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“[…] Eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali / É natural pra mim, infelizmente / A lei da selva é traiçoeira, surpresa / Hoje você é o predador, amanhã é a presa / Já posso imaginar, vou confirmar / Me aproximei da multidão e obtive a resposta / Você viu aquele mano na porta do bar? / Ontem a casa caiu com uma rajada nas costas.” (Racionais MCs, Mano na Porta do Bar)
O Brasil é um País curioso. Somos, desde há muito, reféns do crime organizado. Não é de hoje, nem de ontem. Caso o leitor tenha assistido aos recentes documentários sobre o Jogo de Bicho no Rio de Janeiro – Doutor Castor e Vale o Escrito, na GloboPlay – e sobre a já internacional facção paulista Primeiro Comando da Capital – PCC: Poder Secreto, na Max –, não terá dúvidas de que o processo para que o Brasil se torne um narcoestado está acelerado. Nos dois maiores centros urbanos do Brasil, a situação é desesperadora.
Somos, desde há muito, reféns do crime organizado
Entretanto, foi só uma vereadora paulistana protocolar um Projeto de Lei que visa a combater a apologia ao crime organizado, que fomos obrigados a assistir, nas redes sociais (sempre elas!), pessoas dizendo se tratar de um ataque à cultura de periferia ou à liberdade de expressão. Mas não só. A vereadora Amanda Vettorazzo (União), autora do projeto, foi ameaçada de morte e de violência sexual por parte da autointitulada “Tropa de 22”, aparentemente comandada pelo pernóstico funkeiro Oruam, filho de ninguém menos que Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, apontado como um dos principais líderes da facção criminosa carioca Comando Vermelho, preso desde 1996.
O objetivo do Projeto de Lei é claro: “Proíbe a contratação de shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas e dá outras providências”. Em seu Art. 5º, especifica ainda mais: “Fica proibida à Administração Pública Municipal, direta ou indireta, a contratar shows, artistas e eventos abertos ao público infantojuvenil que envolvam, no decorrer da apresentação, expressão de apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas”. Ou seja, não se trata de proibir artistas (ou pseudo-artistas) de realizarem suas apresentações. Mas de proibir o município de contratar shows, destinados ao público infantojuvenil, de artistas cujas músicas façam apologia ao crime organizado e ao uso de drogas.
Alguns exemplos podem nos ajudar. A música Faixa de Gaza, de um tal MC Orelha – inclusive cantada por Oruam num festival de música em 2023 –, diz: “Na Faixa de Gaza, só homem-bomba / Na guerra é tudo ou nada / Vários titânio no pente / Colete a prova de bala / Nós desce pra pista pra fazer o assalto / Mas tá fechadão no doze / Se eu tô de rolé 600 bolado / Perfume importado pistola no coldre”. E no refrão: “Por isso eu vou mandar / Por isso eu vou mandar assim / Comando Vermelho RL até o fim / É vermelhão desde pequenininho / Só menor bolado nas favela do baixinho”.
Já a música 300 no 7, cantada pelos ilustres MC GP, MC J Vila e MC Luuky, que faz, claramente, apologia ao crime – “7” é a corruptela de “171”, artigo que se refere ao crime de estelionato no Código Penal Brasileiro –, inicia assim: “Arranquei 300 no 7 / Aqui faz e acontece / Busca as duas no flat e joga na Macan / Ativei o modo esquece / Travei seu cartão Black / Gastei lá no S / Quero só Macallan”. E o indefectível Poze do Rodo tem uma música, Fala que a tropa é Comando Vermelho, que eu não preciso dizer mais nada.
Eu, que sempre fui fã de hip hop, sei que há músicas que fazem uma certa exaltação de um certo modo de vida periférico, que vive ladeado pelo crime – a thug life dos rappers americanos –, por gangues e até pelo uso de maconha (nunca vi letra de rap exaltando outras drogas). Entretanto, não conheço letra de rap que exalte a criminalidade, mesmo porque o hip hop é uma cultura consciente de que são exatamente as drogas e o crime que mais vitimam a população periférica. Músicas como Negro Limitado – já analisada por mim aqui, nesta Gazeta do Povo –, Mano na Porta do Bar (citada em epígrafe), Fim de Semana no Parque e O Homem na Estrada, do Racionais MCʼs, por exemplo, demonstram, claramente, quanto o crime não compensa e o uso de drogas é prejudicial. As músicas Mova-se, do grupo DMN, e Se Tu Lutas, Tu Conquistas, do SNJ, são verdadeiras odes à ética de superação. Até músicas como Essa é a Lei, de Ndee Naldinho, que é explícita sobre esse modo de vida que beira ao criminoso, está circunscrita ao modo como traidores são tratados, não há facções criminosas sendo exaltadas.
Obviamente que essas contradições podem ser discutidas e a diferença entre liberdade de expressão e exaltação de facções criminosas ou da criminalidade em si deve ser bem clara para todos. Mas o projeto da Amanda Vettorazzo não versa sobre isso, mas de financiamento, com dinheiro público, de shows que fazem apologia do crime organizado. É cristalino. Mas a sanha de Oruans, Pozes do Rodo e outras excrescências culturais que surgem vez por outra, não podem nos confundir. Cumpre a nós, enquanto sociedade, zelarmos por nossas crianças e jovens, pois o combate ao crime organizado começa justamente na cultura.