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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ao mestre Poitier, com carinho

Sidney Poitier em cena de "Ao mestre com carinho".
Sidney Poitier em cena de "Ao mestre com carinho". (Foto: Divulgação)

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“Quando você entra em sala de aula, está disposta a oferecer o quê para os seus alunos?”
“O melhor. Todos os tesouros, tudo que estudei por amor e por obrigação, tudo o que me ensinaram e o que aprendi sozinha. As coisas mais bonitas que a humanidade nos deixou, pois o professor é o portador da chave do tesouro e precisa entregar aos herdeiros, que são os humanos mais jovens.”
(Paula Rosiska, Vida ao rés do chão escolar)

“Encante-os, meu filho, em neutro.” (Mrs. Evelyn Poitier)

Meu contato com a obra de Sidney Poitier ocorreu da mesma maneira como, muito provavelmente, aconteceu com a imensa maioria dos brasileiros de minha geração: numa das infinitas vezes em que o filme Ao mestre com carinho foi exibido na Sessão da Tarde da Rede Globo. Nem sequer recordo-me da ocasião, pois faz muito tempo e eu era criança. A imortal canção de Lulu, da trilha sonora, por motivos óbvios – é de arrancar lágrimas de um robô – perdurou por muito mais tempo em minha memória. O filme, infelizmente, havia se perdido. Nem mesmo meu ingresso na docência, em 2014, levou a um interesse pelo filme. Ademais, mesmo com uma carreira imensa – mais de 50 filmes como ator e nove como diretor –, poucos de seus filmes estão disponíveis com facilidade no Brasil.

Foi só no último domingo, com a morte de Poitier, aos 94 anos, que vi/revi, de uma só vez, três de seus mais célebres filmes: Ao mestre com carinho, No calor da noite e Adivinhe quem vem para o jantar, os três, miraculosamente, de 1967 – e disponíveis em streaming. E senti-me envergonhado por não tê-lo em meu rol de heróis até então, como já tinha, por exemplo, o genial Oscar Micheaux – já retratado por mim aqui, nesta Gazeta do Povo. Meu mergulho em sua vida e obra está só começando, mas não quero perder a oportunidade de homenageá-lo nessa coluna, que tem por tradição apresentar minha visão sobre algumas das grandes figuras negras da história.

Mesmo plenamente consciente dos problemas enfrentados pela população negra americana – ele foi uma das personalidades mais engajadas na luta pelos Direitos Civis – e ter sofrido muito com o racismo, Poitier adotou uma postura moderada, ainda que firme

Sidney Poitier nasceu em Miami, em 20 de fevereiro de 1927, filho de Evelyn e Reginald James Poitier, pequenos produtores de tomates das Bahamas, que estavam a passeio nos EUA. Nasceu três meses prematuro e com poucas perspectivas de vida, o que fez com que seus pais passassem três meses em Miami até que sua condição de saúde melhorasse. Apesar da inesperada cidadania americana, cresceu na paradisíaca Ilha Cat, nas Bahamas, que era colônia britânica. Sobre sua infância na ilha, ele diz, numa de suas autobiografias, The Measure of a Man: A Spiritual Autobiography:

“Nos primeiros dez anos da minha vida, os anos antes de o cultivo de tomate fracassar e nos mudarmos para Nassau, eu tinha a responsabilidade, em grande parte, de cuidar de mim mesmo. Coisas como ser picado por vespas inesperadamente, mesmo quando eu achava que era inteligente o suficiente para evitá-las ou chegar à fruta sem perturbar o ninho – e eu estava errado muitas vezes! – me ajudaram a descobrir algumas coisas sobre sobrevivência. Agora, estou falando de 6, 7 anos. Quando cheguei a um lugar onde havia perigo de um tipo ou de outro, tive de fazer uma escolha. Uma vez que eu soube, ou senti, que havia perigo de um tipo ou de outro, eu tive de determinar, qual é a sabedoria de proceder? Eu me retiro, eu tento dar a volta?”

Esse tipo de autonomia, de independência, fez de Poitier um excelente observador, moldou o seu caráter e o acompanhou durante toda a vida, inclusive em sua brilhante carreira como ator e diretor. Diz ele, mais à frente, na mesma autobiografia:

“A atmosfera tranquila e simples da minha infância permitiu que eu me concentrasse no nível da linguagem corporal sutil que vinha de meus pais e meus irmãos. Naquela pequena ilha eu conhecia esses sinais muito, muito bem. Eu aprendera a lê-los assim como aprendera a ler os penhascos e as marés. Não entendi todos eles, mas com o tempo pude usá-los como ponto de referência para tentar entender o que os outros estavam dizendo, o que estavam fazendo, por que estavam se comportando comigo daquela maneira. Acho que essa é a base para o que veio a ser chamado de ʻinteligência emocionalʼ. É uma capacidade que é alimentada pelo silêncio e pela intimidade, e pela liberdade de andar.”

E essa característica notável é marca da vida e do trabalho de Sidney Poitier, o primeiro homem negro a receber o Oscar de Melhor Ator, em 1963, por Uma voz nas sombras (Lilies of the Field), no qual faz um trabalhador itinerante que ajuda algumas freiras, num convento, a construir uma capela. Seu comportamento perante a sociedade de sua época, marcada pelo racismo e pela odiosa segregação das leis Jim Crow, permitiu lhe darem a alcunha de “Martin Luther King Jr. do cinema”. Poitier era muito consciente da situação, mas decidiu tratá-la com inteligência e estratégia, seguindo a admoestação notável de sua mãe. Ele diz: “Uma tática de sobrevivência que funcionou bem para mim foi a que ganhei de minha mãe: ʻEncante-os, filhoʼ, disse ela, ʻde modo neutroʼ. Ser charmoso deu-me tempo e me permitiu desviar, pelo menos temporariamente, dos golpes de uma sociedade ameaçadora”. E completa:

“Veja, dentro do contexto de como eu vivia e como estava começando a estabelecer uma relação entre mim e esse lugar complexo, que eu não estava livre para me entregar totalmente aos deleites. Havia deleite; houve indulgências. Mas nunca perdi de vista o fato de que tinha de cobrir minhas costas, que estava sempre em evidência. A sociedade havia criado leis para me manter à distância ou completamente invisível. Aprender a sobreviver naquele mundo, muitas vezes hostil, foi um exercício de tentativa e erro, passo a passo; exatamente como quando eu estava aprendendo a colher os frutos das árvores de sapoti. Muitas vezes fui picado. ʻAh, então é assim que funcionaʼ, eu percebia. Então, meu armário está cheio de encontros, erros, ferramentas e lições aprendidas da maneira mais difícil”.

O mais notável é que, mesmo sendo alguém plenamente consciente dos problemas enfrentados pela população negra americana – ele foi uma das personalidades mais engajadas na luta pelos Direitos Civis, a ponto de correr riscos com seu amigo, o também ator e ativista Herry Belafonte – e ter sofrido muito com o racismo, Poitier adotou uma postura moderada, ainda que firme, tal como os já citados Martin Luther King Jr. e Oscar Micheaux, e também Booker T. Washington. E foi, muito provavelmente, tal postura que lhe permitiu ser quem foi, fazer tudo o que fez e ser considerado o primeiro galã negro americano, que mudou completamente a maneira como a indústria do cinema olhava para a população negra, com papéis subalternos e estereotipados.

Poitier se recusava a representar apenas papéis racializados e subalternos, e criou em torno de si uma imagem impávida, nobre e de moral elevadíssima, que serviu de exemplo para muitos. Como diz o jornalista Clarence Page em matéria do jornal Las Vegas Review-Journal: “Ele era um modelo para muitos jovens negros americanos como eu era na época. Mesmo quando seus papéis pareciam sentimentais, como em sua atuação pioneira vencedora do Oscar em 1963, Lilies of the Field, ele nunca foi bufão. Ele sempre parecia ter um ponto com suas performances. Ele se recusou a deixar que as poucas coisas sobre nós que parecem diferentes atrapalhassem as muitas coisas que deveríamos compartilhar em comum”. E, nos três filmes vistos por mim recentemente, essa nobreza aparece de forma profunda e indissociável de sua imagem.

Poitier se recusava a representar apenas papéis racializados e subalternos, e criou em torno de si uma imagem impávida, nobre e de moral elevadíssima, que serviu de exemplo para muitos

Em No calor de noite, ele interpreta um detetive da Filadélfia, especialista em homicídios, que, de passagem pelo extremamente racista estado do Mississippi, é designado para ajudar a desvendar um caso de assassinato. Nesse filme, vencedor do Oscar, dentre as muitas cenas icônicas, o detetive Virgil Tibbs, interpretado por Poitier, recebe um tapa na cara de um poderoso empresário local e o devolve com a mesma intensidade. Algo inimaginável à época. Em Adivinhe quem vem para o jantar – que vi pela primeira vez e me deixou absolutamente perplexo e muito emocionado, sobretudo com a atuação perfeita dos lendários Spencer Tracy e Katharine Hepburn (que venceu o Oscar de Melhor Atriz) –, Poitier é o médico John Wayde Prentice Jr., que conhece e se envolve apaixonadamente com a filha branca de uma família liberal (no sentido de defensora da integração e dos Direitos Civis), de classe alta, de São Francisco, e eles decidem se casar. Joanna “Joey” Drayton, interpretada pela jovem Katharine Houghton, leva o médico para conhecer seus pais e, baseada na educação que recebera, tinha certeza de que não haveria qualquer tipo de restrição em relação ao seu namorado. Mas não é bem isso que ocorre. O filme, meus caros, é maravilhoso e cheio de mensagens inspiradoras.

Porém, foi em Ao mestre com carinho, que me levou às lágrimas pela associação direta com minha profissão e até meu modo de encará-la (que assumi, como disse, antes de ver o filme), que encontrei, se não o melhor Poitier, o que mais tem a ver comigo. O engenheiro de telecomunicações Mark Thackeray, imigrante da Guiana Inglesa, decide aceitar o trabalho de professor interino numa escola secundária em East London, para dar aulas a uma classe de alunos problemáticos que conseguem fazer todos os seus professores desistirem deles por sua irremediável indisciplina. Mas estes não contavam com a obstinação, a firmeza de caráter e a disposição conservadora de Thackeray.

Ao perceber que, pelos métodos tradicionais, não conseguirá alcançar seus alunos, que quase o fazem desistir, Thackeray, diferente do idealismo de John Keating, personagem do saudoso Robin Williams em Sociedade dos poetas mortos – que já recebeu minha crítica –, assume uma posição prudente. Ele reconhece que a melhor maneira de salvar aqueles jovens é dar-lhes um senso moral de responsabilidade por suas vidas; e, após uma série de entreveros e embates quase infrutíferos, numa atitude aparentemente revolucionária, pega todos os livros de sua mesa, joga-os no lixo e insta seus alunos a guardarem os seus. E lhe diz: “São inúteis para vocês [...]. Dei-me conta de que serão adultos em algumas semanas, com todas as responsabilidades que lhes cabem. E serão tratados assim por mim, e se tratarão da mesma forma. Como adultos. Adultos responsáveis. Logo, seremos razoáveis uns com os outros e vamos apenas conversar. Ouvirão sem interrupção. Quando eu acabar, poderão dizer o que quiserem. Sem interrupção”. Eles lhe perguntam: “Sobre o que falaremos, senhor?” Ao que ele responde: “Sobre a vida: sobrevivência, amor, morte, sexo, casamento, rebelião... o que quiserem”. E o diálogo que se segue, para mim, é o mais importante do filme:

Alunos: “O que quis dizer outro dia sobre rebelião, mestre?”
Thackeray: “Mudança. O penteado de vocês é uma forma de rebelião, não?”
Alunos: “Como, senhor? Não faz isso para ser diferente dos adultos? Eles bagunçaram o mundo, mestre. Pode crer.”
Thackeray: “Daí vocês se rebelaram. Até suas roupas são um modo de rebelião.”
Alunos: “É só a última moda, senhor. Os adultos ficariam ridículos em nossas roupas. Acha errado mudar, ser diferente e rebelde, mestre?”
Thackeray: “É dever de vocês mudar o mundo, se puderem. Sem violência. Pacificamente, individualmente, não em bando. Os Beatles, por exemplo. Iniciaram uma revolução social. Suas roupas e cortes de cabelo são adotados no mundo inteiro. Toda nova moda é uma forma de rebelião. Há uma bela exposição de roupas através dos tempos, no Victoria & Albert Museum. Aproveitem para ir e ver o Museu de História Natural.”
Alunos: “Quer que vamos a um museu?”
Thackeray: “Sim.”
Alunos: “Você está brincando.”
Thackeray: “Descobrirão que seus penteados têm 200 anos e que suas roupas, seus vestidos são de 1920.”

O professor deve ser, antes de qualquer coisa, um modelo moral. E é exatamente isso que Thackeray e Sidney Poitier são

Com isso desperta nesses jovens o desejo pela história, pela arte e pela cultura – pelas coisas permanentes. Essa fórmula de turning point pedagógico será repetida à exaustão em praticamente todos os filmes similares posteriores. Mas em 1967, em plena era de recrudescimento dos protestos negros após a morte de Malcolm X (1965) e pouco antes da morte de Martin Luther King (1968), com o movimento Black Power surgindo e crescendo, pautado em ideias revolucionárias marxistas – coletivistas e contrárias ao que sugere Thackeray, mais afeito à Revolução de Valores proposta por Luther King –, a mensagem do filme se torna ainda mais especial e contundente – e atual nos dias de hoje.

Thackeray é percebido pelo alunos como um deles, mas, ao mesmo tempo, diferente: “O senhor é como nós, mas não é. É assustador, mas legal. Entende?” E isso lembrou-me das palavras indeléveis do mestre Ernesto Carneiro Ribeiro – o meu Patrono da Educação Brasileira – ao afirmar que “o bom êxito da escola, como o mais poderoso fator da felicidade nacional, não depende tanto do menino, que, pela maior parte, é terreno maleável e prestadio, quanto do amanho que lhe dá o mestre zeloso e bem avisado, que, diante dos olhos d’alma deve ter o conceito seguinte: emendar-se para emendar”. Ou seja, o professor deve ser, antes de qualquer coisa, um modelo moral. E é exatamente isso que Thackeray e Sidney Poitier são.

Óbvio que tal postura e visão de mundo não foram unanimidade. Nunca serão. A militância radical da época via em Poitier o mesmo caráter acomodacionista que via nos já mencionados Booker T. Washington, Oscar Micheaux e Luther King. A professora Samantha Noelle Sheppard, em artigo recente na revista The Atlantic, diz que “mesmo com seu estrelato, Poitier foi limitado pelas ambições conservadoras da indústria e pelo desinteresse pela complexidade negra. Com sua sexualidade castrada e sua dignidade firmemente estabelecida, Poitier incorporou uma minoria modelo nos filmes, um nobre santo de ébano que representava a negritude palatável e a harmonia interracial durante um período de luta racial. Seus personagens não ameaçadores, que desafiavam os sistemas trabalhando dentro deles, foram completamente aceitos pelo público branco”. E completa:

“O público negro, por sua vez, não estava uniformemente convencido. Papéis como o bem-educado médico negro de Poitier – que buscou a aprovação da família de sua noiva branca – em Adivinhe quem vem para o jantar atraíram duras críticas de alguns espectadores que ansiavam não apenas por uma representação negra positiva, mas também por representações ressonantes da vida e das lutas negras. As represálias de personagens negros benignos fizeram de Poitier um pára-raios para críticas e ressentimentos, inclusive sendo chamado de ʻnegro vitrineʼ, no The New York Times, pelo dramaturgo Clifford Mason. Mas foi o perfil de Poitier da revista Look, de James Baldwin, em 1968, que realmente capturou o excepcionalismo e o isolamento do ator na indústria.”

A militância radical da época via em Poitier um acomodacionista. Mas ele lutou e sofreu muito para chegar aonde chegou, e com as armas que tinha foi longe e abriu espaço para uma verdadeira plêiade de artistas, atores e atrizes negras

Sempre haverá quem inveje o sucesso de um astro da magnitude de Sidney Poitier, vendo, parafraseando o ditado, “as pingas que se toma, sem ver os tombos que se leva”. Ele lutou e sofreu muito para chegar aonde chegou, e com as armas que tinha foi longe e abriu espaço para uma verdadeira plêiade de artistas, atores e atrizes negras, como Denzel Washington e Oprah Winfrey, que reconhecem a profunda influência de Poitier em suas carreiras. A mim, cabe inserir Sidney Poitier no topo de pessoas que – tardia, mas definitivamente – me influenciam e inspiram.

Agora deixem-me voltar a seus filmes e pesquisar mais profundamente sua vida e obra.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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