“Não me tente! Não ouso tomá-lo [o Um Anel], nem mesmo para mantê-lo a salvo, sem uso. O desejo de controlá-lo seria grande demais para minhas forças. E vou precisar delas. Grandes perigos me esperam”. (Gandalf para Frodo em “o Senhor dos Anéis – A Sociedade do Anel”, de J. R. R. Tolkien, Martins Fontes)
A tentação que o poder exerce sobre nós é um dos mais instigantes temas, não só literários, mas também da filosofia. Não importam as intenções; tanto aqueles que desejam, clara e abertamente, fazer o mal e dominar, tiranicamente, a todos, quanto aqueles que, de posse do poder, julgam possuir abnegação suficiente para, através dele, fazer o bem, acabam por sucumbir. E pela experiência histórica (e também literária), o poder nas mãos de quem deseja fazer o bem pode causar muito mais estrago. O modo peculiar como as pessoas cheias de boas intenções são seduzidas e acabam por tiranizar àqueles que deveriam beneficiar, é notório e assustador.
Há o exemplo literário espetacular de O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, cuja citação em epígrafe mostra o pavor de Gandalf, o mago, diante do pedido de Frodo para que ele fique com o Um Anel. Outra cena marcante é quando Boromir sugere que eles usem o Anel para destruir o poder do Mal: “Por que não considerar que o Grande Anel chegou às nossas mãos para nos servir exatamente nesta hora de necessidade? Controlando-o, os Senhores Livres dos Livres podem certamente derrotar o Inimigo”.
Ao que Elrond, o elfo e senhor de Valfenda, lhe responde: “A força que tem, Boromir, é grande demais para qualquer um controlar por sua própria vontade, com exceção apenas daqueles que já têm um grande poder próprio. Mas, para estes, o Anel representa um perigo ainda mais fatal. Apenas desejá-lo já corrompe o coração. […] enquanto permanecer no mundo, representará um perigo mesmo para os Sábios. Pois nada é mau no início. Até mesmo Sauron não era. Tenho medo de tomar o Anel para escondê-lo. E não vou tomá-lo para fazer uso dele”.
Na obra-prima de Tolkien a tentação do poder é uma constante, sua sedução é uma ameaça aterradora e o desafio de todos é resistir e destruir o poder que pode destruí-los. Mas há uma obra na qual o poder, efetivamente, faz suas vítimas em nome de um ideal de liberdade – não através de um objeto, mas de uma insurreição revolucionária. Trata-se da fábula A revolução dos bichos, de George Orwell, publicada pela primeira vez em 1945, em plena Segunda Guerra Mundial. Essa pequena história de animais antropomórficos é considerada, por C. S. Lewis, melhor que a mais conhecida – e volumosa – obra de Orwell, a distopia 1984: “Paradoxalmente, quando Orwell transforma todos os seus personagens em animais, ele os torna mais humanos”, diz ele em seu ensaio sobre o autor, presente na obra Sobre histórias (Thomas Nelson).
Numa fazenda situada na Inglaterra, os animais, seguindo os ensinamentos de um velho porco chamado Major (uma clara alusão a Marx) – que morre logo no início do livro após um discurso no qual lhes conta um sonho que tivera, de como seria o mundo “quando o Homem desaparecer” –, se rebelam e tomam a fazenda de seu proprietário, Sr. Jones, instaurando um regime que prometia ser de liberdade e igualdade plenas. O comando da revolução recai sobre os porcos, “reconhecidamente os mais inteligentes entre os animais”. Após organizarem a doutrina do velho Major, o Animalismo, os porcos Bola-de-Neve e Napoleão preparam a tomada de poder, que “ocorreu muito mais cedo e mais facilmente do que se esperava”.
Tendo se livrado de todos os humanos da fazenda, os porcos, que tinham aprendido a ler e escrever, resumiram o Animalismo em Sete Mandamentos que todos deveriam seguir:
Curiosamente, os porcos, em sua posição de liderança, “não trabalhavam, propriamente, mas dirigiam e supervisionavam o trabalho dos outros”. Ou seja, o regime igualitário demonstrou sua falha logo no início, quando aqueles considerados intelectualmente mais capazes passaram a ter proeminência sobre os demais. Ou seja, tudo ia bem até que os porcos começaram a tirar vantagem de sua posição – primeiro comendo mais do que os outros quando tudo deveria ser repartido igualmente entre todos, depois indo morar na casa-grande quando a resolução era que “nenhum animal jamais deveria habitá-la”; e assim por diante, desobedecendo a cada um dos mandamentos que eles próprios tinham estabelecido.
Não demorou muito para que tal atitude descambasse numa tirania semelhante – senão pior – à perpetrada pelos humanos. Napoleão deu um “golpe de estado”, tornou-se o soberano e, juntamente com seu Ministro da Propaganda, o porco Garganta, terminaram por se aliarem aos humanos, a andar sobre as duas patas traseiras e resumindo todos os Sete Mandamentos numa única sentença: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”.
A revolução dos bichos, apesar de ter sido escrita como uma crítica direta ao regime stalinista – como afirma o próprio Orwell –, trata-se de um contundente libelo satírico contra todo e qualquer autoritarismo e/ou totalitarismo, cujos exemplos abundam na história recente.
Voltando, filosoficamente, ao tema do anel, Platão já alertava para a sedução do poder ao narrar a lenda de Giges, em A República. No livro II da obra, aquele que por muitos (e por mim) é considerado o maior filósofo de todos os tempos, conta a história de um pastor, habitante da Lídia (Ásia Menor), que ao entrar numa fenda aberta no chão por um terremoto, encontra um cavalo de bronze, oco, e dentro dele um cadáver com um anel de ouro no dedo. Ele pega o anel. Logo depois, durante uma reunião de pastores, descobre que ao virar o engaste do anel em direção à parte interna da mão, tornava-se invisível.
Diz Platão: “Tendo observado estes factos, experimentou, a ver se o anel tinha aquele poder, e verificou que, se voltasse o engaste para dentro, se tornava invisível; se o voltasse para fora, ficava visível. Assim senhor de si, logo fez com que fosse um dos delegados que iam junto do rei. Uma vez lá chegado, seduziu a mulher do soberano, e com o auxílio dela, atacou-o e matou-o, e assim se assenhoreou do poder”. E arremata: “Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pusesse um, e o injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens, como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta maneira, os seus atos em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam o mesmo caminho”. (Platão, A República, Fundação Calouste Gulbenkian)
A história de Giges, inclusive, é uma das possíveis inspirações de Tolkien para o seu Um Anel – que também dava o poder de invisibilidade.
Que estas referências nos sirvam de alerta, pois, neste início de um novo governo em nosso país, cercado de promessas de “um novo tempo para o Brasil” ou até de uma “nova era”, e que tem introduzido às esferas do poder um número considerável de outsiders que nunca tiveram de lidar com a complexa (e corrupta) estrutura de poder brasileira, todo cuidado é pouco.
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