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“Um instante de imaginação parece hoje importar mais que as realidades subsequentes. Foi a primeira bala que ouvi – de mim tão distante que ‘gania’ como a bala de um jornalista ou de um poeta dos tempos de paz. Naquele momento havia algo não exatamente como o medo, menos ainda como a indiferença: um sinalzinho tremulante que dizia: – ʻIsso é Guerra. Foi sobre isso que Homero escreveuʼ.” (C.S. Lewis, Surpreendido pela Alegria)
Passados o desespero, a apreensão e todo o sofrimento que a pandemia de Covid-19 nos causou, decidi incluir em meu Clube do Livro, no semestre passado, uma obra que, durante a pandemia, fez bastante sucesso, foi muito citada e se tornou um best-seller: A Peste, do genial franco-argelino Albert Camus. Fato é que eu já havia lido esse romance 17 anos atrás e, à época, impressionara-me muito não só a capacidade ímpar que Camus tem de descrever as situações, mas a figura do padre Paneloux e a célebre passagem sobre a morte de uma criança – que carreguei indelevelmente até a releitura recente:
“– Se um padre consulta um médico, há contradição. A Rieux, que lhe contava as palavras de Paneloux, disse que conhecia um padre que perdera a fé durante a guerra ao descobrir um rosto de rapaz com os olhos vazados.
– Paneloux tem razão – disse Tarrou. – Quando a inocência tem os olhos vazados, um cristão deve perder a fé ou aceitar que lhe furem os olhos. Paneloux não quer perder a fé, irá até o fim.” (grifo meu)
A precisão descritiva de Camus em A Peste é assustadora se comparada ao que passamos recentemente, e esse foi o ponto que mais nos chamou a atenção na (re)leitura
A morte de uma criança assombrara a todos, mas sobretudo o padre, que em veemente sermão afirmara: “A primeira vez em que esse flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos, e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos”. Se o flagelo é um castigo de Deus sobre os seus inimigos, que culpa tem uma inocente criança? Lembro-me de ter meditado nessa passagem por dias a fio. Mas a releitura, após o flagelo que nos acometeu, trouxe – não só a mim, mas a todos os membros do Clube – sensações novas e desconcertantes, que julguei, para dizer o mínimo, curiosas demais para não trazê-las à minha coluna e compartilhar contigo, nobre leitor.
A precisão descritiva de Camus é assustadora se comparada ao que passamos recentemente, e esse foi o ponto que mais nos chamou a atenção na (re)leitura. Se me lembro algo da primeira vez que li, há quase 20 anos, além da figura do padre, tive uma sensação de absurdo diante de tudo o que ocorre na pequena – e muito atraente – cidade argelina de Orã, com uma invasão de ratos e a proliferação epidêmica de uma mortífera peste bubônica. O isolamento social, as mortes sem explicação, a impotência dos médicos, o comportamento da sociedade etc., tudo me pareceu distante demais, irreal demais. Até que veio 2020.
Foi um choque perceber o quão precisamente profético Camus foi ao descrever as situações fictícias em Orã; o quão, ouso dizer, idênticos foram nossos próprios percalços à situação imaginada pelo autor. Mas isso tem uma razão: Camus utilizou informações de uma grande epidemia de cólera que atingiu Orã, em 1849, e matou uma grande porcentagem da população da cidade. Ou seja, percebemos o quão semelhantes são não só as manifestações dessas grandes epidemias, mas também a maneira de tentar controlá-las e a recorrência dos comportamentos humanos em situações similares. E, ainda que alguns – como o historiador britânico Tony Judt – tenham interpretado alegoricamente a situação criada pelo autor como uma crítica à ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial (o livro foi publicado em 1947), após a pandemia que nos assolou recentemente não há como tergiversar à interpretação absolutamente literal da obra, inclusive com suas implicações existenciais e emocionais, a respeito das quais tratei brevemente, à época, aqui nesta Gazeta do Povo.
Algumas poucas citações podem me ajudar a provar o meu ponto: o narrador, diante da primeira menção à palavra peste, logo no início do livro, afirma: “Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como nossos concidadãos, é necessário compreender assim as duas hesitações. E por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança”. Também nós, no início da pandemia, pensamos que a coisa não duraria mais do que uns poucos dias; e as autoridades, mesmo estando na mesma situação do dr. Rieux, divididas “entre a inquietação e a confiança”, a fim de tranquilizar a população diziam que estava tudo sob controle.
Diante do aumento de casos de peste, a percepção começou a mudar, bem como as ações:
“No
dia seguinte, a Agência Ransdoc anunciava que as medidas da prefeitura haviam
sido acolhidas com serenidade e que já uns trinta doentes se tinham notificado.
Castel telefonara a Rieux:
– Quantos leitos tem o pavilhão?
– Oitenta.
– Certamente, há mais de trinta doentes na cidade.
– Há os que têm medo e os outros, mais numerosos, os que não tiveram tempo.
– Os funerais não são fiscalizados?
– Não. Telefonei a Richard para lhe dizer que eram necessárias medidas
completas, não frases, e que ou era preciso erguer contra a epidemia uma
verdadeira barreira, ou absolutamente nada.
– E então?
– Respondeu-me que não tinha poderes. Em minha opinião, a coisa vai aumentar.
