“Somos todos casos excepcionais. Todos queremos recorrer de qualquer coisa! Cada qual exige ser considerado inocente, a todo custo, mesmo que para isso seja preciso acusar o gênero humano e o céu.” (Albert Camus, A queda)
A história é conhecidíssima: em 3 de maio de 2007, Madeleine McCann, uma criança de apenas 3 anos, desapareceu de um hotel de luxo, em Portugal, onde estava hospedada com seus pais, que a deixaram com os dois irmãos gêmeos, de dois anos, sozinhos no quarto, enquanto jantavam. O caso ganhou o mundo; não por sua natureza atípica, pois milhões de crianças desaparecem, dia após dia, mundo afora, em circunstâncias não menos misteriosas. O fato é que, em pouco tempo, dentre outras reações bizarras, um site foi colocado no ar a fim de vender produtoscom a foto de Madeleine – tais como camisetas com a inquisitória frase: “Você, não se esqueça de mim”.
O psiquiatra Theodore Dalrymple, em seu espetacular Podres de Mimados, analisa esse e outros casos nos quais o sentimentalismo tomou o lugar da racionalidade, e a sinalização de virtudes se tornou um exercício de hipocrisia preferido de quem se recusa a analisar os fatos com imparcialidade e independência, mas se deixa levar por um falso senso de justiça social que só justifica, mesmo, o próprio ego.
O sentimentalismo, como diz Dalrymple, é “uma daquelas muitas qualidades mais fáceis de reconhecer que de definir”. Trata-se de um excesso de emoção ou mesmo uma emoção falsa, que coloca o sentimento acima da razão. O sentimentalista não deseja compreender os fatos, mas simplesmente reagir, da maneira mais compassiva que lhe pareça, a fim de, publicamente – pois o sentimentalismo só faz sentido se expresso em público –, atrair a atenção para a sua suposta superioridade moral. Um caso recente me parece igualmente ilustrativo.
Na última semana, chegou até mim o caso do empresário Crispim Terral, 38 anos, que, no dia 19 de fevereiro, se envolveu num incidente dentro de uma agência da Caixa Econômica Federal, em Salvador (BA). Um vídeo, no qual Terral recebe um mata-leão de um policial, viralizou na internet, e o empresário acusa o gerente e os policiais de racismo. De acordo com Terral, num post publicado numa rede social, ele havia se dirigido à agência para “buscar meu direito como cidadão e cliente”. Ao chegar à agência, diz que esperou “quatro horas e 47 minutos” pelo atendimento, e que tanto o gerente de contas quanto o gerente geral o deixaram esperando, à mesa do gerente de contas, negando-se a lhe prestarem o devido atendimento. Diante de sua insistência, o gerente teria dito: “se o senhor não se retirar da minha mesa vou chamar uma guarnição”. E foi o que ele fez. A polícia chegou, solicitou que todos fossem levados à delegacia, mas o gerente disse – e, no vídeo, aparece ele dizendo isso a outra pessoa, ao telefone – que só iria se o cliente fosse algemado. Ao que parece, Crispim discordou e, após um corte substancial no vídeo, aparece um dos policiais aplicando um mata-leão no empresário.
O caso está, agora, com a Justiça, que poderá, com acesso às imagens do banco, concluir o que ocorreu de fato. Mas há algo que me incomodou profundamente nessa celeuma, e que gostaria de dividir contigo, caro leitor.
Em nenhum momento quero aqui julgar o mérito da questão. O vídeo, realmente chocante, nos leva a ter compaixão por Crispim Terral, pela maneira enérgica com que foi tratado. Também é de conhecimento de todos que o atendimento bancário – ainda mais nos bancos públicos, nos quais há pouca autonomia da equipe que trabalha nas agências – não é exatamente uma maravilha em nosso país. Eu mesmo, para resolver um problema relativamente simples, tive de voltar, uma vez por semana, durante sete meses, a uma agência bancária, por conta da burocracia kafkiana a que somos submetidos a cada solicitação. Também sabemos que a Polícia Militar, vez por outra, comete excessos – como qualquer um de nós, mas com a agravante de que, como representante do Estado, seus erros podem ter consequências trágicas para um simples cidadão.
Tudo isso é sabido e compreensível. O que me incomoda é que toda essa confusão está sendo tratada como um caso de racismo. O próprio empresário tratou de encabeçar essa narrativa.
As três evidências que estão levando a essa conclusão por parte de Terral, da militância negra e dos sentimentalistas de redes sociais são: 1. a inferência de que a polícia agiu daquele modo por ele ser negro; 2. o gerente ter se referido a ele como “esse tipo de gente” e 3. ter dito que só iria se o cliente fosse algemado.
O problema é que, por mais que tenhamos a impressão de que a polícia escolhe a cor de seus suspeitos, num país de maioria negra, concentrada na periferia e, infelizmente, no crime, não pode ser estranho que a maioria dos suspeitos tenha essa característica. Os motivos pelos quais a maioria dos criminosos não é branca pertencem a outra discussão. Mas não podemos inferir que, no caso em questão, a cor de Crispim Terral tenha influenciado a ação dos policiais, que claramente tentam convencê-lo a deixar a agência voluntariamente antes de fazerem o uso da força. Tampouco podemos saber, já que o vídeo foi editado, o que ocorreu entre a discussão com o gerente e a ação dos policiais.
