Ninguém pode estimular a arte senão o mestre. Os mecenas estimulam os artistas, o que é correto e bom; mas, desse modo, nem sempre a arte é estimulada. (Goethe)
Esse fim de semana revi o excelente documentário Arquitetura da Destruição, de 1989, dirigido por Peter Cohen, que escrutina a intenção dos nazistas de salvar a Alemanha da degeneração moderna através da “purificação racial”, utilizando a arte como modelo de pureza. No prólogo, o narrador diz: “O nazismo alertava sobre um mundo prestes a ruir, que ameaçava mergulhar a Terra na escuridão eterna. Os nazistas diziam conhecer a origem da ameaça e se responsabilizaram por erradicá-la. Purificada e preservada da decadência, uma nova Alemanha surgiria, mais forte e muito mais bonita”. Em 1939, durante o Dia das Artes, que ocorreu duas semanas antes do início da Segunda Guerra, Hans-Friedrich Blunk, presidente da Câmara de Literatura do Reich, disse: “Sim, este governo que consiste de homens que aspiram servir às artes está cônscio do papel do artista como intermediário (...) Este governo, nascido em oposição ao racionalismo, conhece o desejo do povo e seus maiores sonhos que somente um artista pode dar forma”. Baseando-se nos mitos nórdicos – amplamente explorados pelo compositor de óperas Richard Wagner – e na concepção de pureza racial ariana, a intenção de Hitler era travar, segundo ele diz na inauguração da primeira Grande Exposição de Arte Alemã, uma verdadeira “guerra purificadora contra a desintegração de nossa cultura”. Daí para a eugenia e a política de genocídio perpetrada pelo nazismo foi um pulo.
O alto escalão do governo nazista era repleto de artistas frustrados. Conforme nos diz o narrador do filme, “Goebbels escreveu um romance, poesias e peças. Ou Alfred Rosenberg, ideólogo do Partido, era pintor e tinha ambições literárias. [Baldur] von Schirach, líder da Juventude Hitlerista, era considerado um importante poeta do Reich. O próprio Hitler era um pintor frustrado, que sonhava em ser arquiteto”. Esses homens, pautados pelo ressentimento e por um reacionarismo grosseiro, diziam que “as obras dos artistas modernos mostravam sinais de doença mental de seus criadores”; e associando a arte moderna – por exemplo, as pinturas cubistas de Pablo Picasso ou as esculturas experimentais de Rodin – às formas grotescas de pessoas deformadas por doenças, iniciaram uma verdadeira cruzada genocida contra o que consideravam degenerado. O programa de eutanásia nazista, chamado de T4 – por estar localizado à Rua Tiergarten, 4 – foi um dos mais demoníacos da história humana. De acordo com o historiador Martin Gilbert, em seu célebre A Segunda Guerra Mundial:
Desde os primeiros dias da operação T4, prestou-se atenção especial às crianças de tenra idade, principalmente aos recém-nascidos. Em Görden, próximo de Brandenburg, uma instituição pediátrica estatal criou um Departamento Psiquiátrico Especial para a Infância, aonde eram enviadas e onde eram mortas crianças vindas de toda a Alemanha. Um de seus objetivos, recordou mais tarde um médico que trabalhou na instituição, era “pôr os recém-nascidos para dormir o mais depressa possível”, de modo a evitar a criação de “laços mais fortes entre as mães e seus filhos”. O programa de eutanásia engrenara. Em Görden e em seis outras instituições espalhadas pela Alemanha, os alemães considerados loucos começaram a ser mortos. Dezenas de milhares viriam a perecer como vítimas da perversão da ciência médica.
Quando o Estado se julga capaz de conduzir isso, fatalmente cairá, no mínimo, no artificialismo, no máximo, no dirigismo inócuo – e injusto
Mas veja, caro leitor: o que nos importa aqui, por ora, é analisar rapidamente como o dirigismo estatal pode, através de uma concepção absolutamente errada de seus condutores, desembocar na banalidade do mal. Tendo o Estado, que é composto por homens, o poder da espada em suas mãos, não é difícil supor, dentro das possibilidades existentes e que a própria história já nos provou inúmeras vezes, que injustiças inomináveis sejam cometidas visando, aparentemente, os mais nobres interesses. Agora, a pergunta que não quer calar, nesse caso específico dos nazistas e seu desejo de purificar a cultura alemã por meio de um resgate idílico da cultura clássica, é: qual a possibilidade do Estado em direcionar a cultura de seu povo? Ou melhor: pode a cultura de um povo ser conduzida verticalmente, de cima para baixo, segundo os ditames dos governantes? Para responder a essa pergunta é imprescindível que saibamos o que significa “cultura” e a que estão submetidos os artistas, uma vez que a arte é um dos principais veículos culturais.
T. S. Eliot, em seu Notas para uma definição de cultura, é certeiro ao nos afirmar que a
cultura é algo que não podemos visar deliberadamente. É o produto de uma miríade de atividades mais ou menos harmônicas, cada qual exercida por sua própria finalidade: o artista deve concentrar-se em sua tela, o poeta em sua máquina de escrever, o servidor público na correta resolução de problemas particulares à medida que caem sobre sua mesa, cada um de acordo com a situação em que se encontra. Mesmo que essas condições com que me preocupo pareçam ao leitor representar metas sociais desejáveis, não deve ele saltar à conclusão de que essas metas podem ser atingidas unicamente através de organização deliberada. Uma divisão da sociedade em classes, planejada por uma autoridade absoluta, seria artificial e intolerável; uma descentralização sob um comando central seria uma contradição; uma unidade eclesiástica não pode ser imposta na esperança de trazer unidade de fé, e uma diversidade religiosa cultivada por si só seria absurda. O ponto ao qual podemos chegar é o reconhecimento de que essas condições de cultura são “naturais” aos seres humanos; que, embora pouco possamos fazer para encorajá-las, podemos combater os erros intelectuais e os preconceitos emocionais que se lhe deparam no caminho. Quanto ao restante, deveríamos buscar o aperfeiçoamento da sociedade, do mesmo modo que procuramos o nosso individualmente, em detalhes relativamente diminutos.
Ou seja, a pretensão de conduzir, de modo arbitrário, os rumos culturais de um país é notoriamente impossível, uma vez que, como diz Andrei Tarkovski, “a arte nasce e se afirma onde quer que exista uma ânsia eterna e insaciável pelo espiritual, pelo ideal”. Por isso o artista é um ser absolutamente autônomo, ainda que influenciado pelo espírito de seu tempo. Que o Estado julgue necessário resgatar os valores superiores de seu povo e, corretamente, veja na função social da arte um auxílio salutar, não há qualquer problema. “A arte de um povo”, como diz Ângelo Monteiro, “por ressaltar o ethos desse povo, tem por isso, e só por isso, um caráter social: por ela se transmite e se plasma uma forma específica de revelação do universal, não sendo os condicionamentos sociais, econômicos e históricos – mas a experiência humana como totalidade – que respondem por sua existência, pois isso iria de encontro à sua autonomia”. Desse modo, o desejo estatal de fomentar um tipo específico de arte requer, primeiro, que haja uma convergência entre os desejos do Estado e a autonomia do indivíduo artista. Quando o Estado se julga capaz de conduzir isso, fatalmente cairá, no mínimo, no artificialismo, no máximo, no dirigismo inócuo – e injusto.
Em toda a celeuma que, no último fim de semana, resultou na demissão do secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, por seu grotesco vídeo com inspirações nazistas, o aspecto mais fundamentalmente preocupante não é, em absoluto, se ele tem, de fato, admiração pelo demoníaco Führer ou se foi vítima de uma sabotagem. Alvim, em seu vídeo, disse que “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada”. As frases supostamente copiadas de um discurso de Goebbels são escandalosas por si só; mas são mais preocupantes porque endossam uma visão do governo sobre arte e cultura. Na live da última quinta-feira, o próprio presidente Jair Bolsonaro disse que Alvim representava a “cultura de verdade no Brasil, coisa que não tínhamos”, e que temos de fazer uma “cultura para a maioria” – partindo do princípio que ele sabe, exatamente, o que a maioria da população quer. Que haja uma rejeição mais ou menos geral de uma arte que degrade as pessoas e estimule a criminalidade, tudo bem. Mas o que o presidente não percebe é que esse moralismo convive, contraditoriamente, com os bailes funk lotados, com o maior carnaval do planeta e com os artistas da “sofrência” ganhando milhões; enquanto a arte “heroica” de Alvim seja relegada aos grandes centros e a um número reduzido de pessoas.
Diante disso, o que quer dizer uma arte “profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo”? Alvim, na live, ao anunciar um edital para cinema, disse que estava “tentando criar um cinema sadio, ligado aos nossos valores e aos nossos princípios”. Valores e princípios de quem? Do governo? Do povo? Dele próprio? É óbvio que creio, pessoalmente, que haja uma hierarquia de valores em termos culturais – já tratei disso aqui, nesta Gazeta do Povo; no entanto, há um debate em relação a isso, e não penso que ele deva ser travado pelo Estado, ou que o Estado venha a determinar o que é ou não superior em termos culturais.
Creio que o único modo de o Estado se envolver com a elevação cultural de seu povo é por meio da educação – também já falei sobre isso numa série de artigos que se iniciou aqui; é apresentando às crianças e jovens a variedade de tradições e de bens culturais do país, estimulando o julgamento autônomo baseado no conhecimento, não na mera sugestão doutrinária. O Estado não deve, em hipótese alguma, tentar moldar a cultura de seu povo; deve, no máximo, garantir que a cultura tenha desenvolvimento amplo, irrestrito e autônomo, que todas as manifestações culturais – sejam elas consideradas degradadas ou não pelos governantes – tenham espaço na sociedade, e que ela própria seja capaz de julgar o que é melhor para si – por meio da boa educação de sua imaginação moral. Se Alvim, que agora já não ocupa mais o cargo, representava não só sua visão de cultura (que, como indivíduo, é absolutamente legítima), mas a visão do próprio governo, do Estado, o inadmissível dirigismo estatal da cultura provavelmente só passará de mãos, mas continuará a nos assombrar. E isso é tão preocupante quanto os incentivos estatais bastante questionáveis dos últimos anos.
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