Vivemos numa caixa de espaço e tempo. Filmes são janelas em suas paredes. Eles nos permitem entrar em outras mentes não simplesmente no sentido de nos identificarmos com os personagens – embora essa seja uma parte importante –, mas vendo o mundo como outra pessoa o vê. (Roger Ebert)
Tudo o que importa é que o espectador possa dizer, ao mesmo tempo, que o material básico do filme é autêntico enquanto o filme também é verdadeiramente cinema. Portanto, a tela reflete o fluxo e refluxo de nossa imaginação, que se alimenta de uma realidade pela qual planeja substituir. Ou seja, a história nasce de uma experiência que a imaginação transcende. (Andre Bazin)
Já não é novidade para ninguém que tenha tido contato com o que digo e escrevo – com meu trabalho ou mesmo com minha biografia, portanto – que tenho defendido, seguindo a tradição impulsionada por autores como C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien, que a imaginação é o meio mais perfeito e adequado para a transmissão primária de conhecimentos. Digo impulsionada porque tais autores, evidentemente, não a criaram, mas compreenderam profundamente aquilo que, no mundo antigo, os aedos gregos, os profetas hebreus e os griots africanos, por exemplo, já haviam compreendido: que, para usar as palavras de Lewis, “a imaginação é o órgão do sentido”; e que é ela, a chamada imaginação moral, que nos torna capazes de assimilar e refletir acerca do mundo que nos cerca. Tal afirmação corrobora com o que nos disse também, há mais de dois milênios, o grande Aristóteles em De Anima: “pois a imaginação é algo diverso tanto da percepção sensível como do raciocínio; mas a imaginação não ocorre sem percepção sensível, e tampouco sem imaginação ocorrem suposições”.
Com o avanço das artes audiovisuais a formação do imaginário ganhou um auxílio tão poderoso quanto o teatro grego no passado
Também é ponto pacífico que, desde a invenção da escrita, a literatura tem sido a grande propulsora da imaginação moral. No entanto, assim como, diz Russell Kirk, “a literatura pretende despertar e fortalecer a existência e renovar o contrato da sociedade eterna”, com o avanço das artes audiovisuais a formação do imaginário ganhou um auxílio tão poderoso quanto foi o teatro grego no passado. E tal qual a insubstituível literatura, o cinema tem sido, modernamente, para além do entretenimento, um veículo das “coisas permanentes”, de verdades eternas transmitidas, estética e imaginativamente, por meio de grandes mestres da imagem e das narrativas. E é por isso que tenho insistido, caríssimo leitor, em dividir contigo aqueles filmes e diretores que foram fundamentais em minha formação não só como um apreciador da arte do cinematógrafo, mas como professor e, sobretudo, como ser humano. Neste artigo gostaria de refletir brevemente sobre o cineasta cuja obra – mais especificamente, um filme – mais me impactou: Carl Theodor Dreyer.
Dreyer, nascido em 3 de fevereiro de 1889, foi um homem obcecado pela perfeição. Filho bastardo de um fazendeiro dinamarquês com sua empregada, foi colocado para adoção e passou dois anos de orfanato em orfanato até que a família Dreyer o adotasse. Seu relacionamento com os pais adotivos não foi dos melhores, pois estes viviam a cobrá-lo pela benfeitoria de terem-no adotado. Ainda jovem, sai de casa e consegue trabalho como jornalista, fazendo também uns extras para a Nordisk Film, editando cartazes para filmes mudos. Iniciou sua carreira como diretor em 1919, com Præsidenten (O Presidente), e fez alguns filmes de relativo sucesso, como Blade af Satans bog (Páginas do livro de Satã), de 1921, e Mikaël (Mikael), de 1924.
Mas foi em 1928 que ele se notabilizou, com a obra-prima do cinema mudo La Passion de Jeanne d'Arc (A paixão de Joana D'Arc), com a lendária e visceral atuação de Renée Falconetti no papel da Virgem de Orleans. O filme, feito a partir das pesquisas de Dreyer aos documentos originais do julgamento de Joana D’Arc, é de um realismo impressionante; Falconetti incorporou a personagem de maneira absolutamente magistral, e os closes em seu rosto desesperado – assim como a crueldade de seus executores – são inesquecíveis. Na descrição precisa do notável crítico Andre Bazin em The Cinema of Cruelty:
A história de Joana, como Dreyer a apresenta, é despojada de qualquer referência anedótica. Torna-se um puro combate de almas. Mas essa tragédia exclusivamente espiritual, na qual toda ação vem de dentro, é totalmente expressa pela face, uma área privilegiada de comunicação. Eu devo explicar isso mais. O ator normalmente usa seu rosto para expressar seus sentimentos. Dreyer, no entanto, exigiu algo mais de seus atores do que de atuar. Visto de muito perto, a expressão dos atores racha […]. Aqui reside o rico paradoxo e a lição inesgotável deste filme: que a extrema purificação espiritual é liberada através do escrupuloso realismo da câmera como microscópio. Dreyer proibiu toda a maquiagem. As cabeças dos monges estão literalmente raspadas. Com a equipe de filmagem chorando, o carrasco corta o cabelo de Falconetti antes de levá-la à estaca […]. Somos gratos a Dreyer por sua tradução irrefutável diretamente da alma.
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Vampyr (O Vampiro), de 1932, o levou a um colapso nervoso pelas enormes dificuldades de produção, tendo de ficar internado por três meses; foi o último filme mais ou menos sequencial que Dreyer faria. Passando por enormes dificuldades para filmar – seus filmes, hoje clássicos, foram fracassos de bilheteria –, só voltaria aos cinemas em 1943, com o soberbo Vredens Dag (Dias de Ira), sobre o julgamento e morte, na fogueira, de uma mulher acusada de bruxaria. O filme, como diz o cineasta francês François Truffaut, tem “a mais bela imagem de nudez feminina na história do cinema – a nudez menos erótica e mais carnal – o corpo branco de Marthe Herloff, a velha queimada como uma bruxa”. O trabalho de Lisbet Movin, que interpreta a filha da mulher acusada, uma jovem que se apaixona pelo filho de seu esposo, um pastor bem mais velho do que ela, também é digna de nota.
Em 1952 torna-se gerente do prestigiado Dagmar Theater, em Copenhague, trabalho que manteria até sua morte e que lhe ajudou a se manter estável financeiramente. Em 1955, após uma série de curtas e pequenos documentários, que ele filmaria aquele que estou sempre a ponto de cometer o exagero de afirmar que se trata da mais bela e profunda obra cinematográfica de todos os tempos: Ordet (A Palavra). Há muitos anos que tenho vontade de escrever algo sobre esse filme, mas uma espécie de pudor, de medo de não macular uma obra-prima tão magnífica, não me permitia. Resolvi ceder ao impulso após revê-lo no primeiro dia do ano.
Já perdi a conta de quantas vezes vi esse filme, mas sempre me emociono muito por dois principais motivos. Primeiro, porque sou absolutamente fascinado pelo modo como Dreyer conduz a sua “fábula metafísica”, como chama Truffaut, que emenda: “Cada imagem em Ordet possui uma perfeição formal que toca o sublime, mas reconhecemos Dreyer por mais do que uma ‘esteta’ […] Nenhuma imagem escapa à vigilância de Dreyer; ele é certamente o diretor mais exigente de todos desde Eisenstein, e seus filmes finais se parecem exatamente com o que eles eram quando ele os concebeu. Não há imitação ativa dos atores em Ordet; eles simplesmente definem seus rostos de uma maneira particular e, desde o início de cada cena, adotam uma atitude estática”. Segundo porque, aos olhos daqueles acostumados com a exacerbação contemporânea, o filme beira o imobilismo. Porém, o que Dreyer faz é criar uma atmosfera dramática na qual o tempo da narrativa é um elemento fundamental; a ação parece se desenvolver numa escala de tempo diferente da natural, e o diretor nos toma pela mão e vai nos permitindo uma purificação do espírito a cada cena para, no final, arrisco dizer, pisarmos em solo sagrado.
O cinema tem sido, para além do entretenimento, um veículo das “coisas permanentes”, de verdades eternas transmitidas, estética e imaginativamente, por meio de grandes mestres da imagem e das narrativas
Andre Bazin faz uma crítica bastante apurada do filme, quando diz: “é verdade que raro é o trabalho cinematográfico que pode competir com obras-primas de pintura, música ou poesia. Mas quando se trata de um filme como Ordet, nenhum outro nome ou título pode ser mencionado sem parecer ridículo. Dreyer está em pé de igualdade com os maiores mestres”. E vai além, de maneira categórica:
De certa forma, Ordet incorpora uma estética quase naturalista. Mas esse rigoroso material dramático parece ser iluminado por dentro por sua realidade última, e essa imagem é impressa em minha mente pelo modo como Dreyer usa a luz. A encenação de Ordet é, antes de tudo, uma metafísica do branco, ou seja: uma progressão natural do cinza para o preto puro. O branco é a base, o ponto de referência absoluto. O branco é a cor da morte e da vida. Ordet, de certa forma, é o último filme em preto-e-branco, aquele que diz tudo.
A história é uma adaptação – ao que parece, bastante fiel – de uma peça do dramaturgo e pastor luterano Kaj Munk, que resistiu criticamente à ocupação alemã da Dinamarca durante a Segunda Guerra e foi morto pelos nazistas, em 1944. Antes de Dreyer, o cineasta sueco Gustaf Molander filmou uma adaptação da peça. Trata-se, mal resumindo, de uma história de amor e fé – e, de certo modo, uma crítica ao cientificismo. Na fazenda Borgen vivem o patriarca Morten Borgen, seus filhos Mikkel, Johannes e Anders, e sua nora Inger, esposa de Mikkel. Johannes, o filho do meio, enlouqueceu estudando Teologia e agora se diz o próprio Jesus Cristo. Mikkel, o mais velho, é um homem bom e prático, mas que perdeu a fé de seus pais e da esposa, uma mulher bastante devota, amável e amada por todos. Anders, o caçula, está apaixonado pela filha do alfaiate Peter Petersen, que professa uma fé pietista e sorumbática, em contraposição ao alegre luteranismo dos Borgen; tal diferença dogmática torna, na visão dos seus pais, o relacionamento absolutamente inviável.
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Dreyer disse como a peça foi concebida e a deu algumas razões de sua escolha ao escritor Jan Whal, que passou uns dias em companhia do diretor durante as filmagens de Ordet, e a registrou no livro Carl Theodor Dreyer and Ordet – my summer with the danish filmmaker: “Kaj Munk e eu temos algo em comum: nós dois éramos órfãos. Seus professores eram pastores. Em particular, sua mãe era muito religiosa e foi ela quem escolheu sua ocupação. Ele se tornou pastor da igreja em Vedersø 30 anos atrás. Ele escreveu todas as suas peças e as enviou ao Teatro Real de Copenhague. Não recebendo resposta do teatro, reclamou com um crítico, que aconselhou o impaciente dramaturgo a voltar para casa e escrever uma peça sobre os agricultores dinamarqueses. Ele fez. Ele escreveu A Palavra em seis dias [...]. O ponto principal da peça está no milagre”. E há outra curiosidade relatada por Dreyer – que expõe mais um pouco do roteiro –, relacionada à minha outra paixão, o café:
Há algo no café que acalma os dinamarqueses e os coloca em contato com Deus. Nós nos tornamos filosóficos sobre isso. O café é o principal pilar da Jutlândia, em particular; os agricultores gostam com um pouco de conhaque. Aos domingos, eles se reúnem nas casas um do outro para discutir religião – às vezes para ler poesia e peças de teatro. [...] Você verá que eles não esquecem os ensinamentos de [Nikolaj Frederik Severin] Grundtvig [teólogo, pastor, poeta, filósofo, historiador e educador dinamarquês], que foi o benfeitor do povo do campo. Nos dias de inverno, que duram muito tempo aqui na Jutlândia, uma xícara quente é um bálsamo; eles fazem essa comunhão todos os dias. Kaj Munk conhecia seu povo. A peça A Palavra começa com uma cena em que a família toma café. É natural que eles se sentem à mesa com o café e os problemas. Isso é perfeito para os problemas. Isso é perfeito para ser mostrado no palco. No entanto, em um filme você deve mostrar – em vez de fazer a família falar sobre Johannes, eu dirijo a ação. A família acorda no meio da noite, Johannes desapareceu após de sair da cama e passar pela porta. Seu pai, o velho Borgen, e seus irmãos, Mikkel e Anders, o seguem pelas dunas. Numa colina na charneca, Johannes prega um sermão a uma multidão imaginária; o pai e os irmãos se esforçam para ouvir. Eu acho que este é um começo natural também. Peguei essa mudança com Fru Munk [viúva do dramaturgo]; verifiquei tudo com ela, buscando aprovação. Porque quero ser justo com as intenções de Kaj Munk. O significado deve ser inalterado – devo manter puro o sabor do original. E arremata: A Palavra pode ser feito de apenas uma maneira: crendo. Kaj Munk não elevou somente Vedersø, mas toda a Dinamarca. Então, eu quero que esse filme leve seu espírito ao redor do mundo.
Não há muito mais há dizer de Ordet (é assim mesmo, com seu nome original, que ele é mais conhecido) sem que eu estrague o impacto naqueles que o verão pela primeira vez por minha indicação – assim espero. Infelizmente, como tenho repetido, nem tudo está disponível em streaming, é preciso um certo esforço para assistirmos a obras como essa; comprar o DVD, talvez. Assim como não há filmes de Ingmar Bergman ou Robert Bresson nos provedores – pelo menos até o momento; e assim como nem todos os clássicos da literatura estão disponíveis em versões digitais. Mas tenho certeza que o esforço será recompensado.
Carl Th. Dreyer, um gênio do cinematógrafo, morreu em 20 de março de 1968, mas nos deixou um legado imortal. Seu cinema, com sua lentidão meditativa, é um excelente modo de educarmos nossa imaginação para aquilo que é mais importante no querigma da arte: revelar o mistério da vida.