. E a essa apreciação estrutural, em grande medida inconsciente, adiciona-se uma reação muitas vezes intensa e profundamente emocional […] Ouvir música não é apenas algo auditivo e emocional, é também motor. “Ouvimos música com nossos músculos”, Nietzsche escreveu. Acompanhamos o ritmo da música, involuntariamente, mesmo se não estivermos prestando atenção a ela conscientemente, e nosso rosto e postura espelham a “narrativa” da melodia e os pensamentos e sentimentos que ela provoca. Boa parte do que ocorre durante a percepção da música também pode ocorrer quando a música é “tocada na mente”. A imaginação de uma música, mesmo nas pessoas relativamente não musicais, tende a ser notavelmente fiel não só ao tom e ao sentimento do original, mas também à altura e ao ritmo. A base disso é a extraordinária tenacidade da memória musical, graças à qual boa parte do que ouvimos nos primeiros anos de vida pode ficar “gravado” no cérebro pelo resto de nossa existência. O fato é que o nosso sistema auditivo, nosso sistema nervoso, é primorosamente sintonizado para a música. Ainda não sabemos quanto isso se deve às características intrínsecas da música – seus complexos padrões sonoros tecidos no tempo, sua lógica, seu ímpeto, suas sequências indecomponíveis, seus insistentes ritmos e repetições, o modo misterioso como ela incorpora emoção e “vontade” – e quanto às ressonâncias especiais, sincronizações, oscilações, excitações mútuas, feedbacks etc. no imensamente complexo conjunto de circuitos neurais multinivelados que fundamenta nossa percepção e reprodução musical. Mas esse maquinário complexo – talvez por ser tão complexo e altamente desenvolvido – é vulnerável a várias distorções, excessos e panes.

Tais exceções referem-se aos que sofrem de amusia, que é a incapacidade de discernir sons musicais. Sacks cita como exemplo uma passagem da autobiografia do escritor Vladimir Nabokov, na qual ele diz: “Digo com pesar que a música afeta-me meramente como uma sucessão arbitrária de sons mais ou menos irritantes. [...] O piano de cauda e todos os instrumentos de sopro em pequenas doses entediam-me e em grandes doses, flagelam-me”.

Mas não é o meu caso. Sempre fui um bom ouvinte de música, e quando decidi me aprofundar no conhecimento de música clássica, percebi que as muitas coisas que me soavam estranhas não eram problema na música, mas minha ignorância no gênero – de quem não foi educado ouvindo algo tão exigente em termos de percepção – que precisava ser vencida. Hoje sou capaz de apreciar MPB e R&B com o mesmo interesse, bem como regozijar-me tanto com o som absolutamente melódico de Johann Sebastian Bach – sobre quem já escrevi, aqui, nesta Gazeta do Povo –, quanto sentir certo prazer no dodecafonismo desconjuntado de Arnold Schoenberg.

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C. S. Lewis, num ensaio chamado Sobre música sacra, tem uma observação muito interessante a respeito dessa (in)capacidade de assimilar aquilo que, digamos, está fora de nossa familiaridade inicial de percepção:

Há duas situações musicais sobre as quais, eu penso, podemos estar confiantes de que repousa uma bênção. Uma é aquela em que um sacerdote ou um organista, ele mesmo um homem de gosto treinado e delicado, sacrifica humilde e caridosamente seus (esteticamente corretos) desejos, e dá às pessoas uma comida mais humilde e inferior do que ele gostaria, na crença (mesmo, como pode ser, a crença errônea) de que ele pode, desse modo, levá-las a Deus. A outra é aquela em que o leigo estúpido e sem cultura musical, humilde e pacientemente e, acima de tudo, silenciosamente, ouve música que ele não pode, ou não pode plenamente, apreciar na crença de que ela, de alguma forma, glorifica a Deus e de que, se ela não o edifica, isso deve ser seu próprio defeito. (C. S. Lewis, Sobre música clássica)

O fato é que, como diz Richard Wagner – o imenso compositor sobre o qual também já escrevi –, em seu ensaio sobre Beethoven, “a música fala uma linguagem imediatamente compreendida por todos, sem necessidade da mediação de conceitos, o que justamente a diferencia por completo da poesia, cujo único material são os conceitos empregados para tornar clara a idéia”.

