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“Numa época em que tão grande parcela da vida intelectual degenerou-se num experimento contra a realidade, talvez nossa principal incumbência seja enfrentar o fato de que muitas libertações que desejamos serviram, sobretudo, para agravar a nossa perda.”
(Roger Kimball, Experimentos contra a realidade)
O “País do Futebol” deixou de sê-lo para se tornar o “País do BBB”. Se, antes, a já baixíssima produtividade brasileira só começava a dar sinais de vida após o Carnaval, de uns anos para cá, é só depois do Big Brother Brasil, em, março, que as pessoas conseguem se concentrar nas coisas, digamos, úteis. Até que esse programa – a segunda maior fonte de lucro da emissora, só perdendo para o futebol – termine, as marcas, os influenciadores, os programas de comentários culturais e entretenimento, os jornais, enfim, todo mundo se volta para esse experimento social disfarçado de competição.
O populacho, pensando estar assistindo a um reality show em que as atitudes das pessoas são absolutamente normais – e não manipuladas para gerar polêmica e, consequentemente, números – fica vidrado, gerando audiência recorde e atingindo a impressionante marca de 100 milhões de pessoas assistindo ao programa.
Desde a edição de 2021 – sobre a qual dei um pitaco aqui, nesta Gazeta do Povo –, um tipo diferente de experimento social tem sido produzido, com intensidade vertiginosa, na “casa mais vigiada do Brasil”: o conflito racial. Competidores negros têm sido escolhidos a dedo a fim de gerar todo tipo de discussões sobre racismo, bem ao gosto do discurso militante atual, e gerar debates que tendem ao infinito nas redes sociais. Aí uma escalada ocorre: perseguindo o like, o engajamento e, obviamente, a monetização, influenciadores negros se debruçam sobre esses delirantes discursos sobre o nada a fim de chamarem a atenção para os seus reacts e comentários igualmente alucinados. E todo o mundo sai ganhando, menos a razão.
Na edição atual, o conflito entre uma famosa e um cidadão comum – no caso, a cantora-e-filha-de-Zezé-de-Camargo, Wanessa Camargo, e Davi, um motorista de aplicativo –, geraram muitas polêmicas e, obviamente, acusações de racismo à Wanessa pelo modo como, ao que parece, conspirou contra Davi na casa. Falo isso baseado em duas ou três pesquisas que fiz, pois sequer sabia dessa divisão atual entre Camarote (onde ficam os famosos) e Pipoca (onde ficam os Zés Ninguéns que se inscrevem), e como essa confusão começou. Só sei que, após uma “agressão” – um tapa que deu no rapaz (que carrega o combo de ser nordestino e negro) enquanto estava embriagada e dançando de modo espalhafatoso –, Wanessa foi expulsa do BBB, e, ao sair do programa, soube que estava sendo acusada de racista.
Eu, que faço um esforço real para não saber o que está ocorrendo nesse programa, acabei por ver o vídeo que Wanessa gravou, em suas redes sociais, a fim de se defender. Ela disse:
“Eu não tenho medo de me olhar no espelho, de me reconhecer, aprender e por isso eu estou aqui, porque hoje eu entendo que algumas das minhas falas e comportamentos dentro da casa do BBB, em relação ao Davi, se enquadram no racismo estrutural, que está enraizado na nossa sociedade e dentro de nós, pessoas privilegiadas. A gente acaba praticando sem perceber e sem se dar conta de quanto isso afeta a população já tão machucada e discriminada por séculos.”
Uma patetice sem fim, admitamos. Mas seu mea culpa não passou incólume, pois, rapidamente, os defensores da teoria social esdrúxula proposta por Sílvio Almeida, correram para defender a teoria do problema básico do qual padecem todas essas maluquices ideológicas abstratas: a desconexão da realidade e, na falta de clareza conceitual, os desdobramentos inesperados e as interpretações subjetivas. André Santana, colunista do UOL, num artigo intitulado Racismo estrutural, alegado por Wanessa Camargo, não é álibi para racistas, disse: “O termo tem sido utilizado com frequência para justificar práticas de discriminação racial, como sendo sempre culpa das estruturas racistas da sociedade. Os indivíduos, como produtos dessa sociedade, acabam apenas por reproduzir”. Mas não é exatamente isso que a teoria faz transparecer quando afirma que o racismo estrutural é uma espécie de “racismo sem racistas”, como diz Eduardo Bonilla-Silva na afirmação que intitula o seu livro, do qual Almeida adaptou sua tese?
Desde a edição de 2021 um tipo diferente de experimento social tem sido produzido, com intensidade vertiginosa, na “casa mais vigiada do Brasil”: o conflito racial
E o próprio Sílvio Almeida foi às suas redes sociais tentar explicar (de novo e de novo, como terá de fazer sempre), com um textão, aquilo que seu livro, de tão confuso, não conseguiu. Mas não o fez honestamente, pois apelou para o sofisma e para uma das falácias mais baratas de todas: o argumento de autoridade. Em vez de se preocupar em não ter definido as premissas básicas de sua tese no livro – que sequer define o que é uma estrutura social, um erro grave a qualquer pensador que se pretende sério –, Almeida iniciou seu post, dizendo:
“Vez ou outra, pelos motivos mais inusitados, o conceito de racismo estrutural volta a alimentar debates nas redes sociais. E o que mais me deixa impressionado nas polêmicas não é ver pessoas que nunca estudaram o tema ou que não são da academia distorcerem o conceito, mas o fato de pessoas supostamente estudiosas ou que vem [sic] da academia falarem de algo que evidentemente não conhecem ou de um livro que nunca leram (o meu, no caso). A ignorância, nessa último [sic] situação, vem acompanhada de tanta autoridade e arrogância que a gente passa a duvidar se escreveu certas coisas”. (grifos meus)
Agora, responda-me, caro leitor: tem coisa mais absolutamente arrogante do que dizer que pessoas que analisam e criticam – e, por vezes, discordam de – sua obra, o fazem por arrogância? Dizendo isso, Sílvio Almeida prejudica ainda mais a sua imagem de intelectual público e acadêmico. Eu crítico o conceito desde 2018 e o fiz outras tantas vezes em minha coluna, mas, como não pertenço à Academia, até compreendo que seja ignorado. Entretanto, notórios intelectuais de esquerda, como Jessé Souza, Antônio Risério e Muniz Sodré também criticaram. Será que não leram o livro? Todos eles no debate público há muito mais tempo que Almeida, e com uma quantidade considerável de livros publicados, não compreenderam o livro Racismo Estrutural?
O fato é que essas teorias abstratas são formuladas cheias de ambiguidades, pois não falam propriamente da realidade, mas são uma interpretação desta realizada pelos autores. E como, atualmente, tais teorias chegam no debate público (agora, com as redes sociais, isso escalou) antes de serem testadas e criticadas pelos pares acadêmicos, são tomadas por militantes – e assumidas por celebridades que querem parecer conscientes, como Wanessa Camargo – como a própria realidade, como verdades absolutas, e causam confusão – quando não causam mortes mesmo.
Racismo Estrutural, Lugar de Fala, Racismo Reverso e outras teorias são parte de uma interpretação da realidade baseada no conceito foucaultiano de relações de poder, e se você discorda dessa visão de mundo – e é perfeitamente possível discordar –, jamais concordará com as formulações criadas a partir dela. Mesmo o senso comum as rejeita. Mas intelectuais pós-modernos como Sílvio Almeida não aceitam ser questionados, não aceitam que suas teses são, muitas vezes, indefensáveis – às vezes, estúpidas mesmo.
Voltando à Wanessa Camargo, óbvio que ela foi orientada a fazer aquele vídeo; e no domingo deu entrevista para o Fantástico para provar, mais uma vez, que continua a gozar tranquilamente dos privilégios que questionou em sua constrangedora confissão. Para ela, é vida que segue. Já os influenciadores negros e palpiteiros de Big Brother ganharam mais uns dias de assunto para faturar uns trocos, e o tal Davi, caso não saia vitorioso dessa patacoada televisiva, é o único que não terá ganhado nada com isso.
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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise