| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney
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“O fato de a língua, empregada do utilizador humano, poder dizer não apenas o que é, mas também o que ʻnão éʼ – ou seja, o fato de que uma palavra pode dizer não apenas a verdade, mas também mentir – explica por que a história do homem é, em sua essência, uma corrente de desastres.” (Gabriel Liiceanu)

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Na última semana, a celeuma em torno do PL 1.904/24 – que visa a equiparar a pena da realização de aborto após a 22.ª semana ao crime de homicídio – causou todo tipo de reação nas redes sociais. Não preciso me estender aqui, pois o leitor da Gazeta é bem informado a esse respeito, bem como sabe a posição assertiva do jornal. De minha parte, não tenho muita certeza se concordo com o modo como essa votação do PL foi conduzida e realizada, pois, é forçoso admitir, acabou por unir a esquerda, que acabou por influenciar a sociedade com a narrativa esdrúxula de que se trata de criminalizar a mulher e privilegiar o estuprador, e puxar para si a mentira óbvia de proteção à criança.

Minha posição sobre aborto, que o leitor saiba, não é propriamente técnica. Sou cristão e penso que a primeira coisa a ser definida é o início da vida, que, para mim, é um mistério divino. Por isso o aborto é, a qualquer tempo, problemático, para dizer o mínimo. Por outro lado, entendo as circunstâncias nas quais a necessidade se impõe – sobretudo aquelas já previstas em lei: gravidez resultante de estupro, fetos anencéfalos e risco de vida à mãe. De resto, tendo a não condescender. O aborto é sempre uma violação, e precisa ser visto como tal; qualquer tentativa de normalização é um atentado contra a humanidade.

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Não se trata de criminalizar a mulher ou mesmo de forçar uma criança a ser mãe, mas de pensar especificamente na vida do nascituro e na viabilidade fetal

Filosoficamente, a questão que se impõe, antes de qualquer outra, é moral. Como diz Francisco Razzo em seu best-seller Contra o aborto: “Há uma diferença enorme entre descobrir, de repente, que o hambúrguer é feito de carne, ou o achocolatado, de chocolate, e descobrir que o embrião não era bem um parasita biológico abusando da boa vontade de uma mulher. Daí a necessidade de investigar os erros argumentativos a fim de buscar corrigi-los ou minimizar seus efeitos”. Ou seja, as ideias sempre têm consequências, mas algumas consequências podem ser realmente desastrosas. Por isso, repetir por aí discursos prontos sem vislumbrar suas consequências na vida real é um risco enorme.

Um dos grandes problemas em relação ao tema do aborto é a mistura das questões de saúde pública com a militância política feminista. A necessidade de interromper uma gravidez – e, consequentemente, matar um feto – pelos motivos previstos em lei expostos acima é uma coisa; vociferar “meu corpo, minhas regras”, como se a gravidez e o feto fossem um mero empecilho para a plena liberdade feminina, é outra. Mesmo sem fazer juízo de valor sobre essas duas perspectivas, penso que elas deveriam ser totalmente separadas. E o que mais me chamou a atenção na discussão da semana passada foi exatamente o modo como as justificativas se misturaram e criaram um clima que favoreceu a desinformação.

Óbvio que não se trata de criminalizar a mulher ou mesmo de forçar uma criança a ser mãe, mas de pensar especificamente na vida do nascituro e na viabilidade fetal. Sabe-se que, a partir da 22.ª semana de gestação, a possibilidade de manter a criança viva fora do útero materno é alta; por isso, permitir um método tão arriscado quanto a assistolia fetal – que é a injeção de cloreto de potássio em altas doses no coração do feto para provocar uma parada cardíaca – é considerado feticídio. É isso, especificamente, que propõe o PL 1.904/24.

Mas foi curioso ver pessoas – em geral, de esquerda ou induzidas pelo sentimentalismo característico desse grupo – repetindo frases como “criança não é mãe” e “estuprador não é pai”, como se essa fosse a discussão. E na tentativa de barrar o PL apelou-se, como sempre, à chantagem emocional. A questão não é forçar uma criança a ser mãe, mas exatamente tentar preservar a vida de outra criança. Não de dar a chance de um estuprador ser pai – pai não é quem cria? –, o que é um pensamento absurdo. Sabemos que, em muitos casos, as mulheres encontram muitas dificuldades não só para comunicar a violência sexual, mas para conseguir realizar o aborto no tempo permitido por lei.

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Entretanto, esses casos extremos, limítrofes, podem ser tratados como exceção, não como regra. Mesmo porque, ainda que a criminalização seja aplicada, em relação à criança que aborta paira a condição de inimputabilidade ou, quando muito, o cometimento de um ato infracional e não um crime. E à mulher, como diz o Artigo 124 do PL, “O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”. Está no projeto, era só lê-lo antes de saírem dizendo que a mulher sofrerá pena maior que o estuprador.

Daí que antecipar o parto na 22.ª semana (ou um pouco depois), a fim de tentar manter viva uma criança que foi concebida como fruto de violência, não me parece que aumentará o imenso trauma enfrentado por uma mulher ou menina que sofreu a violência. O feto é tão inocente quanto a pessoa violentada. A criminalização visa a impedir que fetos de acima da 22.ª semana passem a ser abortados indiscriminadamente – até o nono mês, como determinou recentemente resolução do governo Lula. O único objetivo do controle dos casos permitidos de aborto é, nada mais, nada menos que preservar a vida de crianças; de preservar a vida de um inocente indefeso. Se a criança não pode ser mãe, ela pode entregar o bebê fruto da violência que sofreu para adoção, uma vez que a fila para adoção de bebês e crianças pequenas é enorme. A dificuldade está na adoção de adolescentes. Uma mulher pode fazer o mesmo.

Entendemos os desafios dessa situação, mas, se o traço fundamental de uma civilização é a preservação de suas crianças, por que a vida do nascituro vale menos? Se o corpo das mulheres pertence a elas, e o corpo das crianças que elas carregam? Ou, como disse aquela que se tornou um símbolo contemporâneo de bom senso, Dona Regina: E a criança?

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]