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“Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te.” (2 Timóteo 3,1-5)
O ano era 2003. Eu era voluntário numa missão que trabalhava com pessoas encarceradas e em situação de rua. Durante um ano fui, com outros voluntários, todos os sábados, à extinta Febem; violão no ombro e Bíblia debaixo do braço para levar amor e consolo àqueles jovens já tão massacrados pelas escolhas e pelas circunstâncias. Muitos voluntários e missionários eram recuperados de drogas e do crime, pessoas que haviam se convertido pelo trabalho da missão e se juntavam a ela no afã de testemunharem a transformação pela qual haviam passado. Pregavam nas igrejas e davam seus testemunhos, na maior parte das vezes assustadores, a fim de evidenciarem que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Romanos 5,20).
Sempre estranhei um pouco a superexposição de pessoas que haviam acabado de sair de situações de extrema vulnerabilidade, e que, no meu entender – o que se provou verdadeiro em alguns casos –, não estavam preparadas para serem colocadas em púlpitos, diante de plateias que acabariam por tentar-lhes o ego em resposta às suas histórias chocantes e comoventes. Lembro-me de um que, recém-saído da extinta Casa de Detenção, dizia, nos púlpitos, como parte de seu testemunho, em meio a “glórias a Deus” e “aleluias”, algo como – parafraseio, pois não lembro exatamente suas palavras – “matei 20 pessoas, mas Deus foi misericordioso e me deu 20 louvores”. A exultação era geral. Anos depois fiquei sabendo que ele havia voltado para a prisão.
Quando as pessoas de uma igreja em Goiânia ouviram os relatos absolutamente desconcertantes de Damares Alves sobre supostos casos de práticas sexuais grotescas com crianças, ninguém rasgou as vestes diante de tamanha atrocidade
Quem não lembra do falso Guina – personagem fictício da música Tô ouvindo alguém me chamar, do Racionais MCs –, que vivia pelas igrejas a dar seu testemunho de ex-criminoso amigo do mais importante grupo de rap do Brasil e ganhando dinheiro com a boa fé dos irmãos? Um dos membros do Racionais foi atrás dele num culto, mas não adiantou, o estelionatário continuou enganando os fiéis com a anuência das igrejas. Isso porque as igrejas evangélicas pentecostais sempre foram celeiros desse tipo de sensacionalismo pseudoespiritual. Fora as teorias conspiratórias: chip da besta, Nova Ordem Mundial, Illuminatis, Maçonaria e toda sorte de imbróglios secretos sempre povoaram os púlpitos e sermões. Os testemunhos, muitas vezes escabrosos como os descritos acima e piores, eram (e são ainda) o prato principal de muitas igrejas, é uma cultura sedimentada.
Por isso, quando as pessoas da igreja Assembleia de Deus Ministério Fama, em Goiânia, ouviram os relatos absolutamente desconcertantes da ex-ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, sobre supostos casos de práticas sexuais grotescas com crianças, na Ilha de Marajó, afirmando ter visto vídeos e fotos de bebês, com meses de vida, que haviam sido violentamente estupradas, ninguém rasgou as vestes diante de tamanha atrocidade, pois essa nem era a intenção da senadora eleita. Por isso nenhum pai ou mãe se constrangeu por seus filhos pequenos – que aparecem no vídeo – ouvirem aquelas atrocidades; a igreja normalizou tais relatos. E tem mais: na sequência, ela disse: “Bolsonaro disse: ʻnós vamos atrás de todas elasʼ, e o inferno se levantou contra esse homem”. E completou: “A guerra contra Bolsonaro que a imprensa levantou, que o Supremo levantou, que o Congresso levantou, acreditem, não é uma guerra política, é uma guerra espiritual”. Ou seja, ela estava ali em campanha política, como senadora eleita e como ex-ministra dos Direitos Humanos, e aqueles supostos relatos serviram única e exclusivamente para chamar a atenção dos fiéis para a luta do messias, candidato à reeleição, contra as hostes malignas.
Damares, para todos os efeitos, deu um testemunho como qualquer outro, como deve fazer desde sempre dentro das igrejas, como muitos outros também o fazem, compartilham e espiritualizam atrocidades a fim de comover sua audiência. Por isso não sentiu necessidade de sustentar suas acusações, como representante de um dos três poderes da República e ex-ministra de Direitos Humanos, com provas. Por isso, ao ser questionada pelo Ministério Público a provar as seríssimas acusações que fez, ela simplesmente respondeu: “o que eu falo no meu vídeo são as conversas que eu tenho com o povo na rua. Eu não tenho acesso, os dados são sigilosos”. Ou seja, os vídeos e fotos que ela diz ter visto se tornaram, magicamente, “conversas com o povo”, pois “os dados são sigilosos”. Ou seja: mentiu como o falso Guina. E quem defende essa atitude em nome do denuncismo inconsequente, com a desculpa de que os casos são amplamente conhecidos, vira as costas às leis e à institucionalidade para ser conivente com a mentira; desse modo, se iguala aos “feiticeiros, os que se prostituem, os homicidas e os idólatras” de Apocalipse 22,15.
Dias atrás, outro fato no mínimo curioso foi percebido numa entrevista que o candidato à reeleição deu a um podcast. Em determinado momento, em que ele estava falando sobre o perigo de o Brasil virar uma Venezuela – o bom e velho pânico moral –, ele disse: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas; de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei, ‘posso entrar na tua casa?’ Entrei. Tinha umas 15, 20 meninas, [num] sábado de manhã, se arrumando – todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos se arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida”.
A campanha petista, que resolveu entrar no jogo sujo das narrativas de redes sociais, focou no “pintou um clima” para espalhar uma hashtag acusando o candidato de pedófilo. No entanto, para mim, muito, muito pior foi a falsa acusação de prostituição infantil feita a menores estrangeiras a quem o país que ele preside ofereceu asilo; fora a flagrante prevaricação. Mas a coisa piora, pois um vídeo da visita começou a circular por meio de bolsonaristas, a fim de mostrar que a verdadeira intenção do motoqueiro havia sido conversar com as mulheres que habitavam na casa. Ele entrou, conversou, abriu a geladeira, perguntou como era na Venezuela e pregou o seu habitual pânico anticomunista. No entanto, as “menininhas arrumadinhas” que ele acusou de prostituição estavam, naquele momento, recebendo um tratamento de beleza como parte de um projeto social: “uma cabeleireira e oito pessoas de sua equipe cortavam cabelo, faziam escova, prancha e babyliss em um grupo de mulheres venezuelanas”. A cabeleireira ainda esclareceu a um portal de notícias: “Nós falamos para ele: ʻolha, Bolsonaro, aqui é um evento, eu trouxe as minhas alunas para um treinamento aqui e as meninas estão ficando bonitasʼ”. Ou seja, indignado leitor, o candidato mentiu, mas não só: inventou uma história de prostituição infantil, que ele repetiu em outros lugares, e acusou crianças refugiadas de fazer programa em seu país. Se isso não é crime, não sei o que é.
Para os dois casos, não faltaram explicações da militância bolsonarista – e xingamentos a quem se recusou a aceitá-las –, não minimizando o problema, mas considerando tudo absolutamente normal e correto. São duas pessoas de Deus lutando pelo país. Por isso, a palavra que não me sai da mente ao refletir sobre isso é grotesco. Estamos em plena normalização do grotesco. E aqui empresto a definição do germanista Wolfgang Kayser, em sua análise do fenômeno na arte, para dizer que o grotesco é “algo angustiante e sinistro em face de um mundo em que as ordenações de nossa realidade estavam [estão] suspensas”.
As militâncias políticas fanatizadas – à direita e à esquerda – não enxergam nada além de seus narizes ideológicos e o país sofre na miséria moral e física
A mim está claro, atento leitor: um país formado, nas últimas décadas, à base de Banheira do Gugu, Pânico na TV, crianças dançando na boquinha da garrafa, programas de jornalismo policial sensacionalista às 5 da tarde – como diz meu amigo Alê Santos, “café da tarde com violência” –, CQC, SuperPop, Ratinho e muitos outros, sem qualquer filtro cultural ou moral sólido; um país que elegeu o Tiririca quatro vezes e vem elegendo Jair Bolsonaro há 30 anos não pode estar bem. Um país que prende um político por corrupção para depois soltá-lo e vê-lo liderar as pesquisas de intenção de voto não pode estar bem.
Some-se a isso uma igreja evangélica que vem crescendo exponencialmente não à base de sólidos fundamentos da fé cristã – e falo como um evangélico que há mais de 20 anos critica esse fenômeno –, mas de heresias toscas e pseudoespirituais como as “teologias” da confissão positiva e da prosperidade, e os famigerados seminários de batalha espiritual, que investem pesado não em conhecimento, mas em sujeição emocional. Tudo isso conduzido por líderes incapazes e, muitas vezes, inescrupulosos – como falei no artigo da semana passada. Uma igreja absolutamente entregue ao deus deste século.
Tudo isso nos leva a um desprezo total pela institucionalidade, pelo decoro, pela moral privada e pública, pelo ornamento legal, pelas virtudes; enfim, um desprezo pela ordem. Não há mais julgamentos realizados de acordo com a realidade. O brasileiro está vivendo na Segunda Realidade, e não só é incapaz de discernir os fenômenos e os tempos, mas se recusa a fazê-lo. Estamos, todos, acometidos das seis doenças do espírito contemporâneo das quais nos falava o imenso Constantin Noica. As militâncias políticas fanatizadas – à direita e à esquerda – não enxergam nada além de seus narizes ideológicos e o país sofre na miséria moral e física.
Como cristão mantenho minha esperança em Deus, mas que tem horas que gente desanima, isso tem.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos