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Todos os pesquisadores da psicopatia destacam três qualidades principais com relação à sua variação mais típica: a ausência de um senso de culpa pelas ações antissociais, a inabilidade de amar verdadeiramente e a tendência para ser tagarela, de um modo que se desvia facilmente da realidade. (Andrew Lobaczewski, Ponerologia – psicopatas no poder)
Em 26 de janeiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro, que estava em viagem à Índia, ao ser questionado sobre os riscos de contágio do novo coronavírus, disse: “Estamos preocupados, obviamente, mas não é uma situação alarmante [...] Estamos nos preparando para que, se tivermos[contágio] no Brasil, que seja atenuado”. Até aquele momento, tínhamos menos de 2 mil casos na China (56 mortos) e nenhum no Brasil. Em 9 de março, disse: “Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus”. Em 13 de março, após mais de 5 mil mortes pelo mundo e a confirmação de 171 casos no Brasil, os governos estaduais e municipais decidem suspender gradualmente as aulas e propor medidas de distanciamento social a partir do dia 16. Mas em 15 de março, em meio à apreensão geral com o aumento de casos confirmados, Bolsonaro apoia e participa de uma manifestação pró-governo e contra o Congresso e o STF. Promoveu aglomeração, tirou fotos e sorriu para seus apoiadores como se nada estivesse acontecendo.
Em 22 de março, em entrevista à Rede Record, Bolsonaro mais uma vez minimizou a gravidade da pandemia e, comparando com o número de mortes por H1N1 no ano anterior (800), diz que não passaríamos desse número em relação à Covid-19. Em 24 de março fez o seu primeiro pronunciamento em rede nacional, disse que era preciso conter “o pânico e a histeria” em relação à doença; atacou a imprensa, plantou o falso dilema “economia vs. vidas”, declarou, imperativamente, que deveríamos “voltar à normalidade” e relativizou a gravidade da doença usando a Itália como exemplo – “um país com grande número de idosos e com o clima totalmente diferente do nosso”. Vale lembrar que a Itália teve 97.945 mortos até agora (1.600/milhão de hab.), enquanto nós já passamos dos 255 mil (1.200/milhão de hab.).
Bolsonaro abandonou a população do país à morte. Não dá uma declaração que demonstre preocupação, nem tranquiliza a sociedade
De lá para cá, não foram poucas as vezes em que Bolsonaro minimizou a pandemia do novo coronavírus, que já matou, em todo o mundo, mais de 2,5 milhões de pessoas. Com destaque para as desgraçadamente antológicas “não sou coveiro”, de 20 de abril de 2020, e “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, de 28 de abril, suficientes para causar espanto até no mais insensível dos mortais, suas declarações têm sido um verdadeiro desastre em todos os sentidos; e ele segue ignorando completamente que sua função, como chefe do Executivo nacional, era a de coordenar os esforços no combate à pandemia, servindo como exemplo não só de capacidade de liderança, como também de exemplo moral para a nação. E não importa se ele, Jair Bolsonaro, pessoalmente, duvida da gravidade da pandemia; como presidente ele representa uma instituição, a Presidência da República, e é o líder máximo do nação, que, a exemplo do que Boris Johnson, o primeiro ministro do Reino Unido, diz de Winston Churchill em sua biografia – um líder muito admirado por conservadores no mundo inteiro – deveria ser “a alavanca do destino” a conduzir o país no enfrentamento de uma crise inédita e sem precedentes..
Mas não, Bolsonaro escolheu a covardia do confronto ininterrupto, pois seu governo é um governo de ruptura institucional – apesar de ter sido absolutamente absorvido pelo sistema que intentava combater –, não de soluções. Numa sanha por colecionar inimigos – característica de quem, autoritariamente, enxerga em qualquer adversário político um traidor a ser combatido e derrotado –, antagoniza com todos aqueles que lhe cobram uma postura de liderança que conduzisse o país a uma solução da grave crise que vivemos. No entanto, o presidente aposta na minimização do problema, incentiva o uso de medicamentos sem comprovação científica e – a pior de todas as atitudes nesse momento, que nos coloca numa situação gravíssima no pior momento da pandemia desde o seu início – não só combateu frontalmente a vacinação, como não comprou vacinas em 2020, ação que evitaria a falta de doses pela qual estamos passando, sendo essa a única garantia da imunidade de rebanho e, consequentemente, da volta do país à tão sonhada normalidade.
Enquanto isso, a pandemia avança desenfreadamente um ano após o seu início, agora com mutações mais violentas do vírus, e o presidente viaja inaugurando obras de apelo populista, salpicadas com decisões populistas e intervenções estatizantes que, fatalmente, cobrarão um alto preço da população brasileira. Ou seja, Bolsonaro abandonou a população do país à morte. Não dá uma declaração que demonstre preocupação, não tranquiliza a sociedade, antes mantém a tensão com os governos dos estados – inclusive disseminando notícias falsas –, enquanto seu ministro da Saúde – o terceiro só durante a pandemia e o único que, não sendo médico, aceitou desobedecer a ciência para obedecer cegamente o presidente –, além de ter de se explicar à Polícia Federal por acusação de descaso com a situação dramática de Manaus, faz promessas vazias de vacinação quando as doses já deveriam ter sido garantidas há meses.
Tudo isso faz de Jair Bolsonaro um genocida – como muitos têm afirmado? Essa questão envolve uma distinção semântica que gera discussões, mas isso me fez lembrar do caso mais emblemático em que essa discussão se dá, o Holodomor, o massacre ucraniano. Óbvio que os amantes do presidente brasileiro irão dizer que a comparação é descabida; no entanto, o que proponho aqui é uma análise do método – o abandono consciente –, não seus resultados efetivos.
No início dos anos 1930 Josef Stalin decidiu mudar o sistema de exploração feudal do campesinato. Com isso, “o regime impôs cotas de grãos exorbitantes, muitas vezes confiscando os estoques até as últimas sementes”, informa Irene Mycak, porta-voz do Holodomor Awareness Committee, de Toronto, reproduzido no artigo de Tiago Cordeiro, especial para esta Gazeta do Povo. “O território da Ucrânia foi isolado por unidades armadas para evitar que as pessoas pudessem procurar por comida em regiões vizinhas. O plano de Stalin, em 1932, era exterminar os fazendeiros ucranianos por meio da fome e, assim, quebrar o movimento nacionalista que havia iniciado nos anos 1920 e buscava devolver à Ucrânia o status de Estado independente”. O acachapante Livro Negro do Comunismo afirma que
Tendo sido obrigados a entregar sob ameaça, ou mesmo sob tortura, suas magras reservas, não tendo nem os meios nem a possibilidade de comprar o que quer que seja, milhões de camponeses das regiões agrícolas mais ricas da União Soviética foram entregues à fome e não tiveram outra saída a não ser partir para as cidades. Ora, o governo acabava de instaurar, em 27 de novembro de 1932, o passaporte interior e o registro obrigatório para os citadinos, visando impedir o êxodo rural, “liquidar o parasitismo social” e “combater a infiltração dos elementos kulaks nas cidades”. Diante dessa fuga de camponeses em direção à sua sobrevivência, foi editada, em 22 de janeiro de 1933, uma circular que condenava a uma morte programada milhões de famintos.
Ou seja, Stalin não agiu diretamente, com armas, para matar o povo ucraniano. No entanto, ao encurralá-los e lançá-los à fome mortal por não concordarem com seu projeto de exploração, negou, como diz a definição da Assembleia de ONU de 1946, o “direito à existência de inteiros grupos humanos”, assassinando, indiretamente, por abandono sistemático, calculado e repressivo, milhões e milhões de pessoas.
Não sei se o que Bolsonaro faz é grave a esse ponto. Entretanto, é forçoso admitir que seu comportamento infantilizado e completamente irresponsável – a não ser para seus apoiadores mais fanáticos e os oportunistas empedernidos –, com traços bastante característicos de psicopatia, demonstram um desprezo absoluto pela vida dos brasileiros, por quem não aderiu à sua narrativa conspiracionista, que, escapista em essência, é típica de quem não tem capacidade para encarar de frente os problemas. E, convenhamos, sua posição é confortável, pois seu único objetivo é manter sua base eleitoral polarizada até 2022, quando pretende disputar uma eleição sem concorrentes. Desse modo, na contramão do mundo, se recusa a tratar, com a responsabilidade que seu cargo exige, da maior crise sanitária do século e, por ter um projeto de poder pessoal (se não familiar), condena, indiretamente, centenas de milhares de brasileiros à morte.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos