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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Música

Na esperança do clichê de Dostoiévski: arte como educação

Roberto Minczuk rege a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo em concerto no Centro Educacional Unificado (CEU) Jaçanã. (Foto: Paulo Cruz)

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“A convicção presente em uma genuína obra de arte é absolutamente indisputável, e consegue domar até mesmo o coração mais resistente.” (Gregory Wolfe)

No próximo ano completarei uma década de atividade docente. Em 2014, quando iniciei, minha convicção era a de que seria possível contribuir, de alguma maneira, com a educação no Brasil, e que aquilo que eu vinha pensando havia uns dez anos – sobretudo em relação à imaginação moral dos jovens – poderia ser aplicado no ensino básico, através da disciplina de Filosofia. A filosofia, nesse caso, seria para mim o veículo, a porta de entrada para a discussão de questões que eu considero fundamentais (e propedêuticas, preparatórias), como a importância de uma formação cultural consistente, indispensável para nosso avanço civilizacional, para nosso futuro enquanto nação. Esse era, aliás, o objetivo de Platão com a sua Academia.

No entanto, como tenho repetido com frequência recentemente, a triste constatação a que esses quase dez anos me fizeram chegar é que a educação no Brasil acabou, está morta. A deterioração é tanta, o descaso é tamanho que tudo, absolutamente tudo é organizado para não funcionar, para dar errado. Não me cabe aqui repetir algo que já procurei diagnosticar em algumas séries de artigos aqui mesmo, nesta Gazeta do Povoaqui (em seis artigos), aqui (em quatro artigos) e aqui (em três artigos); mas vale dizer que sinto muito por meus colegas mais antigos de profissão, que sentem muito mais os efeitos do que ocorreu nos últimos anos. Quando comecei, a situação já não era das melhores, mas creio que, como um efeito direto da internet – e, mais propriamente, das redes sociais –, tudo piorou muito rapidamente; quando percebemos, já não era mais possível lecionar, instruir.

O problema não é que a educação formal não seja mais atraente por disputar a atenção dos alunos com a internet. O que ocorre é que não somos mais capazes de lhes transmitir, enquanto sociedade, a importância da educação

Óbvio que os argumentos sobre o modo supostamente antiquado da educação – com salas de aula ainda dispostas de modo tradicional, com disciplinas que parecem dispensáveis e professores como pretensos detentores do conhecimento – não resistem a um exame da realidade. O problema não é que a educação formal não seja mais atraente por disputar a atenção dos alunos com a internet, onde é possível “saber de tudo” sem a ajuda de ninguém. O que ocorre é que não somos mais capazes de lhes transmitir, enquanto sociedade, a importância da educação. Educar-se, no contexto atual, significa passar mais de uma década frequentando a escola, diariamente, por horas e horas, para, no final, fazer uma prova (Enem ou vestibular) que nos possibilitará entrar numa universidade qualquer e nos garantirá um diploma e, se tudo der certo, um emprego. Estudar não tem mais o sentido de formação.

A formação integral de um ser humano depende não só de termos uma profissão, mas daquele humanismo do qual nos fala Jacques Maritain em seu Humanismo integral, que “respeita real e efetivamente a dignidade humana e dá direito às exigências integrais da pessoa”, e que é “orientado para uma realização social temporal desta atenção evangélica ao humano, a qual não deve existir somente na ordem espiritual, mas incarnar-se, e também para o ideal de uma comunidade fraterna”. Tal humanismo só pode ser conseguido por um esforço real de educação, que ocorre tanto no seio familiar quanto no ambiente escolar, que, mais do que nos oferecer socialização, nos permite organizar nossas emoções, nossa inteligência e todas as contradições que nos acompanharão durante a vida. Mas essa possibilidade parece ter ficado no passado. Agora tudo é dissolução e desordem.

Mas não pense o leitor que desisti de meu ofício. Minha desilusão é sempre balanceada por minha vocação e por lampejos de esperança que, vez por outra, me surpreendem. E não foi diferente no último sábado, quando fui assistir a um concerto gratuito da espetacular Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, comandada pelo sempre competente maestro Roberto Minczuk, no Centro Educacional Unificado (CEU) Jaçanã. Os CEUs, para quem não sabe, são equipamentos públicos voltados à educação, criados pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e localizados nas áreas periféricas da Grande São Paulo. Um concerto gratuito da OSMSP, perto de minha casa, eu não poderia perder. No programa, obras de Mozart, Beethoven, Georges Bizet, Rossini, Villa-Lobos e John Williams.

Apesar de minhas ressalvas em relação a apresentações de música clássica fora do ambiente adequado, no qual a experiência de imersão (auditiva e visual) pode ser prejudicada, dificultando o impacto catártico – transformador, portanto – que um concerto pode causar, o auditório do CEU Jaçanã me pareceu bastante satisfatório: boa acústica, cadeiras confortáveis e iluminação adequada. O público colaborou e se deixou envolver completamente pelo concerto, aplaudindo efusivamente nos intervalos entre as músicas e se empolgando no reconhecimento das obras: o arquiconhecido primeiro movimento da Quinta Sinfonia, de Beethoven; a abertura de O Barbeiro de Sevilha (que muitos lembram pelos desenhos do Pernalonga e do Pica-pau), de Gioacchino Rossini; a abertura de Carmen, de Georges Bizet; e o estonteante tema de Star Wars, de John Williams, foram alguns dos temas tocados com maestria pela orquestra.

Tal experiência foi, certamente, inesquecível para muitas daquelas crianças e jovens que lá estavam. Richard Wagner diz, em seu ensaio sobre Beethoven, que “a [...] música é uma ideia do mundo, nela o mundo manifesta imediatamente sua essência, ao passo que nas demais artes esta essência só se torna representação quando mediada pelo conhecimento”. Esse tipo de experiência, imediata, que apela à sensibilidade e que só a música pode oferecer, é, de acordo com Daniel Levitin em seu revelador A música no seu cérebro, “a mais bela obsessão humana”. O que a música provoca em nós, todas as emoções e lembranças que evoca, tudo isso é conhecimento, é imaginação, é estar aberto para si mesmo e para o mundo. É educação.

Por isso, ver aquele local cheio de crianças, de jovens, de meninos e meninas entusiasmados com a arte, ver gente da periferia envolvida e imersa num concerto de música clássica de altíssimo nível, foi algo de encher o coração de esperança, e me fazer continuar acreditando que, sim, a beleza salvará o mundo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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