“Paulo, em pé no meio do Areópago, disse: homens de Atenas, em tudo vos vejo muitíssimo religiosos. Percorrendo a cidade e considerando os monumentos do vosso culto, encontrei também um altar com esta inscrição: A um Deus desconhecido. O que adorais sem o conhecer, eu vo-lo anuncio!” (Atos 17, 22-23)
A vida de quem, como eu, decidiu confrontar a escravidão ideológica não está fácil. No início dessa semana que está terminando, a cantora Negra Li – oriunda do grupo de rap RZO, mas que, atualmente, faz carreira solo na música e no cinema – deu uma entrevista ao programa Morning Show, da Jovem Pan, e fez uma afirmação tão controversa que gerou uma enxurrada de críticas na internet. Liliane – esse é o belo nome da bela moça – afirmou que Elvis Presley teria tomado lugar de artistas negros, fazendo referência ao conceito de apropriação cultural, pelo qual batalham – com unhas, dentes e delírios – os militantes do movimento negro.
Logo Elvis Presley, que, segundo o igualmente inigualável B.B. King, ajudou tantos artistas negros!
Mas temos de fazer uma observação: Negra Li, numa atitude de extrema e louvável humildade, reconheceu o seu erro e se retratou publicamente.
Mas o que é apropriação cultural? De acordo com o Dicionário Oxford: “É um termo usado para descrever a apropriação de formas, temas ou práticas criativas ou artísticas de um grupo cultural por outro. É geralmente usado para descrever apropriações ocidentais de formas não ocidentais ou não brancas, e carrega conotações de exploração e dominação […] O termo surgiu durante os últimos vinte anos do século 20, como parte do vocabulário da crítica pós-colonial do expansionismo ocidental”.
Todas as palavras-chave para interpretar essa sandice estão nessa definição: não brancas, exploração, dominação e, sobretudo, pós-colonial.
O pós-colonialismo – uma variante do colonialismo que estuda as supostas dominações ainda presentes nas ex-colônias europeias – é uma das ideologias mais nocivas e mais disseminadas de nossa época. Dela derivam praticamente todas as interpretações acadêmicas das disciplinas de Ciências Humanas – e que, agora, já invadem as Exatas com aberrações como a tal Afromatemática.
O Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio apresenta uma visão absurdamente trágica do colonialismo, afirmando, por exemplo, que a conquista das Américas produziu “efeitos devastadores. Houve sociedades que foram inteiramente destruídas, não só política como também biologicamente”. Uma avaliação, por certo, absurdamente tendenciosa, pois temos exemplos de ex-colônias que atualmente são bastante prósperas, como os Estados Unidos e o Canadá. O caso do Brasil, como nos explica o professor Antônio Paim em seu Interpretações do Brasil, não foi, até certo ponto, diferente: “O Brasil enquadra-se perfeitamente na categoria das nações resultantes da colonização cujo modelo seriam os Estados Unidos. Em ambos os países, os colonizadores vieram para radicar-se no Novo Mundo. Não se propunham construir postos litorâneos com vistas à exploração comercial de riquezas existentes. Avançaram para o interior. Organizaram fazendas. Deram nascedouro a vilarejos que depois se transformaram em cidades. Enfim, estruturaram algo de permanente”. O problema é que, como ele arremata: “Se não produziu idêntico desfecho, deve-se ao tão de que, sendo mais ricos que os Estados Unidos no século 17, no seguinte escolhemos a pobreza”.
Você pode até questionar essas afirmações, caro leitor, mas há de convir que nem tudo nos processos de conquista – em si mesmos bastante complexos – foram, no longo prazo, desgraças. Mas os estudos pós-coloniais tendem a lançar toda a Europa num mar de sangue inocente por suas interpretações carregadas do mais absoluto ressentimento.
Do ponto de vista histórico, a apropriação cultural, que antes era chamada simplesmente de aculturação, é um fenômeno absolutamente legítimo. Sempre ocorreu, dos tempos bíblicos à Antiguidade Clássica, do Medievo à modernidade, por todo o mundo, em todo tempo. Um exemplo notório e notável é o helenismo, que moldou toda a cultura do Império Romano, mesmo a Grécia tendo sido a nação dominada. O historiador Paul Veyne, na obra História da vida privada, diz que: “Em Roma, a civilização, a cultura, a literatura, a arte e a própria religião provieram quase inteiramente dos gregos ao longo do meio milênio de aculturação; desde sua fundação, Roma, poderosa cidade etrusca, não era menos helenizada que outras cidades da Etrúria. Se o alto aparelho de Estado — imperador e Senado — permaneceu, no principal, estranho ao helenismo (tal era a vontade de poder entre os romanos), em contrapartida o segundo nível institucional, o da vida municipal (o Império Romano formava um corpo cujas células vivas consistiam em milhares de cidades autônomas), era inteiramente grego”. Posteriormente, a conversão do imperador Constantino, no século 4.º, alçou o Cristianismo de religião perseguida à maior religião do Ocidente – que, por sua vez, moldou toda a cultura ocidental.
Esses dois exemplos colocam por terra a teoria de que as culturas dominantes sempre tentam impor a sua cultura. E com isso não estou negando os processos violentos pelos quais passaram todos os países envolvidos nessas conquistas; mas, evidentemente, num mundo onde as guerras eram quase naturais, não havia muito espaço para a diplomacia.
O fato é o seguinte: a militância negra acadêmica, de esquerda, que inclusive engrossou suas fileiras, nos últimos anos, com a profusão de alunos cotistas nos cursos de ciências humanas das universidades federais (o milagre petista para a renovação da militância), tem se entupido e lambuzado com todo tipo de ideologias do ressentimento – todas, curiosamente, vindas do primeiro mundo. Tais doutrinas têm, como pano de fundo, o velho marxismo de sempre, para o qual todas as relações sociais são relações de poder. Se Marx era a favor da colonização inglesa na Índia – pois isso avançaria o capitalismo e aceleraria a revolução –, seus seguidores creem que o colonialismo é um “fator determinante” para o atraso de um país. E tome ressentimento.
Então somos obrigados a ouvir coisas do tipo – dita por uma das mais badaladas figuras do movimento negro midiático, Djamila Ribeiro: “Quando a gente discute apropriação cultural, a gente tá falando… não é o que as pessoas podem ou não usar, porque as pessoas podem, elas podem ir na (sic) loja e comprar. O debate nunca foi esse. Eu acho que a questão é: esses grupos sociais dessas culturas que estão sendo apropriadas, o que elas estão ganhando, o que elas estão recebendo em troca com essa apropriação; e o que essas pessoas, que se apropriam dessas culturas, que gostam tanto dessas culturas, ‘tão fazendo, de fato, na contribuição, na luta para melhorar a vida dessas pessoas”.
A primeira pergunta é: o que são grupos sociais dessas culturas? Será que a nossa ilustre “filósofa, feminista e acadêmica” (segundo a Wikipédia) está querendo dizer que o turbante, por exemplo, um artefato de origem desconhecida, usado pelos mais variados povos no mundo por milênios, de repente, de uma hora para outra, porque Djamila e suas companheiras de sandice ideológica querem, passou a pertencer a uma determinada “cultura”, e que essa “cultura” é compartilhada pelas feministas negras do Brasil? Que cultura é essa? Tem algum sentido isso?
E mais: o que Djamila fala nada mais é do que a boa e velha chantagem capitalista. Querer que as pessoas paguem ou se submetam a um grupo de pressão, para fazerem ou usarem algo que não é propriedade privada de ninguém – mas tão só o fruto de milênios de trocas culturais que ocorrem desde que o mundo é mundo –, nada mais é que sequestro ideológico sem qualquer fundamento, a fim de capitalizar em cima do sucesso alheio. É querer lucrar com algo que não lhe pertence.
Veja o que a filodoxa (assim Platão a chamaria) diz em um artigo que, outra vez, tenta explicar a tal apropriação cultural: “Durante muito tempo, o samba foi criminalizado, tido como coisa de ‘preto favelado’, mas, a partir do momento que se percebe a possibilidade de lucro do samba, a imagem muda. E a imagem mudar significa que se embranquece seus símbolos e atores para com o objetivo de mercantilização. Para ganhar dinheiro, o capitalista coloca o branco como a nova cara do samba”. Diz isso como se nunca tivessem existido Cartola, Nei Lopes, Beth Carvalho, Alcione, Done Ivone Lara, Fundo de Quintal; como se não tivesse vivido nos anos 1990, com aquela miríade de grupos de pagode, formados por negros, fazendo um enorme sucesso na televisão, ostentando carros de luxo e mulheres. Como se o samba tivesse dono e não fosse um patrimônio cultural do país como um todo.
Djamila vai além: “Por que isso é um problema? Porque esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e invisibiliza quem produz. Essa apropriação cultural cínica não se transforma em respeito e em direitos na prática do dia a dia. Mulheres negras não passaram a ser tratadas com dignidade, por exemplo, porque o samba ganhou o status de símbolo nacional. E é extremamente importante apontar isso: falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista”.
A trapaça intelectual está claríssima, estimado leitor: pessoas cuja falta de talento não lhes projeta para a relevância que ultrapassa a discriminação se ressentem e encontram na problematização uma forma de capitalizar o seu fracasso. É o ressentimento marxista traduzido em sequestro cultural.
O grande historiador Christopher Dawson explica a origem dessas maluquices todas – de toda essa produção ideológica cada vez mais sem pé nem cabeça, mas que faz sucesso entre aqueles que querem parecer inteligentes e tolerantes: está no próprio desvirtuamento da Sociologia. O que deveria ser uma ciência se tornou um amontoado de ideologias com o propósito de mudar o mundo – ou, melhor dizendo: moldar o mundo à imagem e semelhança dos ideólogos. Diz Dawson: “Augusto Comte anunciou o advento da nova ciência que seria a pedra angular do edifício científico, a coroa das realizações científicas do homem; porém, apesar de os últimos cem anos terem presenciado um grande crescimento no interesse sobre questões sociais, o qual foi acompanhado por enorme produção de literatura de cunho sociológico e semissociológico, as chances para que seu ideal se concretize são, hoje, ínfimas. De fato, houve, em certo sentido, um retrocesso em relação à posição alcançada na metade do século 19. A sociologia não possui mais um programa e um método claramente definidos; tornou-se um termo vago, que abrange vários assuntos distintos. Os sociólogos abandonaram a tentativa de criar uma ciência pura da sociedade e redirecionaram seus esforços para o estudo de questões sociais de ordem prática. A sociologia parece ameaçada de se tornar [e, de fato, se tornou] um monte de entulho, sobre o qual são jogados quaisquer itens que não possam ser, de outra forma, eliminados […] Começou sua atividade com uma constrangedora riqueza de material e um desejo prematuro por resultados práticos, mas sem possuir, ainda, um método consagrado”. (Dinâmicas da História do Mundo, É Realizações)
Diante disso, paciente leitor, o que esperar de tantas gerações formadas sob a égide do velhaco materialismo histórico/dialético – e, em nosso caso, amagando os piores índices de educação do mundo? Isso mesmo: nada.
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