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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

“Almost Holy”: Gennadiy Mokhnenko e a única guerra urgente na Ucrânia

(Foto: Reprodução/YouTube)

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“Se não eu, quem? Se não agora, quando?” (Rabino Hilel)

Quando o grande Viktor Frankl deixou o campo de concentração de Auschwitz, em 1945, após perder o pai, a mãe, o irmão e sua amada esposa Tilly, um estranho sentimento se apoderou dele, como relatou ao seu amigo Paul Polak e reproduziu em O que não está escrito nos meus livros: “quando passamos por tanta coisa assim, quando somos tão duramente postos à prova... confesso que é nessa hora que tudo precisa ter um sentido. Tenho a impressão, não consigo dizer de outra maneira, de que algo estaria à minha espera, de que algo estaria sendo esperado de mim, de que eu era destinado a alguma coisa”. Frankl então dedicou sua vida a desenvolver sua abordagem psicoterapêutica, a Logoterapia, e a palestrar pelo mundo levando esperança e sentido da vida a um mundo cada vez mais niilista.

Tal senso de missão, que se traduz na máxima do rabino Hilel que está em epígrafe (e que Frankl assumiu para si), me veio à mente da primeira em vez que assisti, há alguns anos, um maravilhoso documentário – que até recentemente estava no Netflix, mas agora, infelizmente, só com legendas em inglês, no Youtube – sobre o pastor Gennadiy Mokhnenko e o Pilgrim Republic, seu centro de reabilitação para crianças e jovens órfãos, abandonados, viciados em drogas e que sofrem toda sorte de abusos. O documentário, sensível e impactante, foi produzido por ninguém menos que Terrence Malick, e mostra uma realidade chocante que só pode ser enfrentada por pessoas corajosas e vocacionadas, como é o caso do pastor Mokhnenko.

O centro, que fica em Mariupol, no leste da Ucrânia, é não só um refúgio, mas uma oportunidade de recomeço para aqueles que foram abandonados não somente pelos pais, mas pelo Estado, que não dá conta das imensas necessidades de um país pobre e que vive em tensão política constante – agora culminada na invasão russa e numa guerra estúpida, perpetrada pelo neo-czar Vladimir Putin, que os ucranianos tanto temiam. Outro excelente documentário, Winter on Fire (ainda disponível), também trata dessa tensão; é sobre os corajosos protestos de 2013/14, conhecidos como Euromaidan, que derrubaram o presidente Viktor Yanukovytch, que recusou ao seu povo, como havia prometido, uma aproximação com a União Europeia e se uniu a Putin. A situação atual me trouxe à memória os dois docs, mas como todos estão falando e recomendado o Winter on Fire – que, de fato, é mais conhecido –, resolvi tecer algumas palavras sobre Almost Holy e encorajá-lo, amigo leitor, a exercitar o seu inglês e assisti-lo, pois tenho certeza que não se arrependerá.

O documentário, filmado em 2013, mostra a luta de Mokhnenko, sua esposa e os voluntários do Pilgrim Republic para cuidar de todas aquelas crianças e adolescentes em situações tão complicadas. Uma reportagem diz: “O problema das crianças de rua na Ucrânia aumentou durante a ruptura da URSS. O processo de transição deixou a proteção de menores, a assistência social e os sistemas de saúde sem fundos e negligenciados. Estes adolescentes dizem que isto é melhor do que viver com as suas famílias abusivas”. Alguns casos são verdadeiramente desesperadores, mas o pastor, ciente de sua missão, trabalha amorosa e energicamente na recuperação de seus pupilos, dedicando tempo e atenção integrais no cuidado de todos. Seu método gerava controvérsias na cidade, pois muitas vezes ele, com seu furgão, praticamente sequestra aqueles que estão pelas ruas se drogando e, muitas vezes, roubando e se prostituindo, e os leva compulsoriamente para o centro. Ele diz – parafraseando involuntariamente a máxima rabínica: “Às vezes, o meu centro de reabilitação infantil funciona como uma prisão; outras vezes, como um hospital. Por vezes, temos de trabalhar como a polícia […]. Ouço muitas pessoas dizerem: ʻDeverias construir uma igreja, pregar aos domingos; esse não é o teu trabalhoʼ. Mas eu pergunto: ʻQuem irá fazê-lo?ʼ”.  E sobre sua abordagem controversa, afirma: “As pessoas perguntam quem me deu o direito de fazer isto. Eu digo: ʻNão seiʼ. Não preciso de autorização para fazer boas ações”. E segue fazendo o que ninguém foi capaz de fazer até que, em 2000, ele fundasse o Pilgrim Republic.

Muitos chegam completamente transtornados por conta de drogas injetáveis; crianças de 10, 12 anos com os braços todos cheios de picadas e aspectos cadavéricos. Mokhnenko invade casas abandonadas e esgotos, corre atrás de fugitivos e dá broncas enérgicas naqueles que resistem. Às vezes tem de usar a força contra traficantes e abusadores de menores. Alguns jovens do centro, já recuperados, ajudam na “caçada” durante as frias noites de Mariupol. Eles recolhem drogas, destroem seringas e agulhas, alimentam e resgatam os tristes viciados. É tudo muito aterrador. Fora isso, o pastor Mokhnenko ainda prega em presídios e leva consolo àqueles que sofrem as consequências de seus erros. Num sermão que proferiu na visita a uma penitenciária feminina, disse: “Infelizmente, nossos pais não souberam ser homens. Espero que tenham tido sorte com os vossos pais, mas, provavelmente, muitas de vocês não tiveram”. E corta para a um relato pessoal, em off. Ele diz, enquanto fotos de seus pais aparecem na tela:

“O meu pai, a minha mãe... sempre que eu regressava à sua casa, pensava que talvez tivessem morrido; talvez meu pai tivesse assassinado a minha mãe. Muitas vezes encontrava minha mãe no chão, e o meu pai também estava lá, caído. Só que, eu sentia as suas pulsações; E quando via as pulsações, percebia que estavam vivos e que estavam apenas bêbedos. Eu ficava tão feliz. Eles se embriagavam todos os dias. A minha mãe produzia vodca dentro da banheira Aquilo era o inferno para mim. Porque eu os amo, eu precisava deles. Mas esta tragédia destruiu tudo”.

Ou seja, o próprio pastor vem de um contexto familiar bastante adverso e violento, tendo os próprios pais alcoólatras. Mas diferente do que ocorre com muitos jovens que têm de lidar com tais problemas, conseguiu, tal qual Viktor Frankl, transformar seu sofrimento numa força motriz de autotranscendência, voltada à solidariedade e ao amor pelos mais necessitados.

Algumas cenas são devastadoras, como a chegada de um jovem totalmente drogado e doente, carregado por outros, chorando e pedindo ajuda. Mas o pastor Mokhnenko é enérgico; deita o jovem no chão, enrolado em cobertores, chama os outros internos, mostra a situação e diz: “Isto é uma infecção no sangue [mostra vários pontos de inchaço pelo corpo]. Já matou milhões de pessoas. Por que hei de te comprar medicamentos? Convence-me. Para que hei de gastar dinheiro contigo em vez de comprar sapatos ou sorvete para os meninos bons? Ou devo gastar uma fortuna na tua improvável recuperação, para que andes para aí escondido a injetar-te drogas nas veias?” E pergunta: “Aqueles que já foram injetados por ele que levantem a mão”. Vários garotos levantam as mãos, mostrando que esse jovem não é só um usuário, mas injeta e vicia outros. E o pastor continua: “Não estou certo de que a recuperação seja o melhor para ele. Se fosse Deus, não o deixaria viver! Pensem o que quiserem de mim”. Mas o amor fala mais alto: “Chamem já uma ambulância. Usem todo o dinheiro que tivermos e façamos tudo o que pudermos fazer”. Às vezes, o esforço é em vão, pois alguns jovens, já muito debilitados, não suportam sequer iniciar uma recuperação. É triste.

Mas diferente do que ocorre com muitos jovens que têm de lidar com tais problemas, conseguiu, tal qual Viktor Frankl, transformar seu sofrimento numa força motriz de autotranscendência, voltada à solidariedade e ao amor pelos mais necessitados.

No Pilgrim, além de alimentação e dormitório, eles têm acompanhamento médico e psicológico, praticam uma série de esportes, têm aulas de música e computação, e são preparados para voltarem para suas famílias, quando há possibilidades. Quando não, são enviados a famílias adotivas ou para orfanatos parceiros do centro. O pastor testemunha: “Quando tiramos crianças da rua, elas ficam na Pilgrim Republic, mas, mais tarde, encontramos uma família para elas. Isso não é um orfanato, é a minha família. Neste momento, temos onze crianças para além de mim e de minha mulher”. Sua esposa, parceira nesse empreendimento em que depositaram praticamente tudo, diz: “É sempre assim... Consideremos o Kolya, por exemplo. A mãe dele morreu. O Gennadiy diz: ʻLena, o Kolya precisa de uma famíliaʼ. Eu respondo: ʻClaro, querido, o Kolya precisa de uma famíliaʼ. Ainda que me vá trazer uma série de problemas [e ri]. Tudo começou quando costumava levar os meus filhos à creche. Pensei: ʻPor que estão estas crianças na rua, enquanto as minhas estão comigo?ʼ”. Então ela para de falar e chora. É amor mesmo, caro leitor.

Há uma sequência muito impactante, em que eles resgatam uma moça viciada em drogas, muda, aparentemente com alguma doença mental e ainda tem um bebê. Eles fazem de tudo para ajudá-la e, por fim, decidem interná-la e levar a filha para um orfanato, pois, em tais condições, não tem capacidade de cuidar de uma criança. Outra sequência, em que chega à Pilgrim uma bela e triste jovem, que trava um diálogo difícil com o pastor Mokhnenko:

Pastor: “Que idade tens?”

Jovem: “Faço quinze anos na segunda-feira”.

P: “Vamos festejar. Os teus pais bebem?”

J: “Bebem”.

P: (Preciso de tirar notas). “Então, foram os teus pais que te trouxeram?”

J: “Não, foi a polícia”.

P: “A polícia?”

J: “Contatamos a polícia e fomos até lá para conversar. A minha mãe entrou na delegacia e disse: ʻTomara que vocês dois morram!ʼ”

P: “Ela disse isso? A tua mãe estava sóbria? Que idade tem o teu irmão?”

J: “Oito”.

P: “Onde é que vocês têm vivido?”

J: “Bem, quando vim embora, fiquei em casa de uns amigos”.

P: “Não sejas tímida, nada me choca”.

J: “Quando me expulsaram, dormi em casa de amigos ou na rua”.

P: “Eles dizem que te tens prostituído. Desculpa ser tão brusco”.

J: “Sim, é o que dizem”.

P: “Não é verdade?”

J: “Não. A minha mãe era viciada e costumava prostituir-se”.

P: “A tua mãe prostituía-se?”

J: “Sim”.

P: “O que devemos fazer?”

J: “Ficar na Pilgrim”.

P: “Escuta, aqui estás em casa. Em casa”.

Às vezes o pastor quase sucumbe, esgotado, e o filme registra tais momentos com notória sensibilidade. Mas, ao fim e ao cabo, é o amor que conduz o trabalho de Gennadyi Mokhnenko. Ele se diz muito influenciado pelos clássicos da literatura russa e lê um pequeno trecho de Os irmãos Karamázov. E o filme se encaminha para o final em meio à guerra no leste da Ucrânia, em 2014, com as milícias pró-Rússia de Donetsk tentando tomar o controle de Mariupol, que é um importante centro industrial da Ucrânia. O pastor, preocupado, afirma: “Eu sorrio para as pessoas. Tento dar-lhes motivação. ʻVai correr tudo bem, vai ficar tudo bemʼ. Mas não tenho certeza disso”. E o filme termina nessa tensão e nessa incerteza.

Encontrei um pequeno documentário no Youtube, feito em 2021, sobre o Pilgrim Republic. Foi bom ver que o trabalho lá continua de vento em popa, com o pastor Mokhnenko à frente. Ele dá uma pequena entrevista e diz algo que, em outras palavras, já havia dito em Almost Holy. E suas palavras são proféticas: “Quando você trabalha com crianças sem teto, crianças diferentes, com vícios diversos – drogas, álcool, problemas sexuais, os que cheiram cola –, nunca é um trabalho fácil. Já era um trabalho difícil antes da guerra; mas a guerra entrou no meu lar, e não nos passava pela cabeça que a guerra seria uma realidade, mas foi. Há mais ou menos sete anos, o exército russo tomou parte do território e, a apenas quinze minutos daqui – só quinze minutos daqui! –, destruiu tudo”. O repórter pergunta por que ele sofre ameaças de morte. O pastor responde:

“Porque digo em alto e bom som tudo o que penso, desde o primeiro dia dessa guerra. Eu disse ʻRússia, vá para casaʼ. Eu amo a Rússia, amo o povo russo, sou um tanto russo e falo russo; mas odeio essa coisa imperialista. Odeio esse espírito da KGB. Sou um fanático pela liberdade; amo a liberdade. Odeio o sistema soviético e tudo que se relaciona à KGB e à União Soviética... Sonho com uma nação livre para minhas crianças. Gosto quando as pessoas se sentem livres, dizem o que pensam e ninguém as prende; gosto de alternância de poder; gosto quando as mídias de massa dizem o que querem sobre os políticos... Eu gosto da liberdade. E agora estamos vivendo um grande tempo de liberdade, o melhor tempo da nossa história. E, para mim, essa é uma luta pela liberdade. Eles tentaram nos parar, mas tivemos de dizer: ʻTchau. Já chega. Chega de sangue, chega de viver num país como uma prisãoʼ . Nós somos um povo. Gosto daquela coisa da Constituição americana, ʻnós, o povoʼ; é isso, somos um povo, Deus nos criou para sermos uma nação livre, não sob o controle da KGB, com caras malucos dizendo o que tenho de pensar, como devo fazer minhas orações ou o que devo fazer. Essa é uma batalha pela liberdade”.

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