“Our freedom of speech is freedom or death
We got to fight the powers that be”. (Public Enemy)
Já disse em outras oportunidades que a minha preocupação com as questões raciais no Brasil estavam praticamente apaziguadas até ver uns jovenzinhos militantes naquela famigerada invasão, em 2015, de uma aula da USP para “debater” cotas raciais. Algum tempo depois, no mesmo ano, outra vergonhosa “intervenção” ocorreu no interior de São Paulo. “Cota é só o começo, porque cada um de vocês nos deve até a alma”, dizia, com o dedo em riste, uma garota que ostentava chinelos de dedo e cabelos desgrenhados – talvez para fingir pobreza, quando, na verdade se descobriu, algumas horas depois, que a moça tinha estudado em escola particular e viajado para o exterior mais de uma vez.
Não só o exagero daquelas reivindicações me pareceu absolutamente inadequado, mas também a estética, que é horrenda, desarticulada e infantil, carregada de um sentimentalismo da pior espécie. Coisa feita por gente cuja incompreensão da sociedade beira o ridículo.
Não é honesto que pessoas pensem que alguém lhes deve algo pelo passado não vivido, pelo mal não perpetrado, pelo pecado alheio; que é possível evocar um direito com base no dever de quem já não pode garanti-lo; que os filhos tenham problemas nos dentes por conta das uvas verdes comidas por seus pais (Ez 18). Não é razoável que, diante da complexidade absurda com a qual todas as civilizações da história humana foram constituídas, um grupo busque “reparação” fazendo um recorte malicioso e específico de sua situação. É, no mínimo, constrangedor.
Como cobrar pelos 700 anos de domínio mouro na Península Ibérica, com os africanos escravizando europeus? Como pedir reparação pela escravidão romana? Qual o limite desse ato de corrigir, no presente, erros de um passado distante?
Na verdade, o que ocorre é que o século 20 foi o século das ideologias (Jean Pierre Faye), ou, nas palavras de Julien Benda em A traição dos intelectuais, foi o século das paixões políticas – em nosso caso, paixões de raças. Foi o século no qual os intelectuais aderiram às paixões leigas e as teorizaram, criando ideologias. E tais ideologias organizaram os ódios difusos, tornando-os, embora homogêneos, impessoais.
Quem faz uma análise precisa desse ódio ideológico é o filósofo romeno Gabriel Liiceanu em sua obra Do ódio, publicado pela Vide Editorial. Diz Liiceanu que, quando o ódio se torna impessoal, o sujeito do ódio se dilui; desse modo, não se odeia mais um indivíduo, mas um grupo: “odeia-se a alguém como: odeias alguém como burguês, como hebreu, como cigano, como intelectual, como islamita, como americano, como húngaro etc.”. Eu acrescento: como branco ou negro. O ódio racial é um dos mais devastadores que existe, e a ideologia racialista já provocou muitos genocídios.
O ódio racial procura desvalorizar e rejeitar o Outro, e isso gera, naturalmente, os movimentos de resistência e autovalorização. Provavelmente foi nos Estados Unidos que surgiu a mais autêntica, dinâmica e rentável cultura étnica. O poderosíssimo elemento cultural dos negros americanos – impulsionado pela resistência à escravidão e ao subsequente apartheid que, em alguns estados, durou até a década de 1960 – é, hoje, marca característica da cultura americana como um todo. Na música: do gospel ao jazz, do blues ao R&B, do funk ao rap; no cinema: de Oscar Micheaux ao Blaxspoitation e Spike Lee; nas artes plásticas: de Henry Ossawa Tanner a Jean-Michel Basquiat. O movimento Black Power, com sua poderosa estética da soul music, dos cabelos crespos e dos punhos cerrados.
Mas, não obstante sua grande contribuição cultural, tais movimentos não deixam de criar seus radicalismos. E aquilo que deveria ser uma luta por integração torna-se um culto ao separatismo. Os movimentos pan-africanistas e supremacistas negros (como a Nação do Islã) são alguns exemplos.
No Brasil, sobretudo a partir da década de 1970, o movimento negro acompanhou e copiou muito do movimento americano. Tony Tornado, Tim Maia e Jorge Ben, na música, são destaques.
No entanto, pela tendência entrópica de todos os movimentos culturais e políticos, vivemos, provavelmente, a pior fase do movimento negro – americano e brasileiro. Muito influenciados academicamente por ideologias cada vez mais absurdas e vitimistas – tais como os estudos identitários, o feminismo negro e o multiculturalismo –, o engajamento tomou o lugar da criatividade e o resultado são situações como aquelas que citei no início deste artigo. Os tribunais raciais se espalham – julgando quem é digno de ser negro e quem não é –, e um clima de ódio e ressentimento vai se espalhando, com a anuência, em nome do politicamente correto, de acadêmicos, de artistas e da imprensa.
Para dar um exemplo cultural, esses dias revi o filme Faça a coisa certa, de 1989, um clássico de Spike Lee. Há muitos anos não fazia isso e fiquei surpreso. Lee demonstra nesse filme, que se passa num único dia, no Brooklyn, em meio a negros, italianos, latinos e coreanos, toda a complexidade das relações raciais na América – país de imigrantes, é preciso dizer. Todos os discursos são confrontados, com doses finas de humor e crítica. E tudo se encaminha para um final trágico extremamente reflexivo. Não há proselitismo gratuito, e até os engajamentos radicais são questionados. Nem se falava em empoderamento feminino, e Spike Lee já iniciava seu filme com Rosie Perez dançando energicamente, com luvas de boxe e cheia de atitude, ao som de Fight the Power, do Public Enemy. Não há mocinhos e bandidos, todos são inocentes e culpados. De certo modo, o filme retrata a tensão entre o ativismo de Malcolm X e Martin Luther King Jr. (citados textualmente no final). A trilha sonora, encabeçada pela já citada Fight the Power, é excepcional. A fotografia, de Ernest Dickerson, e a direção de Spike Lee são dignas de nota. E, no elenco: Danny Aielo, Samuel L. Jackson, Martin Lawrence, John Turturro, Giancarlo Esposito, Spike Lee e o saudoso casal Ossie Davis e Ruby Dee – que foram ativistas pelos Direitos Civis ao lado do Dr. King.
Infelizmente, o Spike Lee de hoje se ocupa mais com proselitismo político do que qualquer outra coisa, mas Faça a coisa certa é um filme honesto ao tratar do racismo, sem vitimismo ou demonizações; e, certamente, foi uma de minhas referências na adolescência.
Agora, caro leitor, compare Faça a coisa certa com a série queridinha dos jovens ativistas de hoje: Cara Gente Branca, produzida pela Netflix. O nome já não é lá essas coisas. E a série é um panfleto ideológico morno, que exalta discursos identitários e esse falso engajamento de grupos como o Black Lives Matter. Bem a cara dessa militância sentimental, inculta e raivosa que povoa as redes sociais atualmente, exercendo livremente o seu racismo com um álibi inacreditavelmente estúpido: “não existe racismo reverso”. A tensão, nesse caso, é falsa, pois não está calcada na realidade. São jovens cheios de privilégios lutando por narrativas criadas academicamente. Colorismo? Solidão da mulher negra? Apropriação cultural? Ora, faça-me o favor!
Não há nada inovador em Cara Gente Branca. Da mesma forma que não há nada de tão escandaloso no clipe This is America, de Childish Gambino (ou Donald Glover), que o NWA já não tenha feito em 1988. No fim das contas, essa falta de criatividade e originalidade é o reflexo de um movimento que agoniza em meio a ideologias europeias que surgiram para enfraquecê-lo, se não para destruí-lo. Para misturar a autenticidade de sua existência às suas narrativas de dominação político-partidária.
Como disse Alberto Guerreiro Ramos, em Patologia social do negro brasileiro: “Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados ‘antropólogos’ e ‘sociólogos’. Como vida ou realidade efetiva, o negro vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa é o negro-tema; outra, o negro-vida”.
Mas tudo o que essa militância de hoje faz, é esquecer o negro-vida e tentar dar vida ao negro-tema. Não vai dar certo, nunca.
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