“Acho que minha perspectiva sobre a política é entediante, a opinião de um ator sobre política não importa merda nenhuma.” (Kevin Spacey)
Quando, em 2014, a entrevista do agora desditoso ator Kevin Spacey saiu no jornal El País, a série House of Cards estava no auge. Ver um político inescrupuloso, fazendo tudo o que era preciso – ainda que não recomendado – para chegar ao poder com uma ironia, uma inteligência e uma sordidez insuperáveis, era realmente algo viciante. Sem contar que a identificação com a situação perene da política brasileira – ou com famigerados políticos de nossa fauna – foi imediata.
Mas algo que “viralizou” por aqui, na verdade, foi a frase em epígrafe, que também serviu de epígrafe para a entrevista no site. Perguntado sobre o que achava de Frank Underwood, seu inescrupuloso personagem na série, Spacey deu uma resposta prática e técnica: “Minha perspectiva como ator sempre foi servir ao roteiro e não julgar meus personagens. Não é meu trabalho fazer julgamentos morais nem ter opiniões. Isso eu deixo à audiência”. E, como a entrevistadora insistia em saber o que ele achava da comparação da série com a política real, ele, de novo, se desvencilhou: “Não trabalho em política. Só fazemos ficção”. Não satisfeita, ela perguntou se sua visão sobre política havia mudado após a série. E a resposta foi a que vimos acima. E concordo integralmente com ele.
O problema é que há uma exigência, não só do público, mas de jornalistas, para que artistas tenham opiniões sobre tudo; parece haver uma noção – absolutamente errônea, a meu ver – de que eles, por serem populares ou por, no caso de alguns, produzirem, em suas respectivas artes, coisas relevantes (às vezes geniais), possuem uma inteligência superior que os torna capazes de opinar com acerto sobre vários assuntos para além de sua expertise específica. Sobretudo nos assuntos mais tabus, sobre o qual a sabedoria popular, prudentemente, diz que não se deve discutir – política, religião e futebol –, os artistas insistem em dar as suas opiniões, quase sempre desastrosas.
A modernidade carrega em si essa abertura ao “clima de opinião” pelo caráter subjetivo que as ideias – e a verdade – alcançaram. E se, em geral, todo mundo sempre teve opinião sobre tudo, atualmente todas as opiniões têm, em alguma medida, o caráter de verdade. Como disse o teólogo e crítico social Os Guinness, recuperado por Ruben Amorese em seu célebre Icabode e já tratado por mim nesta Gazeta do Povo, “o mundo moderno – segundo sua acepção, é o que ʻreflete a última moda, a última invenção, a ideologia do momentoʼ – tem um ʻtripé estruturadorʼ: a pluralização, a privatização e a secularização”. Tal tripé permite que as pessoas escolham, num grande e variado (plural) mercado de ideias, alguma opinião que lhes agrade, tomem-na para si (ou seja, a privatizam) e, com isso, promovem uma verdadeira secularização do mundo através da perda do conceito objetivo de verdade.
Um exemplo recente, de alguém que considero um verdadeiro gênio em sua arte, mas que, quando fala sobre algo para além dela, quase sempre comete equívocos descomunais, pode ser bastante elucidativo. Falo de Mano Brown, do lendário grupo de rap Racionais MCs. Brown é, de fato, alguém que admiro e que sempre acaba voltando a essa coluna por vários motivos (por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui); reconheço seu valor para a cultura popular brasileira e sua influência para a juventude periférica, sobretudo na época de minha adolescência. Na política, ele mesmo se define como alguém de esquerda e tem uma ligação bastante próxima com lideranças do Partido dos Trabalhadores, mais especificamente com Lula, pois julga que ele foi o responsável pela melhoria de vida das pessoas em situação de maior vulnerabilidade. No entanto, fez duras críticas quando necessário, como no famoso discurso, num comício do PT, antes das eleições de 2018.
No entanto, não penso que Brown, pelos motivos que apresento, reiteradas vezes, nos artigos que elenquei acima, seja um esquerdista, digamos, aplicado e ideologicamente coerente, que conhece o pensamento da esquerda, concorda e o reproduz integralmente. Ele tem, por incrível que pareça para alguns, posições bastante conservadoras em algumas coisas – por exemplo, quando disse, numa entrevista para o seu amigo Thaíde: “quando eu passo por uma dificuldade e eu não consigo encontrar saída no ʻhojeʼ, eu volto no passado e encontro; eu volto lá no começo”. Considero que sua grande vantagem, que serve perfeitamente para sua arte, é sua aguçada intuição e a capacidade de transformar em poesia aquela visão profunda do senso comum a respeito da periferia. Ele pensa, tipicamente – quando não se deixa interferir ou influenciar pelo pensamento acadêmico grosseiramente assimilado –, como uma pessoa de periferia, com a vantagem de ser, como um bom artista, uma espécie de para-raios dessa realidade. E tomo senso comum aqui na expressão exata e virtuosa do termo, como bom senso, como um tipo de percepção ancestral a respeito de sua própria vivência e daqueles que o cercam. Nisso ele é imbatível.
O problema começa quando ele tenta dar respostas intelectuais para problemas mais complexos; comentários, em geral, carregados de sentimentalismo e ideologicamente dirigidos. E o que me levou a essa reflexão foi justamente um desses momentos, que me chegou através das redes sociais. Numa entrevista com a ex-presidente Dilma Rousseff, Brown questiona sobre a crise que afetou o Brasil naquele período e que levou ao processo de impeachement de Dilma. Disse ele:
“Então, muitas vezes ouvi as pessoas falando assim – isso antes do impeachment, na época da tal da pedalada –, se falava da tal crise, e às vezes eu estava reunido com alguns amigos ali na favela, e falava: ʻpô, mano, na moral, tô ligado que pega mal falar isso, mas eu não estou vendo crise, o shopping tá lotado, nem é dia de pagamento. Lá também tá lotado, e fim de semana, todo mundo comendo, bebendo à vera, na rua; o Brasilzão a milhão. Eu ficava procurando onde tava a crise’.”
Duvido que Brown tenha clareza do que está falando ou mesmo do período que está mencionando. Peço licença ao leitor, mais uma vez, para reproduzir um artigo meu, esse de 2019, com uma crítica ao que disse o técnico de futebol Roger Machado, na mesma linha de Brown. À época, questionei:
“Gostaria que Roger Machado [e Brown] me respondesse[m] quão gloriosas foram essas políticas públicas se, atualmente, os dados não são nada animadores. Se desde 2016 os números mostram que a miséria no Brasil aumentou – e continua aumentando; se o número de pobres aumentou; se, como ele mesmo diz, os jovens negros são os que mais morrem – e, como ele não diz, mais matam – no Brasil; se os dados da educação, em 2016, já apresentavam estagnação e o Brasil figurava entre os piores colocados nos testes internacionais; se o endividamento só cresce entre os mais pobres; se, apesar do aumento em quantidade, a qualidade das universidades brasileiras vem piorando ano após ano; se a maioria dos jovens negros cresce em lares disfuncionais por conta de ideologias que espalharam, na periferia, que a família era uma construção opressora da burguesia – como analiso neste artigo. Que mundo de maravilhas é esse onde Machado [e Brown] viveu [viveram] nos últimos 15 anos e que, somente agora, nesse governo que ele deve odiar – e pelo qual também não nutro nenhuma simpatia –, piorou?”
Vale dizer que, financeiramente, o ano de 2015 foi o pior da minha vida. É isso que dá um artista tentar falar sobre o que, de fato, não conhece por pura afinidade ideológica. Brown já disse outras bobagens recentemente, como dizer que não gosta de assistir ao futebol europeu por conta da colonização, uma pseudocrítica completamente desconectada não somente da realidade histórica, como também sem um traço sequer de compreensão de economia. A opinião de um artista sobre política, como disse o amaldiçoado Spacey, não vale de nada – pelo menos na imensa maioria das vezes; essa não é a sua área. Se muito, fará bem a sua arte – e poderá falar sobre política nela. Às vezes, nem isso.
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