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“Batalhei a vida inteira para cantar o que quero, do jeito que quero.” (Billie Holiday)
“Aí está você
negra e mulher e apaixonada por si mesma.
Você é aterrorizantemente incrível
E eles ficam incrivelmente aterrorizados
(e devem ficar mesmo).”
(Upile Chisala)
Talvez eu não seja propriamente um catastrofista empedernido quando o assunto é música brasileira. Uma prova é que, recentemente, escrevi sobre a divina Rosa Passos e sua música fundamental. Termos no auge do sucesso figuras como MC Pipokinha, Manoel Gomes (o “Caneta Azul”), Gusttavo Lima ou Anitta só significa que, em termos mercadológicos, estão entregando o que as pessoas querem ouvir, o que elas foram, de certo modo, educadas e convencidas a ouvir. Esse é, na verdade, um problema cultural profundo, mas que não ocorre só no Brasil. A chamada cultura de massas é tema de discussão há bastante tempo – e nesse diagnóstico a Escola de Frankfurt tem uma contribuição importantíssima.
Isso não seria propriamente um problema se as pessoas consumissem toda essa parafernália descartável, mas não se esquecessem de que a cultura tem uma função educativa, civilizatória – falei disso também. Mas não a cultura de entretenimento, que, apesar de também ser necessária, é mera distração. Num artigo escrito em 2018, salientei que “cultura”, em sua acepção clássica, tem o sentido de cultivo e culto, ou seja: “a cultura diz respeito àquilo que o ser humano deve cultivar, preservar, aprimorar e reverenciar”. O entretenimento diverte, mas passa; a cultura como formação fica – deve ficar.
E não se trata aqui, nesse caso, de defender uma cultura clássica, elitizada, restrita e de difícil acesso. A cultura popular, moderna, é, segundo o filósofo Roger Scruton em seu Modern Culture, “fonte de sabedoria prática”. As culturas regionais, com suas características específicas, e até aquele tipo de arte que sofre certa discriminação – como o hip hop –, podem ser fonte de muita sabedoria – também já escrevi sobre isso. As culturas clássica e popular convivem, conversam e, não raro, convergem, como no caso de Moacir Santos, nosso Ouro Negro. O Brasil é pródigo em artistas que, através de sua vocação, preenchem nossa vida de sentido. E foi exatamente o que experimentei no último domingo, dia 17, no Sesc Vila Mariana, no show de três das maiores cantoras brasileiras de todos os tempos: Alaíde Costa, Eliana Pittman e Zezé Motta.
As culturas regionais, com suas características específicas, e até aquele tipo de arte que sofre certa discriminação, podem ser fonte de muita sabedoria. As culturas clássica e popular convivem, conversam e, não raro, convergem
Zezé talvez seja, atualmente, a mais conhecida das três. Em atividade no teatro e na tevê desde a década de 1960, estreou atuando na peça Roda Viva, de Chico Buarque; mas ganhou notoriedade no papel de Chica da Silva no filme homônimo de Cacá Diegues, de 1976. Nascida em 27 de junho de 1944, no interior de Campos dos Goytacazes (RJ), Zezé tem uma carreira consolidada em novelas da Rede Globo (também atuou em novelas na Record e na Band), séries de televisão e no cinema, onde sempre fez questão de exaltar sua negritude com papéis marcantes e inesquecíveis. Sua carreira de cantora despontou no início dos anos 1970, por incentivo do pai, que era músico.
Após cantar em casas de show em São Paulo, lançou seu primeiro LP em 1975, em parceria com Gérson Conrad, do Secos & Molhados. Conforme testemunha na biografia escrita por Rodrigo Murat para a coleção Aplauso, da Imprensa Oficial: “Já tinha feito pequenas incursões no mercado fonográfico. Dois compactos com músicas que eu cantava em espetáculos teatrais e um LP – Trem Noturno – em parceria com o Gérson Conrad. O Secos & Molhados, grupo do qual o Gerson fazia parte, se desfizera e o repertório que ele tinha composto para o Ney Matogrosso estava sem intérprete. Como ele se considerava mais compositor que cantor, resolveu buscar alguém”. E complementa: “Ao me ver no Godspell, ficou impressionado. Eu cantava Day by Day e realmente era um escândalo. Começava cantando bem grave e terminava com uma nota superaguda. Era aplaudida em cena aberta todo dia e uma vez chegaram a pedir bis”. Zezé nunca mais parou. Seu mais recente álbum foi O samba mandou me chamar, de 2019.