Em três dias, na verdade, os dois pavilhões ficaram cheios. Richard julgava que
iam desativar uma escola e um hospital auxiliar. Rieux aguardava as vacinas e
abria os tumores. Castel voltava aos seus velhos livros e fazia longos estágios
na biblioteca.”
Em seguida, o alarme e o fechamento da cidade. A situação começa a ficar séria entre os próprios cidadãos, pois “uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que para isso não estavam preparados. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dentro de alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se, de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem”. Óbvio que a sensação de isolamento só não foi mais desesperadora entre nós por conta das redes sociais e das chamadas de vídeo; mas é forçoso admitir que, após certo tempo, nem elas foram capazes de minimizar a situação de solidão que levaram muitos à depressão.
Também nós, no início da pandemia, pensamos que a coisa não duraria mais do que uns poucos dias; e as autoridades, divididas “entre a inquietação e a confiança”, a fim de tranquilizar a população diziam que estava tudo sob controle
Até aqui o atento leitor já deve ter notado as estupefacientes semelhanças. Mas há muitas outras, como o comportamento errático dos cidadãos: “Apesar desses espetáculos inéditos, parece que nossos concidadãos tinham dificuldade em compreender o que lhes acontecia. Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava seus hábitos ou atingia seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se, e esses não são sentimentos que se possam contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades. A resposta do prefeito, diante das críticas de que a imprensa se fazia eco – ʻNão se poderiam propor medidas mais flexíveis que as adotadasʼ?” Quem não se lembra das críticas ao isolamento social – sobretudo do ex-presidente e seus apoiadores –, que durou toda a pandemia e levou muitos ao conspiracionismo mais tacanho?
E para não cansá-lo, leitor amigo – pois, inclusive, pode já ter lido o livro ou queira lê-lo e não quero dar muitos spoilers –, não posso deixar de mencionar uma das situações mais terrivelmente idênticas à que passamos: os enterros. Diz o narrador:
“Mas a noite também estava em todos os corações, e as verdades, como as lendas que se contavam sobre os enterros, não eram feitas para tranquilizar nossos concidadãos. Porque é efetivamente necessário falar dos enterros, e o narrador pede desculpas. Sente naturalmente a crítica que lhe poderia ser feita a respeito, mas a única justificativa é que houve enterros durante toda essa época e que, de certo modo, o obrigaram, como obrigaram a todos os nossos concidadãos, a preocupar-se com enterros. Não é que ele goste desse tipo de cerimônias, preferindo, pelo contrário, a sociedade dos vivos, e, para dar um exemplo, os banhos de mar. Mas, afinal, os banhos de mar tinham sido suprimidos, e a sociedade dos vivos receava durante todo o dia ser obrigada a ceder lugar à sociedade dos mortos. Era a evidência [...]. Pois bem, o que caracterizava no início nossas cerimônias era a rapidez! Todas as formalidades haviam sido simplificadas e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Naturalmente, a família era avisada, mas, na maior parte dos casos, não podia deslocar-se por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente. No caso de a família não morar com o defunto, apresentava-se à hora indicada da partida para o cemitério, depois de o corpo ter sido lavado e colocado no caixão [...].
“Suponhamos que essa formalidade se passara no hospital auxiliar de que se ocupava o dr. Rieux. A escola tinha uma saída por trás do edifício principal. Num grande cômodo que dava para o corredor, amontoavam-se os caixões. No próprio corredor a família encontrava um único caixão, já fechado. Passava-se logo ao mais importante, quer dizer, fazia-se o chefe da família assinar papéis. Em seguida, colocava-se o corpo num carro que podia ser um verdadeiro carro funerário ou uma ambulância transformada. Os parentes tomavam um dos táxis ainda autorizados e, a toda a velocidade, os carros dirigiam-se ao cemitério por ruas exteriores. À porta, os guardas faziam parar o cortejo, davam uma carimbada no salvo-conduto oficial, sem o qual era impossível ter o que nossos concidadãos chamam de última morada, desapareciam, e os carros iam colocar-se perto de um quadrado onde numerosas covas esperavam que as enchessem. Um padre acolhia o corpo, pois os serviços fúnebres tinham sido suprimidos na igreja. Tiravam o caixão para as preces, passavam-lhe uma corda, era arrastado, deslizava, batia no fundo, o padre agitava o seu hissope e já a primeira pá de terra caía sobre o esquife. A ambulância partira um pouco antes para se submeter a uma desinfecção e, enquanto as pás de terra ressoavam cada vez mais surdas, a família entrava num táxi. Quinze minutos depois, chegava à casa. Assim, tudo se passava na verdade com o máximo de rapidez e o mínimo de riscos. E, sem dúvida, no princípio pelo menos, é evidente que o sentimento natural das famílias se ofendia. Em tempos de peste porém não é possível levar em conta semelhantes considerações: tinha-se sacrificado tudo à eficácia.”
O trecho é longo, embora eu o tenha reduzido ao essencial; há mais. Mas é o suficiente para sabermos que, de fato, a arte imita a vida e vice-versa. A obra tornou-se mais real após 2020, e as interpretações alegóricas deram lugar ao aspecto jornalístico e científico que Camus foi capaz de criar e que testemunham a sua genialidade. E se ele estivesse vivo, certamente se assustaria com a realidade que, imaginativamente, antevira de nosso inesquecível flagelo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos