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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Aretha Franklin e a maravilhosa graça

(Foto: Divulgação)

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O objetivo da música, ou o seu fim derradeiro deve ser para a honra de Deus e a recreação da alma. (Johann Sebastian Bach)

Se não me falha a memória, meu primeiro contato com a música gospel – mais especificamente com o chamado negro spiritual, as canções saídas diretamente do lamento nas plantações de algodão do sul americano para alcançar o céu num gemido de esperança – foi na apresentação do coral da Igreja Batista Mouth Moriah, do Harlem, que esteve no Brasil em outubro de 1996, para uma apresentação em decorrência do lançamento de um CD produzido pelo brasileiro Nelson Motta. Uma coisa inusitada, por sinal, pois o que na América é um evento absolutamente normal, todos os domingos, em qualquer igreja evangélica negra, aqui se tornou uma apresentação de grife, a ser assistida por um grupo seleto de pessoas numa casa de shows de elite em São Paulo. Fui um afortunado à época, por ter um bom emprego e condições de ir; mas lembro-me que não foi barato. O pastor da Mount Moriah se arrependeu, posteriormente, dessa superexposição, pois sua igreja se transformou num local de peregrinação para turistas brasileiros que se aglomeravam na igreja a fim de (tão somente) ouvir a música sem respeitar a ordem do culto.

O impacto que essa apresentação me causou foi inesquecível. Em seguida ganhei o CD de presente e o ouvi à exaustão, como um turista virtual, pois não partilhava da fé que a música evocava; entretanto, a reverência que existia ali não me escapava. Eu só viria a me converter ao protestantismo no ano 2000, e esse universo musical se abriu, definitivamente, a mim. A música coral atual, que ostenta nomes como Milton Brunson, James Moore, Richard Smallwood, Hezekiah Walker e o mais célebre de todos, Kirk Franklin, ocupou por muito tempo a quase totalidade de minha audição musical. Inclusive, quando conheci minha amada esposa, Abigail, que é professora de canto e foi dar aulas para o grupo de música da igreja em que eu congregava (nessa época eu cantava e tocava violão), ela fazia parte do melhor e mais famoso coral gospel brasileiro – o insuperável Just Sing, de Robson Nascimento – e dirigia um coral nesses moldes em sua igreja, com mais de 60 vozes, que passei a integrar utilizando os dotes que ela mesma me ensinara.

O negro escravizado, nos EUA, assumiu para si o discurso messiânico não só da libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, mas também a esperança no Cristo que morreu e ressuscitou para redimir a humanidade caída

Há quem diga que a música gospel é a música americana por excelência, pois dela derivaram o rock, o blues, o jazz, o soul, o R&B e o rap – ou seja, praticamente todos os ritmos da música popular americana. W.E.B. Du Bois, o primeiro negro a obter o título de Ph.D. (Doutor em Filosofia) pela Universidade de Harvard, em 1895, tem dois ensaios maravilhosos, em sua obra-prima As almas da gente negra, sobre o protestantismo negro americano e a música gospel Sobre a fé de nossos pais e As Sorrow Songs – que são verdadeiras radiografias desse universo, carregadas de poesia e sentimento (que a ótima tradução de Heloísa Toller Gomes reproduziu muito bem). Diz Du Bois: “A música da religião negra é uma melodia rítmica e plangente, com suas tocantes cadências em tom menor e, apesar das caricaturas e deturpações, ainda continua sendo a expressão mais bela da vida e da nostalgia humanas jamais nascida em solo americano”. Du Bois atribui isso ao sincretismo formado pela religião ancestral, oriunda do solo africano, amalgamada no cristianismo dos senhores e assumido de maneira absolutamente original pelos escravizados:

O negro foi trazido de um meio social definido – a vida polígama do clã, sob o comando do chefe e a poderosa influência do sacerdote. Sua religião era o culto à natureza, com profunda crença nas influências invisíveis circundantes, boas e más, e seu culto exercia-se por meio da magia e do sacrifício […] Foi uma tremenda revolução social e, no entanto, alguns traços da vida grupal anterior permaneceram, senso o Sacerdote ou Curandeiro a principal instituição remanescente […] Assim, como bardo, médico, juiz e sacerdote, dentro dos estreitos limites impostos pelo sistema escravista, ergue-se o pregador negro e, sob seu comando, surgiu a primeira instituição afro-americana, a igreja negra.

Há quem diga que a música gospel é a música americana por excelência, pois dela derivaram o rock, o blues, o jazz, o soul, o R&B e o rap

É muito interessante, e já falei disso aqui, nesta Gazeta do Povo, como o negro escravizado, nos EUA, assumiu para si o discurso messiânico não só da libertação do povo de Israel da escravidão no Egito, mas também a esperança no Cristo que morreu e ressuscitou para redimir a humanidade caída – a propósito, ontem foi a Páscoa e, no ano passado, escrevi sobre o assunto. Essa perspectiva está enraizada nos negro spiritual e, certamente, foi a razão da esperança de muitos que sofreram os horrores da escravidão. Como diz Du Bois: “Aqueles que, antigamente, caminhavam nas trevas, cantavam canções – Sorrow Songs – pois sentiam-se exaustos em seus corações […] A América pouca beleza tem dado ao mundo, a não ser a rude grandeza que o próprio Deus selou no seu seio; o espírito humano, nesse novo mundo, vem se expressando com mais vigor e destreza do que com beleza. E assim, por um acaso fatídico, as canções do povo negro – o grito rítmico do escravo – erguem-se hoje, não só como a única música americana, mas como a mais bela expressão da experiência humana nascida deste lado dos mares”. E arremata: “Através de toda a dor da Sorrow Songs, perpassa uma esperança – a fé na justiça final. As cadências de desespero, em tom menor, com frequência convertem-se em triunfo e em calma confiança”.

