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Tudo o que sei é que quando leio seus livros – e já li muitos deles – e, acima de tudo, quando leio as versões em inglês dos pequenos versos em que os mestres Zen apontam o dedo para algo que saiu do tempo, sinto um acordo profundo e íntimo. De tempos em tempos, conforme leio suas páginas, algo em mim diz: “é isso!” (Thomas Merton, em carta a Daisetsu T. Suzuki)
A citação em epígrafe, como apontado, é de uma carta do monge trapista Thomas Merton – sobre quem já falei aqui e aqui – ao famoso escritor japonês D.T. Suzuki, um dos principais responsáveis pela popularização do zen budismo no Ocidente. Merton era muito atraído pela mística Zen, e buscava, através desse conhecimento, encontrar a espiritualidade que estava para além do verbalismo com o qual o cristianismo estava infectado. Ou seja, buscava, numa tradição diferente da sua, um ponto de equilíbrio perdido de sua própria.
O Zen é supra verbal, supra doutrinário, é “conscientização não estruturada por forma ou sistema particular”. E Merton ainda afirma, em Zen e as aves de rapina, que “o leitor de raízes mais ou menos judeu-cristãs […] estará naturalmente predisposto a mal interpretar o Zen porque instintivamente tomará a posição de alguém que confronta um ʻsistema rival de pensamentoʼ, ou uma ʻideologia competitivaʼ, ou ʻuma alienada visão do mundoʼ ou, mais simplesmente ʻuma falsa religiãoʼ. Quem adota esta posição torna impossível qualquer compreensão, pois supõe de antemão o Zen, como algo que se recusa expressamente a ser o que é. O Zen não é uma explicação sistemática da vida. Não é ideologia. Não é visão do mundo, nem teologia da revelação e da salvação. Não é mística, nem caminho de perfeição ascética. Não é misticismo, como este é entendido no ocidente. Em realidade, ele não se enquadra em nenhuma conveniente categoria que tenhamos”. O Zen seria, portanto, um estado de consciência que perpassa todas as religiões.
Essa postura de Merton, de reconhecer numa tradição absolutamente diversa – que alguns consideram até inimiga – algo que sua própria havia perdido é um verdadeiro exemplo para o tempo presente. Ao transferirmos a análise para a política, percebemos uma situação análoga: um maniqueísmo rasteiro tem impedido as pessoas de submeterem seus pensamentos e suas certezas arraigadas ao escrutínio crítico em nome de uma postura monolítica, ideológica, que prejudica a evolução e o crescimento – individualmente, enquanto cidadãos, e coletivamente, enquanto sociedade. Ideias e perspectivas rivais não representam, necessariamente, o caráter das pessoas, e não é porque alguém pensa algo que considero abominável que, necessariamente, essa pessoa é abominável; às vezes só é equivocada. Diz Merton, de maneira enfática:
“Mas nós, no Ocidente, vivendo numa tradição de duro egoísmo, centrado no que é prático e dirigido inteiramente para a utilização e manipulação de tudo, passamos sempre de uma coisa à outra, da causa ao efeito, do primeiro ao seguinte, e ao último, voltando novamente ao primeiro. Tudo sempre traz uma indicação para outra coisa e, assim, nunca paramos, pois não o podemos; logo que paramos, o carro atinge o fim da viagem e temos de descer para procurar um outro. A coisa alguma é permitido simplesmente ser e significar o que é em si mesmo; tudo tem de, misteriosamente, significar outra coisa. O Zen tem a especial finalidade de causar frustração à mente que pensa em tais termos. O ʻfatoʼ do Zen, seja qual for, sempre acaba por atravessar nosso caminho como árvore caída, que não nos permite seguir adiante”.
Pois mal comparando, é este Zen político que nos falta atualmente, essa postura não de quem abre mão da verdade ou das certezas profundas; não de quem é maleável ao ponto de perder as convicções; mas de sermos pessoas cuja postura dá conta, primeiro, da própria imperfeição e das limitações dos empreendimentos humanos; e, segundo, de ter uma alma aberta não à relativização, mas à magnanimidade.
Para dar um exemplo da situação complicada de nosso presente, um testemunho recentíssimo: estreei, essa semana, um podcast com um grande amigo, Alê Santos, que é escritor e roteirista. Alê tem um posicionamento político diverso do meu, mais progressista, sobretudo quando se trata de analisar as questões raciais brasileiras. Mas a ideia é exatamente essa: unir nossas visões em torno de entrevistas com convidados igualmente diversos, a fim de pluralizar e ampliar o debate público. Minha aproximação com o Alê deu-se justamente por percebermos, após delimitarmos nossas divergências, que convergimos em muitas coisas – tanto essenciais, quanto secundárias, tanto em política, quando em cultura. E essa unidade na diversidade é que dá a fórmula de nosso programa, cujo mote é: “onde as divergências enriquecem e não dividem”.
Mas foi só anunciarmos nossa parceria que, em meio aos festejos e votos de sucesso, se aglutinaram um número razoável de anônimos ressentidos para os quais a diversidade de ideias é um crime inafiançável. Talvez seja só inveja mesmo, mas é sintomático que algo que deveria ser comum, causa tanta repulsa em pessoas cujas vidas não se tornarão mais ou menos desafortunadas por conta de um simples programa de entrevistas. E é curioso também que, majoritariamente, os ataques tenham vindo de perfis marxistas, que se gabam por defender minorias. Mas, nesse caso, este que vos escreve e Alê Santos, dois negros que nasceram e cresceram em contextos periféricos, não mais se encaixam no perfil defendido por tais juízes virtuais. Sem lhes prestar irrestrita obediência, fomos chamados até de playboys.
Mas só queremos – e vamos – seguir o exemplo de Thomas Merton ou mesmo de Martin Luther King Jr. e de Malcolm X, que, em meio a críticas mútuas – algumas bastante ácidas –, reconheciam que, no fundo, lutavam pela mesma causa, buscavam os mesmos ideias, ainda que por caminhos diferentes (não excludentes). Aos haters restará o amargor de seu próprio veneno. Sigamos.