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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Amizade

Para o mundo não acabar

O músico Ed Motta e um grupo de amigos reunidos por ele no Rio de Janeiro. (Foto: Arquivo pessoal)

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“Quando caminho sozinho, ignoro se subo ou se desço. Mas sei-o, de modo quase infalível, quando dou a mão a alguém. Há seres em cuja companhia se sobe infalivelmente.” (Gustave Thibon)

A sensação de que o mundo está em declínio não me parece uma ilusão. Ainda que o leitor objete, dizendo que a realidade sempre foi essa, de altos e baixos civilizacionais, o caráter aparentemente cíclico desse quadro me faz pensar que nossa geração está a olhar para o abismo. De tempos em tempos um surto de insatisfações e conflitos toma conta das sociedades, levando o mundo a um colapso. René Girard chamará a isso de “crise mimética”, quando os desejos imitativos – em que todos desejam as mesmas coisas não por serem desejáveis, mas porque o outro, como um modelo, também a deseja – se generalizam a um estágio de conflito inconciliável. Escapar à insanidade reinante exige uma boa dose daquela fé dos antigos ou da imperturbabilidade dos estoicos. E de arte. E de amigos.

A amizade já foi tema dessa coluna algumas vezes (aqui e aqui, por exemplo), pois, como nos disse Aristóteles, é “sumamente necessária na vida”. E ele complementa, dizendo: “aos que estão no vigor da idade ela estimula à prática de nobres ações, pois na companhia de amigos [...] os homens são mais capazes tanto de agir como de pensar”. Sem querer me aprofundar nas brilhantes teorizações do filósofo grego a respeito da virtude da amizade, gostaria de, nessas breves linhas, evidenciar, a partir de uma experiência recente, algumas virtudes associadas a ela. Mas, antes, uma pequena observação.

C.S. Lewis (de novo ele!), numa de suas maiores obras-primas, Os quatro amores, nos diz:

“A Amizade brota do mero companheirismo quando dois ou mais dos companheiros descobrem ter em comum alguma perspectiva ou interesse, ou até gosto, que os outros não compartilham e que, até o momento, cada um acreditava ser seu próprio tesouro (ou fardo) singular. A expressão típica de começo de Amizade seria algo como: ʻO quê? Você também? Eu pensava que era o único!ʼ”

A convite de Ed Motta, um seletíssimo grupo, de lugares diferentes do país, teve o prazer e a honra não só de almoçar com ele e Edna (sua talentosa e adorável esposa), mas de visitar sua casa e compartilhar de momentos únicos de generosidade

É nesse sentido que o Empoeirado, programa apresentado por Ed Motta – sim, aquele sobre o qual escrevi na semana passada –, que, nos últimos anos, ocorria numa plataforma de videoconferência, se tornou um ambiente não só de desfrute dessa singular afinidade eletiva, a música, mas de amizade. A cada quinta-feira à noite em que Ed abria uma sala no Zoom e começava a apresentar-nos as raridades musicais que fazem a sua cabeça, ao mesmo tempo em que tínhamos aquele deleite dos privilegiados, nossa admiração por ele e por sua obsessão aumentava. “De onde ele tirou isso?! Que capa é essa?! Olha esse solo! Que intro foi essa?!” E a expressão de êxtase e de espanto (a thaumazein aristotélica, admiração que impulsiona ao conhecimento) podia ser vista através das “janelinhas” da reunião.

Tomo a liberdade de falar por todos porque sei que esse é um sentimento comum, nas afinidades entre amigos, desde o momento em que se conhecem. Com diz Lewis: “É quando duas pessoas assim descobrem uma à outra – quando, seja com imensas dificuldades e hesitações semiarticuladas ou com o que nos parece uma surpreendente e elíptica rapidez, elas comunicam uma à outra sua visão – que nasce a Amizade. E imediatamente elas se unem em imensa solidão”. Estar ali, naquela sala virtual, era como “aquelas reuniões especiais – quando quatro ou cinco de nós nos reunimos na estalagem, depois de um dia cansativo; quando calçamos nossas pantufas e estendemos os pés na direção do fogo, cada um com sua bebida no braço da poltrona; quando o mundo inteiro, e algo além do mundo, se abre para nossas mentes enquanto conversamos”, nas palavras certeiras do literato britânico.

Essa cumplicidade – que André Comte-Sponville chamará de Fidelidade, “a própria memória como virtude ”, em seu Pequeno tratado das grandes virtudes –, mantida após a pausa do programa para a gravação da obra-prima que apresentei no artigo anterior, foi confirmada no último fim de semana, quando, a convite do próprio Ed Motta, um seletíssimo grupo (do qual, por graça, estava este que vos escreve e sua esposa), de lugares diferentes do país, teve o prazer e a honra não só de almoçar com ele e Edna (sua talentosa e adorável esposa), mas de visitar sua casa e compartilhar de momentos únicos de generosidade.

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Comte-Sponville diz que “a generosidade é, ao mesmo tempo, consciência de sua própria liberdade (ou de si mesmo como livre e responsável) e firme resolução de bem usá-la. Consciência e confiança, pois: consciência de ser livre, confiança no uso que se fará disso”. Creio que nenhum de nós poderá negar essa virtude em Ed e Edna. Almoçamos no tradicional Grado, restaurante cujo dono, por amizade ao Ed, abriu somente para nos receber numa segunda-feira, com um menu delicioso que ficará em nossa memória para sempre. Momento único e divertidíssimo. E a quem disser que as doses cavalares de humor que regaram nosso banquete não foram uma expressão de virtude, Comte-Sponville nos ajudará a mudar essa visão – que, inclusive, serve para o comportamento bonachão comum de Ed nas redes:

“Se ʻa seriedade designa a situação intermediária de um homem equidistante entre desespero e futilidadeʼ, como diz lindamente Jankélévitch, devemos observar que o humor, ao contrário, opta resolutamente pelos dois extremos. ʻPolidez do desesperoʼ, dizia Vian, e a futilidade pode fazer parte dela. É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é ser demasiado severo ou demasiado agressivo, é quase sempre carecer, com isso, de generosidade, de doçura, de misericórdia...” (E aqui entendam a “humildade” não como a postura meramente estética condenada por Ed em suas lives, mas como a virtude que “reconhece tudo o que não somos”).

Na variedade de nossas profissões e atividades – jornalista, professor, headhunter, músico, nutricionista, médico... –, na diversidade de nossas opiniões, todos fomos unidos por Ed e pela música. O que cada um pensa sobre qualquer outro assunto é menos importante do que aquilo que nos uniu. A tolerância, virtude que “só vale contra si mesmo e a favor de outrem” é regra de ouro e silenciosamente se impõe, mesmo porque isso é o mínimo que se espera dos amantes da música. A música é nossa única devoção e o único valor do qual não abrimos mão. De novo falo por todos, porque também tenho certeza de que os intolerantes nem sequer suportam a liberdade absoluta de Ed Motta. As afinidades são, de fato, eletivas.

Na variedade de nossas profissões e atividades, na diversidade de nossas opiniões, todos fomos unidos por Ed e pela música. O que cada um pensa sobre qualquer outro assunto é menos importante do que aquilo que nos uniu

Em sua casa – um templo da arte como a arte merece –, Ed e Edna nos envolveram em sua doçura, virtude feminina, segundo Comte-Sponville, que me ajudará a voltar ao início desse artigo:

“O que ela tem de feminino, ou que assim parece, é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera. É o que ouvimos tão bem em Schubert, o que temos tão bem em Etty Hillesum. A doçura é antes de tudo uma paz, real ou desejada: é o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade, da agressividade, da violência... Paz interior, e a única que é uma virtude. Muitas vezes permeada de angústia e de sofrimento (Schubert), às vezes iluminada de alegria e de gratidão (Etty Hillesum), mas sempre desprovida de ódio, de dureza, de insensibilidade... ʻAguerrir-se e endurecer-se são duas coisas diferentesʼ, notava Etty Hillesum em 1942. A doçura é o que as distingue. É amor em estado de paz, mesmo na guerra, tanto mais forte quanto é aguerrido, e tanto mais doce. A agressividade é uma fraqueza, a cólera é uma fraqueza, a própria violência, quando já não é dominada, é uma fraqueza. E o que pode dominar a violência, a cólera, a agressividade, se não a doçura? A doçura é uma força, por isso é uma virtude: é força em estado de paz, força tranquila e doce, cheia de paciência e de mansuetude.”

Por algumas horas as guerras, os conflitos, o ódio generalizado, o declínio civilizacional foram totalmente suplantados pela doçura, pela pureza, pela amizade, pela arte. Tanto aprendizado, tanto deleite, tanta sinceridade de alguém que dificilmente abre sua intimidade de modo tão pleno. Numa palavra: fomos abençoados. E tivemos a certeza de que essa é a única maneira de evitar que o mundo se acabe: no exercício das virtudes, na contemplação da arte, na fruição da amizade e no compartilhar desse que é “o alfa e o ômega de toda virtude”, o Amor.

Quero agradecer a todos os Empoeirados que estiveram nesse encontro memorável (Nina, Stephen, Da Maia, Mariana, Bruno, Kamila, Cath, Otávio, Cristal, Flávio, Juliana, Marins, Naira, Aristóteles e Paulo); sua amizade já é das coisas mais preciosas que Deus me deu. Ao Ed e à Edna por tanto carinho. E não poderia deixar de mencionar minha queridíssima Iane Kestelman, que nos acolheu em sua casa e nos cobriu com sua hospitalidade amorosa. Como disse o Vigário DʼAmbricourt, de Bernanos: “Tudo é Graça”. Até a próxima!

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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