Esse modo imediato pode ocorrer de três modos, como nos apresenta Aaron Copland em Como ouvir e entender música:

Todos nós ouvimos música de acordo com as nossas aptidões variáveis. Mas, para utilidade da análise, o processo completo da audição pode se tornar mais claro se nós o decompusermos nas suas partes componentes. Sob um certo aspecto, todos nós ouvimos música em três planos distintos. À falta de terminologia mais exata, poderíamos chamá-los de (1) plano sensível, (2) plano expressivo, (3) plano puramente musical […]. A maneira mais simples de ouvir música é entregar-se totalmente ao próprio prazer do som. Esse é o plano sensível. É o plano em que nós ouvimos música sem pensar, sem tomar muita consciência disso […]. Só Deus sabe como é difícil dizer precisamente o que é que significa uma peça musical, e dizê-lo de uma maneira definitiva, que satisfaça a todo mundo. Mas isso não deveria levar-nos ao extremo de negar à música o direito de ser ‘expressiva’. A minha própria opinião é de que toda música tem o seu poder expressivo, algumas mais e outras menos, mas todas têm um certo significado escondido por trás das notas, e esse significado constitui, afinal, o que uma determinada peça está dizendo, ou o que ela pretende dizer. O terceiro plano em que a música existe é o plano puramente musical. Além da atração do som e dos sentimentos expressivos que ela transmite, a música existe no plano das próprias notas e da sua manipulação. A maioria dos ouvintes não tem suficiente consciência desse terceiro plano. [...] O músico profissional, por outro lado, costuma sofrer do defeito contrário, dando uma excessiva atenção às notas.

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Como podes perceber, caríssimo leitor, meu gosto pela música levou-me ao desejo de aprofundar-me no conhecimento da música e compreender não somente os seus aspectos técnicos, como também o seu magnífico poder de educar o nosso imaginário.

Não é à toa que a música integra o Quadrivium, que, juntamente com a Aritmética, Geometria e Cosmologia, mais a Gramática, Retórica e Lógica do Trivium, formam o potente conjunto das sete artes liberais da educação clássica. Não só minha apreciação musical melhorou, pois sou capaz de discernir melhor os quatro elementos – ritmo, melodia, harmonia e timbre – das músicas que ouço, bem como analisar, mesmo com o pouco conhecimento técnico que possuo, uma boa música em termos de afinação e/ou execução.

Os processos cerebrais que ocorrem na audição musical, apresentados com exemplos interessantíssimos por Daniel Levitin, ou o seu poder terapêutico, como nos mostra Oliver Sacks, são dignos de nossa atenção. Sacks diz: “a música pode nos acalmar, animar, consolar, emocionar. Pode nos ajudar a obter organização ou sincronia quando estamos trabalhando ou nos divertindo. Mas para pacientes com várias doenças neurológicas ela pode ser ainda mais poderosa e ter imenso potencial terapêutico. Essas pessoas podem responder intensamente e de maneira específica à música (e, às vezes, a mais nada)”.

É por esse motivo que quis apresentar-te, paciente leitor, um pouco de minha relação com a música, e encorajar-te, como professor que sou, a incluíres a música não só como entretenimento em sua vida, mas como um elemento fundamental de educação, não se restringindo àquelas músicas que ouvimos nos momentos de diversão (o plano sensível), mas aumentando teu repertório e aprendendo da música aquilo que ela tem de mais sublime, e que o divino John Coltrane – cujo gênero, o jazz, aprendi a apreciar mais recentemente – se refere em seu poema a Deus, no qual se baseou para compor Psalm, o quarto movimento de sua obra-prima, a suite A Love Supreme: “Elação, Elegância e Exaltação”.

Viva a Música!

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