Eliana Pittman nasceu em 14 de agosto de 1945, no Rio de Janeiro, e sua história é um dos acontecimentos mais extraordinariamente pitorescos da arte brasileira. Filha de Ofélia, que era cabeleireira, costureira e líder de certa classe média negra paulistana, e de Orlando Francisco da Silva, funcionário do Banco do Brasil, tinha o sonho de se tornar bailarina clássica; a música não fazia parte de seus planos. O casamento entre Ofélia e Orlando já não ia bem (o homem era mulherengo) quando, em 1957, o grande Louis Armstrong veio ao Brasil para um show no Teatro Paramount, em São Paulo, e dona Ofélia reuniu a nata negra para assistir ao lendário trompetista e cantor da clássica What a wonderful world. Levou a filha. Enquanto todos tietavam Armstrong, dona Ofélia não tirava os olhos do saxofonista virtuose da banda, cuja história conhecera por uma revista. Booker Pittman era amigo de longa data de Armstrong e havia sido convidado por ele para participar do show ao reencontrá-lo no Brasil, após ser dado como morto por conta de sua vida andarilha e do vício em álcool e drogas. Eliana conta, em entrevista concedida ao site Farofafá:
“Minha mãe era cabeleireira, costureira, era uma líder negra aqui de São Paulo. Quando ela viu Booker entrando, lembrou que tinha visto uma reportagem na revista O Cruzeiro sobre ele sendo resgatado do Paraná de vício, uma história muito incrível que marcou ela. Quando ele entrou, ela se preocupou que talvez ele não desse conta do recado, porque estava havia tanto tempo fora do ambiente de música, de jazz. Mas Booker arrebentou. Quando terminou, ela foi conversar com ele, e não sei como foi que minha mãe namorou Booker Pittman atrás da igreja da Consolação durante seis meses. Ninguém sabia de nada.”
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Agora, caso o leitor não saiba, Booker Pittman era neto de ninguém menos que Booker T. Washington, figura frequente desta coluna, cuja história você pode ler aqui. Washington foi um dos maiores ícones negros da história americana, que saiu da escravidão – nasceu em 1856, nove anos antes da abolição – para se tornar o primeiro diretor do Tuskegee Institute, importante universidade negra americana, fundada em 1881, empreendedor e um orador requisitado.
E foi por influência e incentivo de Booker Pittman, com quem foram morar após a mãe separar-se de Orlando, que Eliana começou a cantar, despretensiosamente, para substituir uma cantora que fora preterida para um evento do qual Booker Pittman ia participar. Em outra história, no mínimo, curiosa, de destino mesmo:
“Em 1961, o embaixador americano do Rio de Janeiro ia promover um evento para receber a banda dos fuzileiros navais americanos e Booker foi convidado a tocar com a sua banda; Eliana conta que havia rumores de que a cantora do conjunto era muito paqueradora e isso incomodava um pouco o embaixador. ʻEle, então, pediu para que outra pessoa cantasse no lugar dela. Foi aí que ele me convidou para cantar, me ensaiou. O trecho que eu cantaria seria assim: mama don’t want no music play here. Acontece que houve uma fatalidade, o avião caiu e o show não aconteceuʼ. Eliana, já ensaiada, foi convidada a acompanhar o padrasto em shows na tevê, cantou no programa de rádio de César de Alencar na Rádio Nacional no susto e passou a cantar também em standards de jazz, com 16 anos.”
Alaíde Costa é parte fundamental do nascimento da Bossa Nova, estilo que se imortalizou (e se internacionalizou) com, digamos, outra cara, de gênios como Vinícius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto, que foram seus amigos
Daí em diante, assumiu de vez a sua vocação, construindo uma sólida carreira no Brasil e no exterior, e não só na música, mas no cinema e na televisão. Primeiro, em companhia de Booker Pittman, que morreu de câncer em 1969; depois sozinha, conquistando o mundo. Seu recente álbum Hoje, Ontem e Sempre, de 2019, intimista e muito diferente do estilo que a imortalizou, recupera maravilhosamente a excelência de sua voz, naturalmente mais grave pela ação do tempo, com um repertório inusitado, que vai da clássica Drão, de Gilberto Gil, a uma releitura da pagodinesca Gamei, de Délcio Luiz, Flávio Venutes e André Renato, que fez um sucesso estrondoso nos anos 1990 com o grupo Exaltasamba. Em 2021 lançou As Canções de Elizeth, em homenagem à espetacular Elizeth Cardoso. Ainda que o sucesso meteórico dos anos 1970 tenha passado, o talento glorioso de Eliana Pittman segue nos encantando – como ficou, mais uma vez, provado no Sesc.
Já Alaíde Costa, que ostenta seus 87 anos com uma graça e uma vivacidade de enxerem os olhos, é parte fundamental do nascimento da Bossa Nova, estilo que se notabilizou (e se internacionalizou) com, digamos, outra cara, de gênios como Vinícius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto, que foram seus amigos. Nascida em 8 de dezembro de 1935, no Rio de Janeiro, iniciou sua carreira ainda criança e, também, contra a sua vontade inicial: inscrita, aos 11 anos, pelo irmão mais novo, Adilson, de 10 anos, num concurso de calouros no circo. De início ela recusou, mas o irmão a “ameaçou”, dizendo: “se você não for, a polícia vai te prender” – isso mesmo, atento leitor, uma criança de 10 anos (risos)! Venceu a competição e pegou gosto pela coisa.