O me trouxe a lembrança dessas nobres características da música gospel americana foi ter assistido, esse fim de semana (de Páscoa e distanciamento social por conta do coronavírus), àquela que julgo ser a apresentação mais arrebatadora do gênero, a gravação do álbum Amazing Grace, de Aretha Franklin, em 1972, na Igreja Batista Missionária, em Los Angeles, em companhia do lendário Reverendo James Cleveland – um de seus mentores e o primeiro cantor gospel a figurar na Hollywood Walk of Fame – e do coral Southern California Community. O álbum vendeu mais de 2 milhões de cópias só nos EUA, e foi o vencedor do Grammy de Melhor Performance de Soul Gospel, em 1973. Essa gravação foi filmada, sob direção de Sydney Pollack (de Tootsie e A Firma), para a Warner Bros., mas nunca veio a público, pois Pollack, que não usou a claquete no início das tomadas, perdeu a sincronia entre áudio e vídeo, tornando o projeto impossível à época. Após 38 anos, com o avanço tecnológico, o produtor Alan Elliott conseguiu recuperar o filme; no entanto, Aretha Franklin o processou, impedindo que ele exibisse o filme sem sua autorização; também processou o Telluride Film Festival, em 2015, por tentar exibi-lo. Os motivos de Aretha Franklin ninguém sabe, mas há suposições sobre seu perfeccionismo e pelo fato de ela ter ficado fora da produção, razão pela qual teria se negado a endossá-la. Enfim, Aretha infelizmente morreu, em 16 de agosto de 2018 – escrevi, também, sobre seu funeral e as controvérsias que o sermão poderoso do reverendo Jasper Williams Jr. Causaram –, mas, felizmente, o documentário pôde ser exibido com a anuência da família, que tinha absoluta certeza da importância desse registro.

O que Aretha Franklin faz na gravação de "Amazing Grace" é algo verdadeiramente divino, fruto da maravilhosa graça que sobre ela pairava

Assisti ao filme em estado de graça e fui às lágrimas já na primeira música. Sou completamente apaixonado por Mahalia Jackson, a mais extraordinária cantora gospel de todos os tempos; no entanto, o que Aretha – que à época já era uma estrela, vencedora de nove Grammys – faz nessa apresentação é algo verdadeiramente divino, fruto da maravilhosa graça (amazing grace) que sobre ela pairava. Sua interação com o coral, regido pelo também lendário Rev. Dr. Alexander Hamilton, e com o próprio James Cleveland, que toca piano, é sensacional; em sua performance na música que dá título ao álbum e ao filme, a arquiconhecidida Amazing Grace – composição de John Newton cuja história é impressionante – , é como se o céu se abrisse para receber o seu canto emocionado de entrega total. Na plateia estavam ninguém menos que o jovem Mick Jagger e Charlie Watts, dos Rolling Stones, completamente arrebatados e dançando ao fundo do templo. Perto do final, seu pai, o reverendo C.L. Franklin, faz um discurso em homenagem à filha com trechos que vale a pena reproduzir, pois ele, mais do que ninguém, sabia o que significava aquele momento:

Acho que o Reverendo Cleveland escolheu um mau momento para eu falar, por conta de todo o espírito e entusiasmo que a Aretha apresentou esta noite. Eu sei que vocês ficaram impressionados com o seu dom, com a sua voz, com aquele algo intangível que é difícil de descrever. Mas foi muito mais do que isso para mim. Levou-me de volta até a minha sala de estar em casa, quando ela tinha 6 e 7 anos de idade. Levou-me até os 11 anos, quando ela começou a viajar comigo, cantando gospel. Eu os vi chorar e os vi corresponder. Mas eu estava quase a explodir! […] Não só porque a Aretha é a minha filha – e, claro, eu não estaria aqui em cima se não apreciasse isto. Mas digo com orgulho que Aretha não é só a minha filha, Aretha é uma grande cantora! […] Reverendo James Cleveland se lembra desses dias. Ele e Aretha costumavam ficar, em nossa sala de estar, por horas a cantar diferentes canções. E Aretha, com aquele ouvido excepcional, aprendeu muitas de suas técnicas. Ela foi muito influenciada por James, muito influenciada por Mahalia Jackson, muito influenciada por Clara Ward. Mas Aretha fez algo com o que aprendeu com James, com Mahalia e com Clara; do que aprendeu com todos os cantores que ouviu: ela fez disso uma síntese!

E, com esse testemunho, Rev. C.L. Franklin coroa a apresentação de sua filha, demonstrando o seu orgulho e admiração por vê-la em plena forma fazendo aquilo que aprendeu desde criança: cantar a expressão máxima da música e da religião americanas: as sorrow songs, o negro spiritual. O filme Amazing Grace – disponível em algumas plataformas de streaming no Brasil – é, depois da Paixão Segundo São Mateus, de Bach, a mais perfeita expressão da existência de Deus, o gesto sublime de rendição da criatura perante Aquele que tudo criou “para louvor da glória de sua [maravilhosa] graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado” (Efésios 1,6).

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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