Quando o gerente se refere ao cliente como “esse tipo de gente”, é claríssimo ali que ele se refere à atitude de Terral, não à sua cor. Tanto é que antes ele diz que não fará acordos porque ele infringiu as regras (pelo fato de se recusar a deixar o banco após o horário do expediente). Já sabemos, também, que o cliente não esperou mais de quatro horas para ser atendido, mas se recusou a deixar a agência sem que sua solicitação fosse atendida, quando os gerentes alegaram que isso não seria possível naquele momento – e foi por causa desse impasse que a polícia foi acionada. O gerente, visivelmente alterado, disse que só iria com o cliente algemado, e errou ao fazer isso. E, com a edição do vídeo, temos a impressão de que os policiais aplicaram o mata-leão no cliente para atender ao pedido do gerente; mas isso é algo que, absolutamente, não podemos concluir sem o vídeo completo.
Crispim Terral foi conduzido à delegacia e autuado por desobediência e resistência. Em seguida, foi à Corregedoria da Polícia Militar e denunciou os policiais. O Ministério Público foi acionado para investigar o caso. O gerente foi afastado e a Associação de Gerentes da Caixa saiu em sua defesa, alegando em nota que: “Ao analisar o vídeo, fica claro que o mesmo está editado, ao que parece, para suprimir aquilo que não interessa ao denunciante. Chama a atenção também o fato de as imagens só terem sido divulgadas dias depois da ocorrência, com os devidos cortes e legendas, feitas pelo próprio reclamante. A gravação é, portanto, fraudulenta, manipulada, além de ser não autorizada, e tem o único objetivo de manchar a imagem do banco e do seu quadro de pessoal. Atitude que reforça a intenção de desgaste perante a sociedade. Vale destacar ainda que em momento algum, o gerente autorizou o uso da força policial na agência. No vídeo, usado de forma indevida, o empregado está ao telefone em conversa com a GISEG (Gerência Regional de Segurança), tratando de garantias à sua integridade física numa eventual necessidade de se deslocar até à delegacia, pois mesmo tendo recebido tentativas de intimidação por parte do reclamante, desejava um desfecho administrativo para o caso […] A Agecef reafirma que as imagens mostram apenas o lado de um dos envolvidos no episódio. Importante atentar que o cliente estava filmando toda a ação, desde que chegou à agência, por volta das 10 horas do dia 19 de fevereiro. E que, ao contrário de sua alegação, não ficou aguardando por atendimento, pois atendido às 10h37, conforme a senha que lhe foi disponibilizada, e este atendimento durou 1h22, pois foi realizado com toda dedicação”.
No dia 26, um grupo de aproximadamente 100 pessoas, acompanhadas de Crispim Terral, fez um protesto no banco contra a atitude do gerente e dos policiais, aos berros de “racistas, fascistas, não passarão!”
Ou seja, temos diante de nós um imbróglio que nos foge à compreensão sem que tenhamos acesso às informações corretas. Por isso, deveríamos evitar acusações apressadas e/ou infundadas.
Mas há algo que me deixou profundamente consternado. E isso não tem relação com o tratamento que o cliente recebeu dos policiais ou do gerente, mas com a exposição de sua filha a esse constrangimento terrível. A memória afetiva, a imaginação moral dessa garota nunca mais será a mesma após o ocorrido. E o fato de o pai ter colocado o seu problema acima da proteção à sua própria filha me faz crer que Crispim Terral foi tomado pelo desejo de capitalizar sentimentalmente em cima de um fato corriqueiro – o mau atendimento em agências bancárias – e, com isso, expôs a filha ao perigo, pois poderia ter ocorrido coisa muito pior.
Mas, ao que parece, ninguém parece ter notado isso, pois o que realmente importa é a sinalização de virtudes sentimentais, pois o sentimentalismo, de acordo com Dalrymple: “É a expressão da emoção sem julgamento (devo esta formulação ao sr. Myron Magnet). Talvez ele seja pior do que isso: é a expressão da emoção sem um reconhecimento de que o julgamento deveria fazer parte de como devemos reagir ao que vemos e ouvimos. É a manifestação de um desejo pela ab-rogação de uma condição existencial da vida humana, a saber, a necessidade de exercer o juízo sempre e indefinidamente. O sentimentalismo é, portanto, infantil (porque são as crianças que vivem em um mundo tão facilmente dicotomizável) e redutor de nossa humanidade”.
O filme Green Book, vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2019, também nos dá uma lição exemplar: em viagem pelo sul dos EUA, Don Shirley (Mahershala Ali) e seu motorista Tony Lip (Viggo Mortensen) são parados pela polícia. Chovia muito e um dos policiais faz Lip sair do carro. Em seguida, sob os protestos de Lip, faz Don Shirley sair também. Ao ser provocado, Lip dá um soco no policial e os dois vão presos. O pequeno diálogo na cadeia é civilizatório:
(Shirley) – Está contente? Como minha mãe sempre dizia: “Que tipo novo de tolo você é?” Olhe para eles ali. Dê uma boa olhada no policial em que bateu. Olhe para ele. Ele está ali se divertindo, papeando com os colegas, curtindo uma boa xícara de café. E você, onde está? Aqui dentro, comigo, que nada fiz. Ainda assim, sou eu quem paga o preço. Sou eu que vou perder o show de Birmingham.
(Lip) – Também perderei muito dinheiro se você não tocar em Birmingham.
(Shirley) – E aquele seu ataque de raiva? Valeu a pena? Nunca se vence com violência, Tony. Só se vence quando se mantém a dignidade. A dignidade sempre prevalece. E esta noite, por sua causa, não vencemos.
Crispim Terral poderia ter vencido com dignidade. Ter desistido da confusão, pego sua filha e ido embora, para depois ir atrás de seus direitos. Mas não: como um bom sentimentalista, quis ter seu momento de glória, mas quem perdeu foi sua própria filha.