Após participar de alguns programas musicais no rádio – inclusive dos lendários Paulo Gracindo e Ary Barroso –, assinou contrato como crooner com a casa de shows Dancing Avenida, e, no ano seguinte, gravou seu primeiro 78 rpm. Na segunda gravação que fez, chamou a atenção de um jovem João Gilberto, que estava no estúdio e pediu ao produtor Aloysio de Oliveira que a convidasse para participar de uma reunião de jovens artistas, na Zona Sul do Rio, que estavam criando um novo estilo musical. Ali conheceu figuras como Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra. Ou seja, a essas alturas, Alaíde, já profissional, conheceu os próceres da MPB e os ajudou a impulsionar aquela nova bossa.
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Explico: em 1959, em companhia dos três acima, mais Sylvia Telles e Billy Blanco, participou do 1.º Festival de Samba Session, na PUC-RJ. Quem nos conta é Ruy Castro, em seu inescapável Chega de Saudade: A História e as Histórias da Bossa Nova:
“O grande sucesso da noite foi Alayde Costa. Ela empolgou a multidão com Chora tua tristeza, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, que, meses depois, se tornaria a primeira canção ‘da Bossa Nova’ a estourar fora dos limites do movimento. Naquela noite, exceto por Sylvinha Telles, Alayde não tinha competição. O amadorismo e a inexperiência de quase todos os participantes se revelavam a cada compasso, mas o clima era tão de estudantada que se ouviu até, pela primeira e, felizmente, última vez na vida, Luiz Carlos Vinhas e Ronaldo Bôscoli – cantando!”
Aliás, é nessa mesma obra que Ruy Castro nos revela – não só a nós, mas também a Alaíde, que só ficou sabendo disso pelo livro – que nossa cantora era chamada de Ameixa pelos amigos em sua ausência. Numa conversa sensacional que tive com Alaíde no Noir, meu podcast nos Estúdios Flow, ela disse: “se eu soubesse, se eles chegassem, assim, para mim e dissessem ʻOi, Ameixa!ʼ, eu não ia levar na maldade”. Isso explica muita coisa, inclusive o porquê de, com o sucesso da Bossa Nova, Alaíde ter sido simplesmente abandonada, sendo substituída pelas cantoras que se notabilizaram no gênero depois dela. Também foi a única mulher a gravar na obra-prima de Milton Nascimento e Lô Borges, Clube da Esquina, na música Me deixe em paz, e fez os vocais da versão de Coisa nº 1, de Moacir Santos, com Baden Powell.
Emocionei-me com Eliana Pittman cantando Oceano, de Djavan; com Zezé cantando Magrelinha, de Luiz Melodia; e fui às lágrimas com Alaíde cantando Travessia, de Milton Nascimento
Alaíde seguiu uma carreira sólida, mas quase completamente no ostracismo, pois negou-se a ceder aos ditames do mercado – queriam que ela gravasse sambas –, mantendo seu estilo absolutamente único, com sua voz aveludada e sua afinação perfeita. Gravou discos independentes quase a carreira toda, vivendo à margem dos grandes palcos. Recentemente, foi redescoberta pelo rapper Emicida, que, durante a pandemia, em 2020, viu uma apresentação on-line de Alaíde cantando músicas de seu grande amigo Johnny Alf – outro precursor da bossa nova, o negro que inspirou os jovens brancos da Zona Sul e foi esquecido –, ficou encantado e contatou o produtor Marcus Preto com a sugestão de produzirem um álbum com canções inéditas de Alaíde. Uniram-se a outro produtor, Pupillo, e dessa união surgiu O que meus calos dizem sobre mim, obra-prima com canções inéditas de luminares como Francis Hime, Guinga, Erasmo Carlos, Ivan Lins, Joyce Moreno, Marcos Valle e Nando Reis, compostas especialmente para ela. Outro volume já está a caminho.
O contato com Emicida e o novo disco alçaram a carreira de Alaíde Costa a um patamar que ela jamais teve. Shows lotados, reconhecimento, muitas entrevistas e prêmios – em 2020, venceu como Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado, por sua atuação no filme Todos os Mortos, dos diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra.
Agora imagine, caro leitor, um show com essas três sumidades negras da música brasileira! Emocionei-me com Eliana Pittman cantando Oceano, de Djavan; com Zezé cantando Magrelinha, de Luiz Melodia; e fui às lágrimas com Alaíde cantando Travessia, de Milton Nascimento. Um show memorável – que segue pelo Brasil, o leitor que fique atento –, lotado, digno dessas a quem o Brasil tanto deve e que continuam, como diz Tarkóvski, fazendo arte para tentar pagar pelo dom extraordinário que receberam. Nós, por outro lado, jamais poderemos pagar por tanto talento.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos