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“[...] Quando a estabilidade religiosa se desintegra da concepção do mundo e a metafísica sagrada da consciência comum é corroída pelo ponto de vista particular, do juízo individual, e, mais do que isso, de um ponto de vista particular de um determinado momento histórico, é que surge uma perspectiva característica para essa consciência individual isolada.” (Pável Floriênski, A perspectiva inversa)
Pode a beleza sobreviver em meio à destruição? Pode a arte ainda exalar seu perfume em meio ao odor da morte e do caos? Pode a espiritualidade vencer o materialismo? Pode a verdade vencer as ideologias? O pintor russo Wassily Kandinsky usa a imagem de um triângulo, “dividido em partes desiguais, a menor e a mais aguda no ápice”, para falar da vida espiritual. Diz ele que “apesar da cegueira, apesar desse caos e dessa busca desenfreada, o triângulo espiritual continua, na realidade, avançando. Sobe, lentamente, com uma força irresistível. Invisível, um novo Moisés desce da montanha. Vê a dança em torno do bezerro de ouro. Mas ainda assim dá aos homens a fórmula de sabedoria que lhes trouxe.” Assim é o artista.
O cineasta russo Andrei Tarkovski, meu favorito, volta a essa coluna. Após ter escrito sobre sua obra-prima de ficção científica filosófica, Stalker, refletindo sobre a virtude cardeal da Fortaleza, e dedicado um artigo à sua vida e obra, decidi, em meio às turbulências de nossos tempos, abordar um de seus filmes de que mais gosto e que é considerado por muitos a sua maior realização – Ingmar Bergman disse que era o melhor filme que vira na vida –, Andrei Rublev. Revi esse maravilhoso monumento artístico e espiritual bem no final de semana em que o Brasil convulsionava, e fui levado a refletir sobre o valor da arte quando uma sociedade inteira está desabando, cega aos influxos superiores e completamente reduzida ao seu aspecto meramente material.
Filmado em 1965, Andrei Rublev é o segundo filme de Tarkovski, e tem como tema principal a figura enigmática do monge homônimo do século 15, considerado o maior pintor de ícones da Igreja Ortodoxa russa. Sua vida é retratada não como uma cinebiografia convencional, narrando cronologicamente a vida do monge-artista – mesmo porque pouco se sabe dela –, mas de modo absolutamente original e poético, evidenciando, desde cedo, a genialidade de um cineasta que, apesar da curta filmografia – Tarkovski morreu prematuramente, de câncer no pulmão, em 1986 –, atingiu uma profundidade alcançada por pouquíssimos na arte do cinematógrafo. Isso porque Tarkovski tinha plena consciência de sua arte e de sua vocação, dizendo, por exemplo, que a “criação artística exige do artista que ele ʻpereça por inteiroʼ, no sentido pleno e trágico destas palavras”. E esse caráter sacrificial da arte é o eixo central da obra de Andrei Tarkovski.
Andrei Rublev é um filme singular, em que o antigo e o moderno dialogam de maneira absolutamente natural
O desejo de filmar a vida do monge-artista surgiu em 1961, quando ainda trabalhava em seu primeiro filme comercial, A infância de Ivan. Assinou contrato com o estúdio estatal Mosfilm – considerado o mais antigo estúdio de cinema da Europa e responsável pela imensa maioria dos grandes filmes da União Soviética – em 1962, e o primeiro tratamento foi aprovado em dezembro de 1963. Tarkovski convidou seu amigo da faculdade, Andrei Konchalovsky, para escrever com ele o roteiro, e eles trabalharam dois anos no texto, estudando escritos medievais e toda a tradição da espiritualidade ortodoxa. O seu desafio era construir um filme que comunicasse os elementos daquela tradição do século 15, mas que fosse, também, moderno. Diz ele, em Esculpir o tempo:
“O filme se passa no século 15, e não demoramos a perceber como era extremamente difícil reproduzir ʻcomo era tudoʼ. Tínhamos de usar as fontes de que dispúnhamos: a arquitetura, a iconografia, a palavra escrita. Se houvéssemos partido para a reconstrução da tradição pictórica do mundo pictórico daqueles tempos, o resultado teria sido um antigo mundo russo estilizado e convencional, do tipo que, na melhor das hipóteses, faz lembrar as iluminuras e ícones do período. Em se tratando de cinema, porém, não é assim que se deve proceder. Nunca entendi, por exemplo, as tentativas de se criar mise en scène a partir de uma pintura. Ao fazê-lo, o máximo que conseguiremos será trazer a pintura novamente à vida e receber os devidos e convencionais aplausos do tipo: ʻAh, que perfeita compreensão do período!ʼ, ʻAh, que gente culta!ʼ... Mas, ao mesmo tempo, estaremos também matando o cinema. Assim, um dos objetivos do nosso trabalho era reconstruir para um público moderno o mundo real do século 15, ou seja, apresentar aquele mundo de tal forma que os trajes, o modo de falar, o estilo de vida e a arquitetura não passassem ao público uma sensação de relíquia, de raridade de antiquário.”
E isso é realmente o que temos em tela: um filme singular, em que o antigo e o moderno dialogam de maneira absolutamente natural, devido à maestria de seu diretor, da fotografia magistral de Vadim Yusov, dos figurinos, dos cenários, bem como dos temas abordados. Um filme em que o preto e branco, por exemplo, é usado para, como disse Tarkovski numa entrevista, transmitir realidade. O professor Robert Bird, especialista em literatura e cinema russos da Universidade de Chicago, em seu ensaio sobre o filme, afirma que “essa curiosa inversão da visão usual das coisas mostra que Tarkovski entendia ʻrealidadeʼ, em sua imagem, como a realidade retratada de acordo com a convenção cinematográfica. Por extensão, embora sejam os únicos traços históricos reais de Rublev e sejam mostrados em seu estado atual, os ícones são colocados além dos limites da realidade fílmica normal e, portanto, qualificam-se como ʻficçãoʼ” (os ícones de Andrei Rublev aparecem coloridos no epílogo do filme).
O filme é dividido em um prólogo, um epílogo e oito capítulos, e neles Rublev, na maior parte do tempo, é apenas um observador, ora curioso, ora impassível, dos eventos que ocorrem à sua volta. Tarkovski não quis que acompanhássemos o trabalho do artista ou mesmo seus anos de formação, mas que penetrássemos sua alma e, sobretudo, como ela reage a um mundo tão diferente daquele que conhecera entre as quatro paredes do mosteiro. O filme se passa no período final da dominação mongol na Rússia, e a violência é um elemento inescusável, que Tarkovski usou com muita propriedade – não sem grande polêmica, como veremos. Para que o leitor que não viu o filme tenha uma ideia do que se desenrola ao longo de suas pouco mais de três horas (a versão original tem 3h25), falarei brevemente do prólogo e dos dois primeiros capítulos, que são suficientes para que tenhamos ideia da atmosfera espiritual que envolve o filme.
O prólogo nos apresenta uma sequência que, a mim, até o momento em que decidi penetrar naquilo que se escreveu sobre o filme, parecia por demais enigmática, ainda que significativamente bela. Um homem sobe no topo da Igreja da Intercessão da Virgem no Nerl para saltar de lá com um balão feito de trapos e cheio de gás e fumaça. Tal cena pertence à cultura popular russa, na lenda de um homem chamado Kriakutny, que teria inventado um balão e sobrevoado os céus da cidade de Riazan em 1731. Tal lenda é tão difundida que, em 1956, quando esse suposto voo completou 225 anos, o governo soviético criou um selo comemorativo. Esse voo também foi dramatizado num filme mudo de 1926, Wings of a Serf, de Iuri Tarich – mas numa versão de asas, e não balão –, e numa tela do pintor Ilya Glazunov, Russian Icarus, de 1964.
No primeiro capítulo, O bufão, encontramos Rublev e dois de seus irmãos monges, Daniil Chorny e Kirill, deixando o Mosteiro da Trindade-São Sérgio, para procurar trabalho como pintores. Uma chuva os pega repentinamente e eles entram numa cabana em que várias pessoas assistem a uma apresentação musical satírica de um homem com um pandeiro. A sequência termina com esse homem sendo espancado e levado por guardas que chegam a cavalo.
Tarkovski não quis que acompanhássemos o trabalho do artista ou mesmo seus anos de formação, mas que penetrássemos sua alma e, sobretudo, como ela reage a um mundo tão diferente daquele que conhecera entre as quatro paredes do mosteiro
O segundo capítulo, Teófanes, o grego, nos apresenta o mestre de Rublev, que o levou para pintar a Catedral da Anunciação, em Moscou. Kirill o encontra, diz de onde veio e recebe a pergunta por Rublev; Teófanes diz que tem ouvido falar dele e reclama dos discípulos atuais em tom de desilusão: “Discípulos não faltam por aí, mas nenhum é capaz! São uns analfabetos ignorantes!” Kirill demonstra sua inveja dizendo que Rublev é convencido e, ao receber o convite de Teófanes para ajudá-lo na pintura da catedral, pede que este vá buscá-lo no mosteiro e o chame na frente de todos. O mensageiro vai, mas leva Rublev – o que revolta Kirill.
Os capítulos subsequentes – A paixão segundo Andrei, A festa, O juízo final, A invasão, Silêncio e O sino – nos mergulham num universo de desilusão, violência e, finalmente, de redenção, que nos enchem a alma de verdadeiros lampejos de graça divina. Rublev discute com Teófanes os descaminhos da vocação artística no capítulo 3; presencia um culto pagão, no capítulo 4, em que pessoas nuas entram num rio e, ao notarem sua presença, o amarram em umas vigas, em cruz, para seu desespero, a fim de quem ele não chamasse a polícia; no capítulo 5, Rublev e Daniil discutem um trabalho que são convocados a fazer na casa do grão-príncipe, e Daniil diz que tem dificuldade de pintar o Juízo Final, pois não quer assustar as pessoas, e os ajudantes que desistem do trabalho para pintar a casa do irmão do príncipe são interceptados pelos guardas e têm suas vistas furadas; para a invasão violentíssima, no capítulo 6, em que o irmão do príncipe conspira contra ele e entrega a cidade nas mãos dos mongóis, Tarkovski investiu pesado no realismo e no terror, por exemplo, ateando fogo numa vaca (coberta por uma manta de amianto) e derrubando um cavalo de uma escada (um cavalo condenado que conseguiram num matadouro; o próprio Tarkovski atirou em seu pescoço) – o filme quase foi censurado por isso. Durante a invasão, Rublev mata um homem para proteger uma “tola sagrada”, Durochka, que surge no capítulo anterior, e faz voto de silêncio em penitência. No capítulo 7, em meio à desolação e à fome da guerra, Rublev, Daniil e outros monges tentam sobreviver, enquanto Durochka se entrega aos tártaros e vai embora com eles.
O capítulo 8 é um verdadeiro banquete de espiritualidade e arte, é quando vemos explodir, no badalar de um grande sino, toda a beleza exilada dos capítulos anteriores; é como se aquilo que víamos apenas como “um reflexo obscuro, como em espelho” (1 Coríntios 13,12), se mostrasse a nós face a face. O grão-príncipe procura um homem para construir-lhe um sino. Seu guardas encontram Boriska, filho de um famoso sineiro da região, que lhes diz que sua família toda morrera na peste e que só ele poderia construir o sino, pois seu pai passara-lhe os segredos dessa arte sagrada. Rublev, nesse capítulo, é apenas um espectador distante. A determinação de Boriska para encontrar a melhor a argila para o molde; sua insistência na quantidade e qualidade exatas dos metais; sua luta para, jovem ainda, ser obedecido pelos mais velhos, que não aceitam a sua liderança; e, por fim, a apoteótica conclusão do trabalho, são a prova incontestável daquilo que Tarkovski diz em Esculpir o tempo: “O artista é sempre um servidor, e está eternamente tentando pagar pelo dom que, como que por milagre, lhe foi concedido”.
A própria história do filme tem um caráter quase milagroso, pois Tarkovski passou por muitos percalços para produzi-lo – não nos esqueçamos, ele vivia sob o comunismo marxista-leninista. Diz ele em seus Diários, em 23 de fevereiro de 1972: “Será que é preciso ficar sentado ao longo dos anos e esperar que alguém se digne a liberar o filme? O que é que há com este país surpreendente que não quer nem o triunfo da sua arte na arena internacional nem novos filmes e livros de qualidade? A verdadeira arte os assusta. Isso, naturalmente, é normal. A arte, sem dúvida, é contraindicada a eles porque é humana, e a vocação deles é esmagar tudo o que é vivo, todos os germes da humanidade , seja o desejo do homem pela liberdade, seja o surgimento, no nosso abatido horizonte, de uma nova obra de arte. Eles não vão ficar satisfeitos até destruírem todos os sinais da independência e transformarem o ser humano em um animal.” O professor Bird é categórico:
“Para seus primeiros espectadores, em contraste, Andrei Rublev foi um fruto proibido ansiosamente esperado e uma intervenção corajosa no discurso ideológico contemporâneo. Sua aura miraculosa provinha menos do próprio filme do que da própria improbabilidade de sua existência na URSS ateísta, e foi a teimosa controvérsia sobre seu lançamento que mais contribuiu para a imagem de Tarkovski como um artista sofredor. Em 1970, após cinco longos anos de luta com as autoridades sobre Andrei Rublev, Tarkovski iniciou um diário que intitulou O Martirológio. Mesmo quando a União Soviética do degelo pós-Stalin gradualmente congelou novamente sob Leonid Brezhnev, Tarkovski relembra duas vezes a recuperação milagrosa da única cópia do roteiro de Andrei Rublev que ele havia deixado em um táxi: ʻHoras depois o taxista me viu andando na rua, no meio da multidão, no mesmo lugar, freou e me entregou a pastaʼ. Uma história inacreditável.”
Tarkovski se inspirou na criação máxima de Rublev, A Trindade, cuja “fraternidade, amor e serena santidade” o inspiraram a criar não um filme biográfico, mas um filme sobre a espiritualidade da vocação artística. Diz ele: “Depois de escrever o roteiro, fui tomado por muitas dúvidas sobre a possibilidade de realizar o filme. De qualquer modo, tinha certeza de que não pretendia criar uma obra de caráter histórico ou biográfico. Estava interessado em algo mais: queria investigar a natureza do gênio poético do grande pintor russo. A partir do exemplo de Rublev eu pretendia explorar a questão da psicologia da criação artística, e analisar a mentalidade e a consciência cívica de um artista que criou tesouros espirituais de importância eterna”. Mesmo a disposição em capítulos, que não seguem uma cronologia convencional – em alguns Rublev mal aparece –, foi necessária para Tarkovski, no sentido de capturar a “lógica poética da necessidade que levou Rublev a pintar sua célebre ʻtrindadeʼ”.
Tarkovski se inspirou na criação máxima de Rublev, A Trindade, cuja “fraternidade, amor e serena santidade” o inspiraram a criar não um filme biográfico, mas um filme sobre a espiritualidade da vocação artística
Tarkovski se apoiou, ainda, no conceito de perspectiva inversa, do monge e polímata Pável Floriênski, que afirma que “na antiga pintura russa, a rejeição da perspectiva renascentista expressa a necessidade de lançar luz sobre certos problemas espirituais que os pintores russos se colocavam, ao contrário dos artistas do Quattrocento italiano”. Se prestarmos atenção a obras como a Trindade, de Rublev, vemos que a perspectiva se abre de modo invertido, para o alto – e isso é genial.
Por fim, vale o destaque à atuação perfeita de um estreante Anatoly Solonitsyn, como Andrei Rublev, que se tornaria o ator preferido de Tarkovski, trabalhando com ele em Solaris, O Espelho e Stalker, antes de sua morte prematura, em 1982, aos 47 anos, do mesmo tipo de câncer que mataria Tarkovski em 1986. O elenco ainda conta com a primeira esposa de Tarkovski, Irma Raush, como a “tola sagrada” Durochka, Nikolai Grinko como Daniil, e Nikolai Burlyaev como Boriska.
Andrei Rublev está disponível no canal da Mosfilm, em alta resolução, nas versões convencional (de que Tarkovski, por fim, disse que gostava mais) e estendida.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos